O que leva famílias a saírem do Brasil com seus filhos?

Mesmo de forma indocumentada, famílias arriscam migrar em busca de melhores condições de vida, expondo muitas vezes as crianças a travessias traumáticas

Michele Bravos Publicado em 20.06.2022
Imagem de costas de uma mulher caminhando por uma estrada de mãos dadas com duas crianças
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Resumo

Para que futuras gerações tenham melhores condições financeiras e mais qualidade de vida, famílias brasileiras inteiras migram para os EUA, mesmo que de forma indocumentada, expondo crianças a travessias traumáticas.

Acreditando ser possível oferecer uma vida melhor para os filhos nos Estados Unidos da América (EUA), famílias inteiras apostam tudo o que têm para sair do Brasil. Para muitos migrantes brasileiros, o único meio financeiramente viável é ir de forma indocumentada e a travessia pode ser traumática, especialmente para as crianças.

No começo deste ano, a deportação de 211 pessoas, sendo 90 crianças e adolescentes, dos EUA para o Brasil, evidenciou a emergência do tema. Embora mais recorrente hoje, há registros de deportação de brasileiros indocumentados nos EUA desde 1960, aponta a cientista social Sueli Siqueira, professora na Universidade Vale do Rio Doce e pesquisadora de migrações internacionais. “Vivemos um momento social, político e econômico que intensificou a migração e, por consequência, o número de deportações.” 

Na casa da família Pereira*, na região do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, o assunto migração atravessa gerações. Catarina, 42, foi instigada pelo irmão (que já morava nos EUA) a migrar, mesmo sem documentação, quando tinha 23 anos. Na época, Catarina teria que deixar a filha, Amanda, de apenas 3 anos, e não foi. Recentemente, Amanda, hoje com 22 anos, tomou a decisão de ir para os EUA com a filha – e neta de Catarina – Júlia, 3. “Ver essa história se repetir foi estranho. Diferente de mim, minha filha quis ir e pôde levar a minha neta. Meu genro foi primeiro e agora elas. Amanda não tem muitos estudos e, aqui no Brasil, ela não estava conseguindo oportunidades para construir a vida que sonhava. Eu não poderia dar a ela condições melhores. Então, mesmo com medo, eu não a impedi de ir”. 

Essas três gerações de mulheres evidenciam a mudança de perfil do migrante brasileiro para os EUA ao longo do tempo. “Antes, quem ia para os EUA ia sozinho e voltava para o Brasil, construindo aqui casas, abrindo negócios… Materializavam, assim, a ideia de que morar nos EUA oferecia uma vida melhor, estimulando a emigração. Atualmente, quem migra não tem intenção de voltar, devido à situação do país. As famílias vendem tudo o que têm – mesmo que seja pouco – e vão”. 

Ao longo de mais de 50 anos, houve o fortalecimento de uma cultura migratória na região do Vale do Rio Doce (MG), onde parte da família Pereira ainda vive. De acordo com o Censo de 2010, a maioria dos imigrantes brasileiros nos EUA são de Minas Gerais. A professora Sueli explica que, historicamente, o crescimento industrial e econômico na região favoreceu tal cultura, ainda que o perfil de migrantes tenha mudado com o passar do tempo. 

A cientista social destaca que, mesmo sem documentação, o trâmite é caríssimo, em torno de R$ 50 a 80 mil reais por família. Por isso, não são pessoas miseráveis que migram. Ao mesmo tempo, ao vender tudo o que possuem no Brasil, retornar não é uma opção. 

Toda migração possui fatores de expulsão e fatores de atração, como explica Sueli. “Sem dúvida, um fator de expulsão no Brasil é a desigualdade social, a falta de emprego, o salário baixo. No outro lado [no caso, nos EUA] está a possibilidade real de se chegar em Boston, por exemplo, e em três ou quatro dias se conseguir um emprego”, afirma. O fluxo migratório contemporâneo de brasileiros para os EUA têm, para a professora, uma palavra-chave: desesperança. 

A poucos passos de uma vida melhor

A tão sonhada “vida melhor” que as famílias brasileiras buscam ao emigrar está bastante relacionada a uma esperança de futuro para os filhos. A pesquisadora Gabrielle Oliveira, também professora em Harvard com estudos na área de migração entre as Américas e autora do livro “Maternidade entre fronteiras: imigrantes e seus filhos no México e na Cidade de Nova York” [tradução nossa], percebe o quanto a possibilidade de oferecer melhores condições de educação para as crianças é um fator de atração de migrantes. “As famílias veem na educação uma maneira de se sobressair e de ter mobilidade de classe social”, conta. 

Mas, o que antecede a chegada à “vida melhor” pode ser um caminho traumático. Ao conversar com a filha Amanda durante toda a travessia, Catarina sentia muito medo. “A gente vê tanto caso dando errado. Há pessoas que perdem a vida nessa travessia. As pessoas contam com a sorte e acham que o pior não vai acontecer com elas, mas pode acontecer.”

O medo de Catarina não era sem razão. A representante de Médicos Sem Fronteiras (MSF) México, Karla Villalpando, gerente de saúde mental de projeto do MSF na cidade de Reynosa (fronteira do México com EUA), explica: “Na travessia, a insegurança está presente para todos. Quando a criança se dá conta de que seus cuidadores também estão vulneráveis, ela pensa que ninguém poderá protegê-la e isso traz angústias. Uma travessia assim é violenta e pode desenvolver transtornos de ansiedade, estresse pós-traumático e até depressão.” Karla também ressalta que, muitas vezes, aquela não é a primeira experiência violenta da criança, se considerarmos um possível contexto de desigualdade social no qual ela estava inserida. 

