Como deverá ser a volta às aulas enquanto a pandemia durar?

Uma ressignificação dos sentidos da educação infantil deve pautar a volta às aulas para não voltar ao que era antes

Laís Barros Martins Publicado em 18.06.2020
Imagem preto e branco de uma menina usando máscara com uma mochila nas costas denota a incerteza do retorno à escola
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Resumo

Questões de saúde e currículo são consideradas por especialistas ao comentarem como deve ser o retorno às aulas presenciais de crianças no meio da pandemia ou após o pico da doença.

A decisão de suspender as aulas como medida para conter a propagação do novo coronavírus precisou ser repentina. No início de março, escolas públicas e privadas anunciaram o fechamento temporário dos portões e a interrupção das atividades presenciais. A reabertura das escolas, por sua vez, não precisa ser de uma hora para a outra. Há tempo para elaborar com cuidado a retomada, e sobretudo entender como acontecerá a volta às aulas durante a pandemia.

Essa opor­tu­ni­da­de pa­ra ­pen­sar novas es­tra­té­gi­as pa­ra a edu­ca­ção é também um modo de evitar simplesmente voltar ao que era antes. Mas, por que estamos pressionando o retorno da escola infantil no meio da pandemia, enquanto o país ainda vive uma fase intensa da doença? Reabrir as escolas seria bom para quem, afinal?

O ciclo, do qual o vírus é apenas lupa, parece girar em torno de três elementos principais: empresas não dispensam seus funcionários e pedem o retorno gradual das atividades econômicas, os pais devem voltar a trabalhar presencialmente e as crianças precisam de um lugar onde ficar. “Nossos escritórios vão voltar em julho e a escola da nossa filha ainda não deu uma previsão. Só adiantaram que devem voltar com atividades uma vez na semana. Não temos rede de apoio e os avós da Melissa moram longe. Eu e o Ricardo ainda não sabemos o que fazer”, conta Simone Stivanin, que mora em Campinas e trabalha em São Paulo e em Itatiba.

A pandemia e o retorno às aulas

Essa lógica produtivista de uma sociedade voltada para o trabalho ignora sobretudo as mães que, historicamente, têm a obrigação de cuidar dos filhos. Sem uma organização que respeite sua rotina, muitas temem o desemprego. “A ideia é de que, para haver lucro, alguém deve se sentir explorado. Determinados grupos ligados à economia do segundo setor querem o retorno rápido das escolas, pois assim os pais poderiam regressar ao trabalho. Isto caracteriza uma visão deturpada da educação infantil como um depósito para guardar meninos e meninas. Ou ainda, numa perspectiva da escola pública, como um lugar de acesso a refeições e condições sanitárias”, defende Raquel de Oliveira, especialista em gestão e políticas educacionais, indicando a necessidade de se repensar nossos valores.

“Enquanto não colocarmos a cidadania no centro do currículo e da discussão da sociedade, ainda observaremos a escola como um depósito de gente”

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“A creche não é um cabideiro”, charge de Francesco Tonucci, de 1976, mas tão atual

Para enfrentar o desafio de onde deixar os filhos enquanto trabalham e as escolas permanecem fechadas, pais buscam até negociar alguma flexibilização com as empresas para seguir cuidando dos filhos, o que sinaliza a necessidade de reconsiderar os modelos de trabalho atuais e a carga horária praticada. “Melissa tem três anos e está na escola desde os cinco meses e meio. Pensamos em contratar uma ex-funcionária da escola dela como babá ou viajar para a cidade das vovós. A ideia é tentar alinhar no trabalho que só conseguiremos voltar com o retorno das escolas”, conta Simone, ainda sem certezas.

Como voltar e quando voltar às aulas?

O ideal é que não haja volta às aulas presenciais durante a pandemia, quepermaneçam suspensas por segurança. Para Raquel, é “inviável o retorno da educação infantil neste momento em nosso país. Precisamos de um planejamento que preserve as condições sanitárias dos profissionais e também das crianças”, diz.

