Os armários da série ‘Maid’ como refúgio infantil contra abusos

Como fica a criança em meio a conflitos e testemunhos de violência? Saiba como minimizar os danos na infância e cuidar de um futuro menos sombrio

Cintia Ferreira Publicado em 25.11.2021
Cena da série Maid, em que uma mulher está sentada no chão abraçada a uma menina pequena. Ambos são brancas. Ao lado, há produtos de limpeza
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Resumo

Além de questionamentos sobre violência doméstica, relacionamento abusivo e maternidade solo, a série “Maid” nos ajuda a refletir sobre os impactos de um ambiente violento na vida das crianças. Especialistas comentam as consequências e como minimizar os danos.

Um armário pode ser mais do que apenas um armário. Na série “Maid”, que estreou em outubro, na Netflix, e já se tornou uma das produções mais assistidas da plataforma, o armário é parte de uma das memórias mais dolorosas da protagonista Alex (Margaret Qualley), que reconta a história real de Stephanie Land. Dentro de um armário, quando criança, ela encontrava refúgio contra a violência doméstica que presenciava a mãe sofrer. Mais tarde, também vítima de abusos do parceiro Sean (Nick Robinson), Alex decide fugir junto da filha Maddy (Rylea Nevaeh Whittet) e procurar ajuda.

Embora a menina pareça ser coadjuvante, toda a força da protagonista advém do amor que ela sente pela filha. Com apenas 2 anos, a pequena Maddy já vivenciou muitas coisas, algumas delas potencialmente traumáticas, como a violência que vê dentro de casa. Essa é uma realidade comum na primeira infância cujos efeitos, muitas vezes, perduram por anos. “Em todas as fases de crescimento da criança, seu emocional está em desenvolvimento. Com isso, presenciar violências físicas e psicológicas pode prejudicar a internalização de sentimentos saudáveis em seu repertório”, explica a psicóloga Fernanda Dantas.

Violência que atravessa gerações

Crescer em um ambiente violento pode levar a sentimentos como culpa ou repetição de padrões.  Segundo Fernanda, “a violência pode fazer parte do aparato simbólico da criança, sendo normalizado no cotidiano e podendo ser replicado. Nesse caso, ela pode passar a ter comportamentos agressivos ou de regressão e submissão.” 

“Como a violência doméstica, normalmente, é provocada pelos pais, que são o referencial afetivo e de proteção, ela pode sentir que é culpada pelas ações e tentar reparar”, detalha a especialista. “Agressividade, baixa autoestima, problemas em confiar nas pessoas, ansiedade, depressão, autossabotagem, queda no desempenho escolar, retraimento e isolamento são algumas das consequências dessa vivência. A falta de aparato para suportar a responsabilidade de reparar a relação dos pais pode fazer a criança se sentir impotente, agravando os sentimentos de menos valia.”

Como fica a vida de alguém que cresce em um ambiente violento? A psicóloga explica que não dá para saber o quanto a convivência em um ambiente negativo vai afetar a criança. Mesmo tendo acolhimento, o resultado pode ser ruim, futuramente. “Toda a sociedade tem responsabilidade em resguardar a criança e favorecer esses cuidados, mas principalmente aqueles que tenham mais vínculo afetivo e que consigam minimizar os impactos do trauma”, detalha.

“A criança precisa ser acolhida, amada e ter seus direitos à infância preservados”

Esse ciclo de violência pode durar gerações: mulheres que cresceram em ambientes violentos podem escolher parceiros violentos e demorar a quebrar esse padrão. “Isso ocorre porque elas internalizam essa forma de relação como demonstração de afeto, pois aprenderam que a relação violenta é normal. Repetem também o ciclo por acharem, inconscientemente, que é isso que merecem”, complementa Fernanda.

A imaginação como aliada

Na série “Maid”, a protagonista Alex tenta a todo momento minimizar os impactos da dor que a filha está vivenciando. É assim que entra em cena um recurso potente na infância: a imaginação. Um passeio na floresta vira uma caça ao urso, o abrigo é tomado por pôneis de brinquedo e a primeira refeição do dia é entregue pela “fada do café da manhã”. Essa busca por proporcionar à filha momentos de leveza dão o ar agridoce que permeia toda a história. “Como a criança vê o mundo de forma lúdica, usar o recurso imaginativo pode mascarar a violência e a criança crescer com os traumas minimizados ou até mesmo ausentes”, explica a psicóloga.

