O apoio legal às mães de Haia em casos de violência doméstica

A nova interpretação sobre a Convenção de Haia no Brasil protege as mulheres em casos de violência doméstica e observa o melhor interesse da criança

Michele Bravos Publicado em 29.09.2025
Foto em preto e branco de uma mulher segurando um menino entre os braços
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Resumo

Crianças retiradas de seu país de residência por suas mães, em caso de violência doméstica, não devem retornar ao local de origem. A interpretação inovadora para a Convenção de Haia no Brasil pode influenciar outros países, mas ainda há desafios internos a superar.

Maria saiu da Bélgica e hoje vive com o filho no Brasil. Clara deixou a Colômbia com os filhos e também voltou ao país. Beatriz, ao contrário da maioria, fugiu sem a filha e acabou decidindo retornar à África do Sul para não perder contato com a menina. Essas mulheres são “mães de Haia” e convivem com um sentimento comum: a injustiça. Isso porque, ao mudarem em busca de proteção contra a violência doméstica, acabam sendo acusadas de sequestro internacional de seus próprios filhos.

“É revoltante saber que se a outra parte não autoriza você sair do país com sua filha, mesmo num contexto de violência, você precisa deixá-la para trás. Ou assumir o risco de responder pela acusação de sequestro internacional da sua própria filha!”, diz Beatriz.

“Mãe nenhuma deveria ser vista como sequestradora e nenhuma criança deveria ter que ficar num lar violento.”

Mas, a partir de agora, essas histórias recebem nova interpretação da justiça. Com decisão unânime, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que é preciso levar em conta o contexto de violência doméstica na análise dos pedidos de retorno ao país de origem em casos de disputa internacional pela guarda de crianças. Ou seja, quando o motivo para “ir embora” é para se proteger e proteger os filhos, os tribunais brasileiros poderão impedir que a criança seja obrigada a voltar para o ambiente violento.

O compromisso com a proteção de mulheres, crianças e adolescentes

Esperada há quase duas décadas, a mudança na Convenção de Haia (tratado internacional de referência nessas situações) representa um marco para as mães de Haia brasileiras e pode inspirar outros países, diz Janaina Albuquerque, advogada e coordenadora jurídica da organização Revibra Europa, uma rede que oferece suporte para mulheres migrantes que são vítimas de violência doméstica e/ou discriminação. Segundo ela, “a decisão pode provocar um ‘efeito de onda’ nos próximos meses e anos”. 

A decisão é considerada inovadora por especialistas porque a Convenção de Haia não previa, em sua origem, a violência doméstica como grave risco às crianças. Agora, é possível impedir o retorno da criança se isso a colocar em uma situação intolerável ou submetê-la a danos físicos ou psicológicos, sempre observando o princípio de “melhor interesse

Para Mariana Zan, advogada no Instituto Alana, apesar de não haver uma cláusula específica sobre participação, permitir a escuta de crianças e adolescentes durante o processo reafirma o compromisso de garantir direitos com prioridade absoluta a esses grupos. “É imprescindível incluir suas opiniões e assegurar que participem de processos que dizem respeito às suas vidas e cuidar para que não sejam revitimizados.”

A nova interpretação da Convenção de Haia se sustenta em leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Henry Borel e a Lei Maria da Penha, que passou então a reconhecer a violência doméstica como violação de direitos humanos, e não mais como um problema privado. A Convenção de Belém do Pará, de 1994, também reconheceu o crime como um problema de responsabilidade do Estado. “As leis que tratam de violência contra a mulher são posteriores à convenção e esse entendimento mais amplo também é mais recente”, explica Janaína.

Para quem segue esperando um julgamento, Janaína ressalta que, mesmo os casos que já estavam em curso e nos quais a violência doméstica tinha sido apresentada, mas desconsiderada, poderão ser revistos sob essa nova ótica. 

O que é a Convenção de Haia?

A Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças foi criada em 1980, num momento em que leis de divórcio começavam a ser implementadas em vários países. O principal objetivo era evitar que um dos genitores — naquela época, em geral, os pais — levassem os filhos para outro país com a intenção de obter vantagem na disputa pela guarda. Os deslocamentos eram majoritariamente fronteiriços, entre países vizinhos. Atualmente, a questão é mais complexa, devido à maior facilidade para viagens, até mesmo intercontinentais, e novas dinâmicas de migração.

Quais são os próximos desafios?

Desafio 1: provar que a violência aconteceu

Os casos envolvendo a Convenção de Haia não são simples processos de disputa de guarda, explica a advogada Janaína Albuquerque. Além disso, segundo ela, um ponto sensível para as mães de Haia é provar que a violência doméstica realmente aconteceu. “Elas saem às pressas de um país, por vezes sem orientação jurídica correta.”

Apesar de já ter apresentado mais de 20 provas a seu favor, Maria segue ouvindo que “ainda não são suficientes”. Seu caso continua em andamento no judiciário brasileiro.

Além de ter fotos da tentativa de feminicídio e laudos que atestam as sequelas deixadas em sua saúde física e mental, Beatriz conta que também se atestou a violência sofrida pela filha. No entanto, por corrupção — suspeita ela — as provas foram invalidadas.

Já Clara diz perceber uma questão de gênero que dificulta o processo. “Os juízes não conseguiram compreender a situação. A única que realmente me ouviu foi a desembargadora responsável pela decisão sobre pensão.”