Embora não haja consenso sobre datas e um calendário unificado seja inviável, agos­to é o mês mais pro­vá­vel pa­ra a re­to­ma­da, apro­vei­tan­do o iní­cio do se­gun­do se­mes­tre e o fim do inverno. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), para a Educação Básica, o mínimo é de 200 dias letivos e carga horária de 800 horas, além do tempo reservado aos exames finais.

A volta deve estar baseada no controle dos casos da doença em cada região, segundo avaliação sobre a transmissão local do vírus e de possíveis novas ondas da pandemia. “Num país continental, com diferenças substanciais entre as regiões, é preciso prever cenários diferentes para decidir o retorno, como a confirmação se o pico da doença já passou e se a ascensão de casos não existe mais”, comenta o Dr. Marco Aurélio Safadi, infectologista pediátrico do Sabará Hospital Infantil. Contudo, alerta ele, para construir evidências sólidas e pautar decisões, “me parece desastroso maquiar os dados oficiais”.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), na mesma linha de outros protocolos de reabertura das escolas, pontua que a volta deve ser gradual e cautelosa, colocando a saúde antes da aprendizagem. Discute-se en­tre as se­cre­ta­ri­as de Edu­ca­ção uma re­a­ber­tu­ra es­ca­lo­na­da. Neste mo­de­lo hí­bri­do, haveria um re­tor­no por fai­xa etá­ria, com alu­nos mais ve­lhos vol­tan­do primeiro; a ocu­pa­ção dos co­lé­gi­os em tur­nos; bem como uma combinação de ati­vi­da­des pre­sen­ci­ais e aulas a dis­tân­cia.

Para saber mais sobre o retorno às aulas na educação infantil, indicamos esta série de lives promovida por Paulo Focchi, colunista do Lunetas, em conversa com especialistas na área.

“Do ponto de vista científico”, comenta o infectologista Marco Aurélio, “ter uma ideia mais precisa do papel das crianças na transmissão do vírus parece crucial antes de traçar qualquer plano de volta às aulas na pandemia. Sempre foi muito marcante a relevância da criança na transmissão de doenças infecciosas respiratórias para a comunidade. Curiosiamente, até o momento, os dados preliminares não sugerem uma transmissão preponderante das crianças para a Covid-19. Entretanto, são evidências frágeis porque foram construídas num cenário em que crianças estão dentro de casa”, diz.

“As crianças cumpriram a quarentena com mais rigor porque não podem sair sozinhas”

Para ele, as medidas de cuidado não impedirão o círculo de transmissão – liberar a criança para ir à escola, onde ela pode contrair o vírus e se tornar vetor para a própria família, que vira alvo -, mas defende que sejam aplicadas de modo a minimizar de alguma forma o contágio. Crianças, embora manifestem poucos ou nenhum sintoma quando infectadas, são passíveis de contrair o vírus. “Não podemos nos iludir que essas medidas sejam 100% eficazes. Elas são úteis, mas devemos reconhecer que não foram testadas no ‘mundo real’”.

A orientação complementar para uma volta às aulas em tempos de pandemia é que as crianças faltem caso apresentem febre, dificuldade para respirar, diarreia, entre outras manifestações de quadro infeccioso. Para crianças mais vulneráveis, o médico recomenda “um olhar individual, para encontrar soluções até que a situação seja mais segura”.

Ajustes na rotina escolar

A escola tem a missão de planejar esse retorno, mas não sozinha. Deve contar com a ajuda de órgãos competentes (saúde, assistência social, tribunal de contas e conselhos de educação, além de cultura e esportes) em seu estado, primando pelo diálogo e pela intersetorialidade para desenvolver um plano político.

