Diante do aumento de casos de transtornos mentais entre crianças, especialistas defendem que a escola seja um lugar de acolhimento desde a primeira infância
Diante do preocupante aumento de casos de depressão infantil nos últimos anos, especialistas indicam as escolas como pontos de apoio na promoção de saúde mental, a partir da capacitação de professores e do desenvolvimento de competências socioemocionais desde cedo.
“A escola é um ambiente privilegiado para identificar sofrimento mental e emocional”, afirma o doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Anderson Rosa. À frente de projetos de promoção da saúde mental em escolas públicas, ele defende a capacitação de educadores e gestores para evitar “que o adoecimento causado por casos de depressão infantil aconteça a partir da relação do estudante com a escola”.
Entendendo o transtorno mental como fenômeno multicausal e que a maioria dos casos entre crianças e adolescentes não demanda atendimento especializado, Rosa acredita que o simples fato de receberem cuidado da escola, em parceria com famílias e colegas, é suficiente para que se sintam amparados e atravessem um momento desafiador.
De acordo com a mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora da escola de educação infantil espaço ekoa, Ana Paula Yazbek, a escuta sensível dos educadores pode favorecer que os estudantes, desde a primeira infância, entrem em contato com o que estão sentindo.
Segundo Yazbek, quando algo contradiz a expectativa de que a criança seja “inerentemente feliz, criativa e animada”, ela pode se sentir “deslocada e perdida”. Portanto, essa escuta precisa garantir que a criança se expresse espontaneamente em seu ambiente, incentivando seu protagonismo. “É preciso ter espaço para falar da raiva, da tristeza e da frustração de uma forma não moralizadora ou maniqueísta. Ou seja, sem exaltar sentimentos positivos e rebaixar os considerados ‘ruins’.”
Embora a escola seja um ponto de apoio estratégico para promover saúde mental para crianças e adolescentes, com base no Censo Escolar de 2022, o número de psicólogos dentro de escolas ainda é insuficiente. Ele corresponde a apenas 0,05% do total de estudantes matriculados, ou seja, menos de 0,1%. Assim, são 24.434 profissionais para 47,4 milhões de alunos dos ensinos infantil, fundamental e médio.
Além disso, o Estado e toda a sociedade também são responsáveis pelo bem-estar das crianças, conforme prevê o artigo 227 da Constituição Federal. Por isso, em casos mais graves, segundo Rosa, é essencial que a escola trabalhe de forma intersetorial. O caminho é mapear redes protetivas, protocolos de prevenção e encaminhamento para equipes de saúde ou assistência social.
Para o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e o Instituto Cactus, o principal caminho é a interação entre a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e o Programa Saúde na Escola (PSE), junto ao Sistema Universal de Assistência Social (Suas). Em março de 2023, as duas instituições entregaram o documento inédito “10 ações para políticas de saúde mental nas escolas” para gestores e parlamentares em Brasília. Entre as ações estão a priorização e ampliação das coberturas do Raps, PSE e Suas; aprovação do Projeto de Lei nº 3.383/2146, que institui a Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares; e o direcionamento de emendas parlamentares para qualificação em saúde mental infantojuvenil para profissionais da educação básica e atenção primária à saúde. Além disso, o aprimoramento da política diante dos novos desafios após a pandemia, como o aumento de violências, impactos na aprendizagem e evasão escolar.
Além dos CAPs (Centros de Apoio Psicossocial) das cidades, o CVV (Centro de Valorização da Vida) funciona 24 horas por dia pelo telefone 188 e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.
No mundo, a depressão infantil entre crianças na faixa dos 6 aos 12 anos saltou de 4,5% para 8% na última década, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Ao mesmo tempo, 13% da população de 10 a 19 anos vivem com algum diagnóstico de transtorno mental definido pela OMS. Ansiedade e depressão representam 40% desse quadro. Atualmente, no Brasil, a taxa é de 17% para a mesma faixa-etária, o que corresponde a aproximadamente 5,6 milhões de meninos e meninas, segundo o relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), publicado em 2021.
Depois da pandemia, os sintomas de depressão cresceram 26% globalmente nos jovens de até 19 anos. Do mesmo modo, a ansiedade também aumentou quase 10% entre essa população no primeiro ano da crise sanitária. Os dados são de um artigo publicado em março de 2023 na revista Jama Pediatrics.