“Desde o início, senti que minha palavra tinha menos peso. Talvez por eu ser mulher. Esta era a sensação constante: a palavra do genitor valia mais.”

Desafio 2: o melhor interesse da criança no centro

Além da violência doméstica, outro motivo que levou Maria a voltar ao Brasil foi oferecer uma melhor qualidade de vida ao filho, que tem autismo de grau elevado e não se comunica nas línguas oficiais da Bélgica: francês e holandês. “Meu filho fala inglês e português fluentemente, mas diziam não ter atendimento especializado lá nos idiomas que ele falava. Além disso, na Bélgica, uma criança autista não pode frequentar uma escola comum, ela é excluida”, relata a mãe. O menino nunca disse querer retornar à Bélgica. 

A saúde do filho também foi uma das motivações para que Clara deixasse a Colômbia. Relatórios médicos mostram a ela o quanto é melhor para seu filho, que tem paralisia cerebral, estar no Brasil, devido aos múltiplos cuidados de que necessita.

A advogada Mariana Zan comenta que, sempre que possível, é preciso “garantir a participação das crianças nos processos que lhes dizem respeito, mesmo que a escuta seja mais sensível, como no caso de alguma deficiência ou na condição de imigrante, por exemplo”.

Maria expressa o desejo de que, com a nova interpretação, passem a colocar “a criança no centro do julgamento”. E Beatriz reforça: “o foco tem que ser a minha filha, a saúde mental dela. Eu queria que as autoridades daqui me ajudassem e fizessem meu ex-marido entender isso”, diz. “Eu adoraria voltar com ela para a região da Chapada dos Guimarães, onde eu morava. Lá a gente viveria uma vida simples, de cidade do interior, uma vida de verdade.”

Desafio 3: uma compreensão ampla da violência doméstica

A dificuldade de incorporar esse tipo de violência aos julgamentos de guarda internacional se agrava quando, em alguns países, a agressão é entendida apenas como algo que ocorre entre o casal — sem considerar os impactos sobre crianças e adolescentes. Mas, o ambiente violento afeta o desenvolvimento emocional, a saúde mental e as relações sociais dos mais novos.

“Ainda que a criança não seja vítima direta e apenas testemunhe a violência doméstica, conviver em ambientes em que ela ocorre representa um risco para a garantia dos seus direitos”, afirma Mariana Zan.

De acordo com Janaína Albuquerque, um entendimento mais restrito da violência doméstica em alguns países europeus serve para as mulheres, que, caso se desloquem na região, “jamais serão deportadas de um país para outro”.   

“Se a mulher sofre violência, denuncia e, posteriormente, o parceiro apresenta uma contradenúncia, se entende que a situação está ‘elas por elas’ e o caso não vai para frente.” 

Maria sabe bem como as leis da Europa de proteção à mulher não funcionam para uma imigrante brasileira. Quando vivia na Bélgica, durante sessões de terapia, percebeu que estava sendo vítima de violência psicológica. Mas, ao buscar ajuda, não teve acolhimento. “A assistente social me perguntou: quem vai pagar o seu abrigo? Ele não é de graça para você”, relata. Também não houve intenção de atendimento especializado para seu filho. Sete dias depois de chegar ao Brasil de férias com o menino, em 2022, foi acusada de sequestro internacional pelo genitor da criança.

Desafio 4: leis locais de proteção às mulheres 

Na África do Sul, Beatriz foi vítima de tentativa de feminicídio, além de violência psicológica e patrimonial. Após quase morrer, pediu ajuda às autoridades locais. Por fim, a resposta foi que nada poderiam fazer para protegê-la.

“Na África do Sul não tem Lei Maria da Penha.”

De acordo com especialistas das Nações Unidas, a África do Sul tem fracassado em enfrentar a violência doméstica. Em 2019, o Comitê da ONU para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) esteve no país e relatou que parte do problema está nos baixos índices de acusação e condenação dos agressores. Em muitos casos, essas ordens se limitam a determinar que o agressor durma em outro cômodo da mesma casa, sem oferecer proteção real à vítima. Em 2021, o país aprovou uma emenda à legislação de violência doméstica, prevendo que os agressores pudessem ter penas mais severas.

Desamparada, Beatriz recebeu a recomendação das autoridades sul-africanas para que voltasse ao Brasil. Quando chegou aqui e denunciou o parceiro de violência contra ela e também contra a filha diretamente, nada aconteceu. Depois de um ano sem nenhum avanço no seu caso, ela retornou para a África do Sul, para — ao menos — estar perto da menina.

Uma nova chance para as mães de Haia

Clara é uma das poucas mães vitoriosas antes da mudança na interpretação da Convenção de Haia. É desse lugar de mãe que experimentou a violência doméstica e depois a violência institucional, durante as sessões de julgamento de seu caso, que ela não perde a fé e incentiva que outras mães também não percam.  

“Por mais difícil que seja, eu quero que mães como eu nunca desistam.”

Com a decisão do STF, as expectativas são altas: “Eu quero muito que julguem meu caso com essa nova interpretação”, diz Maria. “Isso vai me ajudar. E vai ajudar outras mulheres também.”

No documentário “Mães na luta”, histórias reais de “mães de Haia” brasileiras são retratos sensíveis de suas angústias e também da persistência em seguirem lutando por seus direitos e pelo o que é melhor para seus filhos.

Agradecimento: Coletivo “Mães na luta”

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