Catarina lembra que filha e neta saíram do Brasil no começo de dezembro de 2021 e ficaram 18 dias em travessia, na fronteira do México com os EUA. “Minha filha contou que na travessia teve muita tortura psicológica e humilhação por parte dos oficiais aduaneiros, sempre gritando, pedindo mais e mais dinheiro.” Mãe, filha e neta se falaram todos os dias, menos quando Amanda se entregou na fronteira, no esquema cai-cai.

Nesse esquema, os migrantes se entregam às autoridades norte-americanas, na esperança de serem liberados. Como famílias com crianças têm mais chances, organizadores das travessias indocumentadas costumam negociar o “aluguel de crianças” no Brasil para facilitar a entrada de grupos nos EUA. “O grupo em que minha filha estava se entregou quando estavam em uma casa abandonada. Do lado de fora, havia policiais, cachorros e helicópteros.” Enquanto aguardavam a análise de uma possível liberação, Catarina conta que todos – adultos e crianças – foram levados a um centro de detenção. “Acredito que elas ficaram detidas lá uns quatro dias, que foi o tempo em que não nos falamos. Minha filha diz que não tomaram banho, dormiram no chão, em cima de um tapetinho fino, e fizeram uma refeição por dia, que era um pão com queijo e uma maçã. Pelo menos era a fruta favorita da minha neta”.

A pesquisadora Gabrielle aponta o quanto um período de detenção pode impactar a visão de mundo das crianças. “As crianças que ficam detidas pensam muito na vida delas como transitória, tentando entender o que é aquele local, se poderão criar raízes ou não. Há muito questionamento sobre o tempo. ‘Quanto tempo a gente vai ficar aqui?'”, explica. A professora ainda complementa que os traumas desse tipo de migração podem se manifestar do ponto de vista físico, em que “as crianças têm dor de ouvido, diarreia e falam pouco sobre o que aconteceu.”

Para a gerente de saúde mental do MSF México, é importante lembrar que a expectativa da criança em torno da migração é gerada a partir da expectativa do responsável e, quando essa expectativa é frustrada, resta uma sensação de dúvida. “Nenhuma migração dessa forma é muito planejada, portanto não há tantos diálogos prévios. Mas, os adultos costumam falar ‘ao cruzar a fronteira teremos uma vida melhor’. Quando ocorre uma detenção ou uma deportação, isso é confuso. A criança não entende porque saiu do seu lugar de origem e, agora, tampouco entende porque não pode chegar ao destino pretendido.” 

O depois da não-deportação

Apesar dos dias na detenção, Amanda e a filha Júlia conseguiram entrar nos EUA e reencontrar seu esposo e pai da menina. Para a avó Catarina isso foi um alívio. “Eu nem consegui chorar quando falei com ela. Fiquei feliz que deu tudo certo. Mas, minha filha estava muito magra. Foi um caminho muito difícil. Agora, é fazer a vida que ela sonhou. Ela até já conseguiu um trabalho. Não vai ser fácil, eu não me iludo, mas sei que ela vai batalhar muito.”

As famílias transnacionais, em que os familiares estão em países diferentes, representam bem a atual realidade de migrantes brasileiros. A pesquisadora Gabrielle lança atenção sobre a criança que fica no país de origem sob os cuidados de um dos pais ou dos avós até o reencontro. “Essas separações costumam ser longas e a criança cresce cheia de perguntas e afirmações como: “Onde está minha família? Por que essa pessoa foi embora? Eu nunca pedi para ela ir. Eu sinto saudade”. Ela comenta que é uma relação familiar permeada de benefícios, porque, em geral, há remessas financeiras sendo enviadas ao país de origem por parte de quem foi, mas também permeada de tristeza, pela separação. Assim, para muitas crianças, a chegada no país de destino vem também acompanhada desse histórico e sentimentos, somados, agora, aos traumas da travessia. 

“Apesar de falarmos que as crianças são muito resilientes, ficar em uma detenção e ver situações de violência acontecendo à sua frente, muitas vezes, aos seus pais, deixa marcas para uma vida toda”, diz Gabrielle. Por isso, essa experiência precisa ser reformulada com ajuda dos adultos e, se possível, com apoio terapêutico. Para a pesquisadora, “existe uma responsabilidade por parte dos adultos, em apoiar espaços em que as crianças possam falar sobre a experiência que viveram, de maneira segura e criativa, sem jamais silenciá-las”. Gabrielle sugere que recursos artísticos, como desenhar, ouvir e ler histórias de literatura, podem ser aliados nessa superação de traumas

Nos projetos de apoio a migrantes de MSF, a gerente de saúde mental Karla comenta que há espaços recreativos, que visam reduzir o estresse causado pela migração, e tratamentos com base na ludoterapia (terapia que utiliza jogos e brincadeiras para auxiliar a criança no processo terapêutico). Ela também ressalta que, tão importante quanto a criança receber esse apoio, é a família como um todo estar envolvida no processo e também se permitir ser ajudada. 

O fim bem-sucedido da travessia indocumentada é a não-deportação, mas isso não é garantia da “vida melhor” imediatamente. A tão sonhada vida melhor diz, sim, respeito a ter um emprego, acesso à educação, possibilitando o aprendizado em outro idioma, a chance de os filhos trilharem um caminho com melhores condições financeiras – esperança inexistente no país de origem para muitas famílias. Mas, a vida melhor também diz respeito aos membros dessa família estarem bem psicológica e emocionalmente, podendo revisitar e ressignificar os passos dados nessa travessia. Atravessar a fronteira é, na verdade, o começo de um longo processo.  

* Os nomes dos membros da família Pereira foram trocados para preservar suas identidades. 

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