Para o pediatra, sanitarista e mestre em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Daniel Becker, a pandemia apenas agravou uma crise de adoecimento mental e emocional já em curso entre crianças e adolescentes. “Desde 2011, notamos um aumento nas taxas de suicídio, de automutilação e de transtornos alimentares”, afirma. Mais de 10 adolescentes tiram a própria vida diariamente na América Latina. Assim, esta é a terceira principal causa de mortes na faixa etária de 15 a 19 anos na região.
Becker recomenda considerar os fatores de risco intensificados pela desigualdade social, que podem deixar marcas por toda a vida. Entre eles a pobreza, a insegurança alimentar e diversos tipos de violência. “Sociedades desiguais tendem a desumanizar as pessoas. Isso promove o chamado estresse tóxico, que é prolongado e causa lesão cerebral. Em suma, ele é diferente dos outros tipos de estresses recuperáveis, causados, por exemplo, por doenças passageiras”, explica.
De acordo com o médico, também há uma mudança geracional. Ou seja, cada vez mais as crianças estão confinadas dentro de suas casas, entretidas pela internet, televisão e dispositivos eletrônicos portáteis, que acabam impactando a socialização. “As telas afastam as crianças de sua atividade fundamental que é brincar ao ar livre. Essa é uma das formas mais potentes de adquirir e desenvolver habilidades, não apenas motoras, mas emocionais”, diz.
“Brincar é o antídoto fundamental contra o estresse tóxico”, afirma Becker
Não por acaso, uma pesquisa realizada pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, com 50 mil estudantes entre 13 e 18 anos, associou o aumento significativo da depressão infantil e sentimentos de desesperança entre os adolescentes à ascensão das mídias sociais. Assim, a pesquisa levou em conta que jovens da geração Z (nascidos entre 1997 e 2012) passam até nove horas por dia diante dos celulares. Além do fato de facilitarem a propagação de violências como racismo, misoginia, gordofobia e capacitismo. As redes sociais também expõem grande parte das pessoas a padrões de consumo ou experiências que destoam das suas.
Além disso, as telas também podem acabar comprometendo o vínculo entre as famílias. E esse é um fator essencial para a experiência positiva durante a infância e adolescência e, consequentemente, para o desenvolvimento integral e saudável. “Muitos quadros de depressão passam despercebidos quando famílias não têm costume de compartilhar momentos juntos. Por isso, não percebem as mudanças de comportamento”, afirma a psiquiatra Crenzel.
Se por um lado o ambiente virtual trouxe inúmeras possibilidades de conexão em tempos de distanciamento social, por outro, impactou as horas de sono, a constância das atividades físicas e até a qualidade das relações. Os achados são do estudo “Jovens na pandemia”, realizado por pesquisadores do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Crenzel explica que, além da supervisão dos adultos em relação ao conteúdo acessado e ao tempo de uso das telas, é essencial que os filhos se sintam compreendidos e acolhidos. Boa parte dos adolescentes em sofrimento mental deixa de buscar ajuda porque acredita que seus sentimentos serão invalidados.
Atualmente, um dos grandes desafios das escolas é garantir o desempenho cognitivo dos alunos e investir em competências socioemocionais. Como observa a gerente de pesquisas e membra do Laboratório de Ciências para Educação, do Instituto Ayrton Senna, Ana Crispim, essas habilidades podem ajudar a lidar com sentimentos de ansiedade, inseguranças, preocupações e estresse.
Uma pesquisa realizada com estudantes de Sobral, no Ceará, entre os anos de 2019 e 2021, por exemplo, identificou que alunos que se percebiam pouco desenvolvidos nas competências de resiliência emocional relataram menores pontuações de saúde mental ao longo da pandemia. “O desenvolvimento socioemocional apoia a forma como os estudantes percebem a si e aos seus próprios recursos para lidar com emoções e desafios no seu dia a dia”, explica Crispim. Segundo ela, essa relação funciona na prática assim:
Quando as crianças não conseguem nomear aquilo que sentem, Yazbek sugere recorrer à literatura como forma de mediação de conflitos e conversas no cotidiano escolar:
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Mudanças de comportamento na rotina diária;
Além dos sinais compilados pela psiquiatra e presidente do Departamento de Saúde Mental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Gabriela Crenzel, no caso de crianças muito pequenas, a depressão costuma se manifestar também no corpo. Cansaço, dores de cabeça, dores de barriga, alterações no ritmo do sono e choros com irritabilidade são sinais que podem ser confundidos com birra.