Mesmo com essa delicadeza ao olhar para a infância, a violência vivenciada vai causar impactos. “Pode acontecer uma tomada de consciência sobre a experiência, na vida adulta, podendo ou não ter a memória negativa para sua vida”, emenda a especialista. A criança também vai procurar formas de se proteger de acordo com os recursos disponíveis. Na série “Maid”, o armário representa essa estratégia de se esconder do mundo enquanto a realidade é difícil demais de ser vivida. “As crianças costumam se esconder, quando se sentem ameaçadas e até mesmo para brincar. Além disso, aprendem por imitação. “É um reflexo aprendido pela filha ao observar a mãe”, diz Fernanda.

“Se esconder no armário passa de uma brincadeira lúdica para uma estratégia de sobrevivência”

As marcas invisíveis no corpo

Quando se trata de ambientes violentos, a prioridade deve ser proteger a criança, e acolher as vítimas de uma violência que nem sempre é física. São as marcas invisíveis registradas em cada célula do corpo. “A violência psicológica é a mais difícil de identificar, pois, às vezes, é sutil e cheia de manipulações que fazem a vítima se sentir culpada pelo jogo que é formado”, afirma a psicóloga. Ofensas, jogos de manipulação que fazem o parceiro se vitimizar a ponto do outro se sentir errado e até pedir desculpa, opressões, desvalorizações, isolamento da família e amigos, e abuso do poder financeiro são alguns dos sinais de que pode haver abuso psicológico na relação”, diz. 

Para sair do ciclo de violência é essencial um fortalecimento emocional. “Falar com outras pessoas sobre o sofrimento que está passando ajuda, pois, muitas vezes, as pessoas à sua volta gostam do agressor, porque não sabem o que ele faz. O fortalecimento emocional vai ajudar a conquistar o que precisa para tomar decisões e ser protagonista da própria história”, aconselha Fernanda. Nesse sentido, é importante também buscar amparo legal.  

“Paralelamente ao auxílio psicológico, deve-se buscar um advogado para que ele ajuíze ação de guarda e visitas, deixando tudo regularizado, sem riscos. Cada caso é um caso e precisamos avaliar, em primeiro lugar, como resguardar a integridade física e psíquica da pessoa afetada”, explica a advogada de Direito de Família, Sandra Vilela.

Violência contra a mulher: qual o impacto aos filhos das vítimas?

Proteger a infância para um futuro melhor

A advogada Sandra ressalta que, salvo exceções, a criança precisa continuar convivendo com o pai. “O filho é uma construção de dois, não é uma propriedade da mãe. Ele tem direito de conviver com o pai. Muitas vezes, a violência psicológica é uma dinâmica do casal. Não é porque o parceiro é violento com a ex-companheira que ele vai ser com o filho. Precisamos sempre avaliar cada caso e, se acontecer uma situação grave, o juiz vai tomar as medidas cabíveis. Os pais precisam ser adultos e pensar sempre no bem da criança”, detalha. 

Quando se trata de proteger os filhos, é importante saber separar a relação do casal da relação com os filhos. E é aí que muitos conflitos aparecem. Na série “Maid”, não há vilanização do parceiro de Alex. Embora ele seja claramente abusivo, há um esforço em mostrar que ele também foi vítima de uma infância violenta e traumática. Por isso, é importante ajudar as crianças de hoje a não serem os adultos de amanhã que, feridos, machucam os outros

Protegendo a infância, o futuro pode ser menos sombrio e mais azul-celeste, a cor que Alex redescobre ser sua favorita quando a dor enfim cessa

Onde procurar ajuda em casos de violência doméstica
Cada cidade possui casas de acolhimento e auxílio às pessoas vítimas de violência doméstica. Conheça alguns dos serviços de amparo para esses casos:

  • Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher;
  • Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs);
  • Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs);
  • Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher;
  • Centros de Referência de Atendimento à Mulher;
  • Núcleos Especializados de Acolhimento e Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência;
  • Defensorias Públicas;
  • Casas-Abrigo;
  • Casas da Mulher Brasileira;
  • Casas de Acolhimento Provisório – Acolhe mulheres vítimas de outros tipos de violência em uma moradia temporária;
  • Patrulhas/Rondas Maria da Penha;
  • Disque 100 – Acolhe denúncias de violações contra crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, presidiários, população LGBT e pessoas em situação de rua. 

Fontes: Adaptado de Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e Observatório da Mulher contra a Violência (OMV)

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