O ‘xis’ da questão: a herança cultural da rainha Xuxa

Com as comemorações dos 60 anos de Xuxa, “ex-baixinhos” contam ao Lunetas suas experiências com os programas da época e questionam a falta de representatividade

Célia Fernanda Lima Eduarda Ramos Publicado em 05.04.2023
Montagem com cinco imagens de Xuxa, em momentos diferentes de sua trajetória.
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Resumo

Quem podia ser baixinho na dinastia da rainha Xuxa? Programas apresentados pela artista reforçaram a falta de representatividade e o ideal estético de uma época. O Lunetas ouviu histórias de pessoas marcadas por este fenômeno.

Entre cores, luzes e roupas futuristas, Maria da Graça “Xuxa” Meneghel chegava à televisão em uma nave espacial para entreter seu público pela primeira vez na TV Globo em junho de 1986, aos 23 anos. À frente do “Xou da Xuxa” e de outros programas infantis que eram sucesso de audiência entre os pequenos que a assistiam em casa ou no auditório, essa mulher loira, esbelta, de olhos azuis e pele branca se tornaria o ícone das gerações de crianças das décadas de 1980 e 1990 com o título de “rainha dos baixinhos”.

Em celebração aos 60 anos da apresentadora, o Lunetas ouviu histórias de alguns “ex-baixinhos” sobre o fenômeno midiático e cultural que a Xuxa se tornou. Representatividade, padrões estéticos e primeiras referências artísticas são algumas das questões que surgem na conversa.

Quem podia ser baixinho na dinastia da rainha Xuxa?

O fascínio pela Xuxa e seu lugar como “rainha” exerciam poder sobre a percepção das “coisas do mundo” do pequeno Christian Gonzatti, hoje doutor em comunicação, autor do artigo “Um manifesto queer para decolonizar a cultura pop”. Ao mesmo tempo em que a artista “reforçava modelos e posições sobre a branquitude” por sua imagem – e também pela presença das “paquitas”, suas assistentes de palco, todas loiras, magras e brancas, – ela também oferecia possibilidades de identificação para “crianças viadas”, diz.

O artista visual Rodrigo Leão, um homem negro, gay e afeminado, como ele se define, revela que a artista foi a primeira referência da ideia da pessoa branca como um ser “universal”, além de eleger “a figura feminina como referência principal para tudo: valores morais, sentimentos, como se portar nas situações… Era simplesmente como meu cérebro funcionava”, conta. Inspirado por essa figura mágica e os figurinos futuristas que enchiam seus olhos, Leão brincava de imitar a apresentadora na infância até perceber, com o tempo, que, na dinastia da Xuxa, ele era “o outro”.

“Lembro das crianças brancas na minha escola se comparando com a imagem dela, sempre reforçando que as meninas mais parecidas eram de alguma forma melhores”

Morador de Belém (PA), cujo estado tem mais de 75% da população autodeclarada parda, preta ou indígena, Leão desabafa sobre como são vistos como “o resto”, estabelecendo essa divergência em relação a pessoas brancas no eixo sul-sudeste. Apesar disso, o artista não vê Xuxa como a vilã ou única responsável na busca por um ideal estético branco, “mas como um produto criado pelos produtores e produtoras que constantemente reforçavam isso com a imagem dela”, opina. Nos programas de Xuxa, as representações do “outro” eram sempre “pessoas racializadas e mostradas em versões limitadas do que poderiam ser”, completa, a exemplo da música “Brincar de índio” (1988), que coloca o índigena em um lugar estereotipado.

‘Tudo pode ser’… mas e o sonho de ser paquita?

Ao apresentar um grupo de meninas pré-adolescentes e adolescentes como suas assistentes de palco, o imaginário infantil ganhou um novo sonho: ser paquita. Mas o sonho também era excludente. “A aspirante à paquita tinha que ser loira e ter olhos azuis como a apresentadora. Ter disciplina, saber dançar, cantar e ter boa forma”, lembra Julianna Formiga, pesquisadora de Semiótica da Cultura e Teoria da Imagem, autora de uma dissertação sobre o fenômeno Xuxa.

Em depoimento ao programa “Saia Justa”, Xuxa conta que Marlene Mattos, sua empresária na época, foi a responsável por proibir a presença de paquitas negras, por exemplo. Adriana Bombom, mulher negra que participou dos programas de Xuxa entre 1996 e 2002, usava roupas diferentes das vestidas pelas assistentes e nunca foi considerada uma paquita oficial.

