A participação de crianças em protestos fortalece a democracia

Pelo direito de brincar no parquinho ou ter acesso à creche, toda demanda das crianças merece atenção

Eduarda Ramos Publicado em 26.09.2023
Na imagem, um menino de pele clara fala em um megafone. A imagem ilustra uma matéria sobre crianças em protestos.
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Resumo

As crianças se manifestam desde cedo porque estão com fome ou porque não querem usar sapato. Desses primeiros protestos, elas podem aprender que a construção de uma cidadania ativa, crítica e engajada também depende delas.

Tudo no mundo se contrói à base do protesto. Do choro às grandes instituições e à vida em sociedade”, diz Frederico Ravioli, coautor do livro “Eu protesto!”. Além de reforçar que são legítimas as razões que levam os pequenos a se manifestarem contra ou a favor de algo, sua parceira Laura Erber comenta que “eles têm demandas e necessidades que podem ser verbalizadas, se o mundo adulto souber escutar”.

Sim, é preciso verdadeiramente escutar uma criança, não falar por ela, sugere o psicólogo Gabriel Medina. “O desejo das crianças não deve ser instrumentalizado e usado pelos desejos dos adultos. Isso afasta as crianças da participação cidadã.” Os adultos, segundo ele, devem cuidar para que os pequenos manifestantes não corram riscos, mas sem tirar deles o protagonismo de suas lutas.

De acordo com Medina, participar de protestos pode ajudar a criança a se reconhecer como um ser que age e interage. Além disso, é possível “interiorizar valores sociais e desenvolver habilidades e comportamentos relacionados à dimensão cidadã, como expressar sua opinião e construir seu conhecimento”.

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“Eu protesto!”, Laura Erber e Frederico Ravioli (GLAC Edições)

O livro mostra como somos sujeitos políticos desde o nascimento e que uma vida de lutas começa ainda na primeira infância. Nesta jornada para que a criança se reconheça como alguém ativo e crítico na sociedade, “Eu protesto” nos conduz por diferentes tipos de manifestações: desde o protesto por sentir fome ou frio às lutas coletivas por um país mais justo. Aliás, mudar o país por meio de manifestações é uma possibilidade para 78% da população, segundo pesquisa realizada pela ONG Artigo 19, em 2019. Como dizem os autores, “protestamos para que todas as pessoas consigam viver juntas neste mundo”.

A criança é um sujeito de direitos

“A participação de crianças em manifestações cria experiências importantes que contribuem com seu lugar no mundo. Elas produzem interações sociais e atitudes que impactam no seu desenvolvimento como cidadão crítico e propositivo”, diz Medina. Segundo ele, quando as crianças protestam, a democracia se fortalece “com mecanismos de participação que vão além do voto.”

É a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que crianças e adolescentes passam a ser considerados sujeitos capazes de reivindicar seus direitos. Inclusive, podem incidir sobre decisões e políticas públicas que interferem diretamente em suas vidas. “O ECA produziu uma nova forma de olhar para esse grupo, rompendo com uma visão punitiva que prevaleceu no Código do Menor.”

O que diz o ECA?

Segundo o artigo 15, crianças e adolescentes têm “direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. Depois, no artigo 16, entende-se que o direito à liberdade corresponde à garantia do direito de opinião e expressão (II); a participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação (V); e a participar da vida política, na forma da lei (VI).

Com esse direito à manifestação garantido, crianças e adolescentes têm se organizado para fazer valer suas opiniões e seus desejos na escola ou levando suas próprias demandas para a rua.

Em Caraíva (BA), por exemplo, após protestarem por uma escola de qualidade, em 2022, a prefeitura da cidade atendeu à maioria de suas solicitações. Em junho, um protesto na Escola Municipal de Educação Infantil Monteiro Lobato, no centro de São Paulo, reuniu educadores, pais e alunos contra pichações racistas. Já em Vitória (ES), crianças da Universidade Federal do Espírito Santo reivindicaram a limpeza do parquinho e o direito ao brincar, em agosto.

De acordo com Erber, as lutas dos estudantes secundaristas ao redor do Brasil foram “um exemplo de protesto inspirado pela ideia de cuidado”. Ela também lembra de algumas queixas das crianças em relação a ter pouco tempo de recreio, não ter aulas de arte ou literatura, e a escola ser pouco iluminada, quando participou de uma oficina de cartazes de protesto.

“Protestar não é apenas ser contra algo e denunciar injustiças. Protestar é propor outra maneira de viver, de pensar, de fazer, de governar…”

Minha criança quer ir para um protesto, e agora?

A recomendação de Medina, que também integra o grupo de trabalho de prevenção à violência no ambiente escolar do Ministério da Educação, é sempre proteger a criança, evitando que estejam em protestos com possibilidades de conflitos com a polícia “ou outro tipo de manifestação que envolva depredação e ações diretas mais radicais”. Se é uma violência que motiva o protesto, ele indica “falar das contradições de uma sociedade dividida em classes sociais muito desiguais, onde o racismo, o machismo, a homofobia, o capacitismo, explicitam formas mais ou menos violentas a todo momento”.

A luta por direitos começa na infância

Ao reivindicar junto do filho Otto, 6, pela identificação e punição do autor das pichações racistas feitas no entorno da EMEI Monteiro Lobato em Higienópolis, Osvaldo César, teve seu primeiro contato com manifestações aos 37 anos.

“Eu acho importante que as crianças estejam se politizando, ao contrário do que aconteceu comigo, que foi tarde. Elas estão vivenciando sua força, entendendo que são ativas socialmente e que algumas coisas não podem acontecer“, diz. “Para Otto, o protesto foi uma festa, ele voltou bem feliz. Depois conversamos sobre racismo em casa, mas não sei se ele tem dimensão de tudo o que aconteceu por causa da idade. Mais pra frente eles vão entender o peso disso.”

“Aquele dia [do protesto] eu gostei, me senti muito bem. Eu vi as pinturas dizendo ‘não faz barulho’ e não pode fazer isso” – Otto, 6 anos

Após o protesto, segundo César, cartazes afixados no portão da escola feitos pelas crianças da EMEI foram rasgados. Além disso, apesar da prefeitura ter apagado frases e desenhos ofensivos, mais pichações racistas voltaram a aparecer.

Apesar de também não saber se as crianças compreenderam a dimensão das manifestações, Mari Borga, conselheira da EMEI, reforça que a palavra “protesto” estava ali o tempo todo, guiando as discussões. Segundo ela, em um primeiro momento, as famílias tentaram preservar as crianças e optaram por não falar sobre o assunto, pois algumas pichações traziam ameaças à vida. Embora considere importante trazer o debate para as crianças, “tem assuntos que são muito chocantes e sempre ficamos nessa insegurança, se é hora de contar, de falar sobre”.

Para ampliar as conversas depois de um protesto

“O que gostaríamos de trazer para as crianças leitoras do livro e para os seus responsáveis é a energia transformadora que todo protesto transpira. Além disso, também queríamos desestigmatizar o protesto, muitas vezes encarado como desordem, um quebra-quebra”, diz Erber.

Segundo ela, além de mostrar que existem protestos “animados, alegres e coloridos, outros são mais sérios e sóbrios e que é possível protestar com música e dança ou por meio do silêncio“, o livro pode inspirar conversas sobre o tema, encorajando, por fim, a participação ativa das crianças nas discussões.

“Pergunte às crianças se elas já protestaram ou se já viram algum protesto, como era e o que acontecia. O que fariam se tivessem de protestar para que algo melhore na sua casa, rua, escola ou cidade? Que protesto elas achariam mais legal e qual seria o mais difícil de organizar”, sugere.

“O protesto infantil não é diferente do adulto. Todo mundo protesta pra viver melhor”, diz Ravioli

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