“Eu queria ser paquita, mas era gorda”, recorda a social media Elva Vieira, que foi uma criança “fora do padrão” em relação à estética branca e magra promovida diariamente no “Xou da Xuxa”, e que era o seu referencial de beleza e de arte. Como toda criança desinibida, cantava, dançava e sabia as coreografias do programa. “Eu tinha tudo para ser uma paquita da Xuxa. Mas, entender que eu era uma pessoa que não fazia parte do padrão, e que não me colocariam onde eu sonhava por causa disso, é uma mágoa que certamente eu não vivi sozinha”, conta.

Quando se negava a comer algum legume que não gostava, a mãe argumentava que se devorasse tudo atrás de uma porta, o cabelo ficaria loiro e então chegaria mais perto de estar com a Xuxa. “Mas eu ainda era gorda”, lembra. Reativar essas memórias ainda machuca Vieira. Mais velha e mais forte, como ela mesmo se define, hoje compreende que o problema nunca foi sobre ela. “Não tinha paquita preta, gorda, indígena, PCD. Nem paquita viada. Os tempos são outros, que bom. Por isso é importante que pessoas fora do padrão estejam em locais de representatividade”, ressalta.

Para ela, a missão agora é fazer da filha Ellis, de 7 anos, uma pessoa livre, segura e carregada de sonhos. “Que ela tenha o direito de ser quem quiser e de sonhar com o que quiser mesmo não parecendo que pertence àquele lugar”, conclui.

“Qual é a mensagem passada, em um país como o Brasil, na escolha de três apresentadoras brancas e loiras para programas infantis – Xuxa, Eliana e Angélica – para toda uma geração?” – Christian Gonzatti

O curta-metragem “Cores e botas” (2011), de Juliana Vicente, apresenta Joana, uma menina negra e de cabelos crespos, tentando o sonho de ser paquita. A personagem representa milhares de meninas (e meninos) que sentiam o vazio de não se verem nos espaços em que mais desejavam estar. Joana tentou pintar os cabelos de amarelo com papel crepom ao perceber que suas botas brancas não bastavam para ser escolhida. O comentário de uma amiguinha, na fila da inscrição do teste, deu o alerta: “você nem parece paquita!”

‘Tudo era Xuxa’ ao mesmo tempo e em todo lugar

A presença marcante no cenário cultural fez a imagem de Xuxa dominar também o mercado publicitário: de bonecas a roupas infantis, cosméticos a produtos alimentícios, material escolar a eletrônicos, calçados e acessórios. Quase tudo o que era consumido pelas crianças da época tinha o rosto da apresentadora estampado ou fazia referência à loira. Um elástico de cabelo, por exemplo, até hoje é chamado de xuxa ou xuxinha.

Em 1991, a revista “Veja” publicou que Xuxa entrava na lista dos 40 artistas mais ricos do mundo com faturamento anual de 19 milhões de dólares. Seus álbuns musicais venderam mais de 50 milhões de cópias. Um deles, o “Xou da Xuxa 3”, entrou para o livro dos recordes como o disco infantil mais vendido do mundo. No cinema, as produções que tinham a apresentadora como protagonista também alcançaram recordes de bilheteria no país.

Com o imaginário infantil explorado comercial e ideologicamente, Xuxa passou a ser um grande vetor do consumo, como defende Formiga. “Os produtos da Xuxa não só vendiam desenfreadamente como determinavam os tipos estéticos a serem seguidos. As crianças que não possuíam condição financeira de adquirir o que era imposto sentiam-se marginalizadas e excluídas”, explica.

“A necessidade insaciável de uma comunidade fez com que uma multidão de espectadores se orientassem mais pela estética do que pela ética” – Julianna Formiga.

E hoje?

Nos últimos programas em homenagem aos seus 60 anos, comemorado em 27 de março, Xuxa contou que tem buscado exercer um olhar crítico sobre o passado. No programa “Altas Horas”, declarou que “não era preparada para isso” e que até “batia boca com as crianças”. Já no programa “Saia Justa”, a apresentadora relatou que viveu  “todos os tipos de abuso no trabalho”, mas que acreditava no que fazia porque “vivia no mundo da fantasia” e achava que era protegida. Ao jornalista Pedro Bial, que produziu o documentário sobre a vida de Xuxa, a ser lançado em julho, a artista reflete sobre as problemáticas identificadas em seus programas. “80% das coisas que eu fazia no ‘Xou da Xuxa’ era politicamente incorreto. Da maneira como eu falava com as crianças, coisas que eu fazia, o jeito que eu me vestia, as músicas que tocavam. Eu teria sido crucificada se tivesse feito isso hoje em dia”, diz.

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