Entre as novas regras previstas para a volta às aulas durante a pandemia:

  • Evitar aglomerações: criação de horários alternativos de entrada e saída; suspensão temporária de eventos sociais em grandes grupos e permissão apenas para atividades com número reduzido de participantes; portas e janelas devem permanecer abertas; promoção de aulas ao ar livre; redução do número de alunos por turma; salas com espaçamento de pelo menos um metro de distância entre as mesas; transporte escolar sem lotação
  • Protocolos individuais de higiene básica para os alunos: triagem de temperatura; uso de más­ca­ras, exceto menores de 2 anos; lavagem constante de mãos com água e sabão; oferta de dispositivos de ál­co­ol em gel, sobretudo porque a criança costuma levar a mão aos olhos e à boca, e tem dificuldade em se proteger ao tossir e espirrar
  • Protocolos para o ambiente: higienização das superfícies tocadas pelos alunos a cada turno, bem como trocadores, berços ou colchonetes; coleta frequente do lixo; evitar o compartilhamento de brinquedos; garrafas de água individuais (bebedouros comuns devem ser usados somente para abastecê-las); cuidado especial no preparo e na oferta de refeições
  • Protocolos para os profissionais: uso de máscara, proteção para os olhos, luvas e aventais descartáveis; cuidado redobrado ao trocar as fraldas das crianças, pois o novo coronavírus pode estar nas fezes

A experiência de outros países, como China e França, em que já houve uma volta às aulas durante a pandemia, mostra uma nova organização da escola ao receber os alunos e a adoção de medidas preventivas.

Entretanto, Damaris Gomes Maranhão, especialista em Saúde Pública e Ciências da Saúde, ressalta o desafio de promover a educação integral das crianças nesse contexto de epidemia. “Como seres sociais, nem sempre é possível seguir esses protocolos, sobretudo na educação de crianças menores de seis anos. No caso dos menores de dois anos, é ainda mais difícil: não há como cuidar sem ter contato direto, para atender suas necessidades e para apoiá-las em seu desenvolvimento.”

É hora de humanizar ainda mais a educação

A experiência dos pais durante a pandemia evidenciou a complexidade que é educar uma criança. Escolas e famílias representam papéis distintos neste processo, mas devem atuar em parceria. Afinal, juntos é mais fácil encontrar soluções.

Para Raquel, especialista em políticas educacionais, “o sistema educacional já apresentava fraturas de gestão e pedagógicas anteriores à Covid-19, prevalecendo um caráter excessivamente assistencialista da educação infantil ou excessivamente conteudista nos anos posteriores”. Ela defende uma revisão da escolarização não apenas por causa do vírus, mas principalmente pelo “redesenho de currículo, colocando a cidadania (a igualdade e a equidade) no centro e a partir daí gerando ações baseadas no valor do respeito para todos, de forma a garantir acesso a direitos civis constitucionalmente adquiridos”.

“Os sistemas educacionais têm sido frequentemente cúmplices em perpetuar o racismo sistêmico. Devemos acabar com a disciplina discriminatória, o financiamento desigual da escola e a segregação, e criar políticas que honrem a dignidade de todas as crianças”

Para humanizar o currículo escolar, algumas práticas socioemocionais previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que focam na experiência, na sensibilidade e nas trocas podem ajudar. Além de atividades voltadas para o aprendizado de arte, literatura, contação de histórias e brincadeiras, proporcionar um espaço para ouvir as crianças e permitir que elas falem sobre sentimentos, medos e dúvidas é um cuidado de saúde mental importante para o momento e também para que cada um desenvolva habilidades e seja competente no ambiente social.

Damaris recomenda ainda “investir na formação da equipe escolar – profissionais de limpeza, cozinha, professores, zelador, seguranças – para um cuidado ético e afetivo ao mesmo tempo”. Para que a sociedade possa usufruir do direito à educação infantil, ela aconselha ainda rever a relação delicada entre escolas e famílias. “Revisitar o histórico de comunicação com os familiares possibilita conhecer as condições específicas de cada criança. Mais importante que mensurar a temperatura delas ao chegar à escola, é perceber sutis mudanças em suas expressões faciais, em sua postura corporal, em sua respiração, além de ouvir a família sobre seu estado de saúde e mudanças de comportamento em casa”.

Como a doença deve continuar ainda por tempo indeterminado, além da preocupação em relação ao adoecimento dos filhos e, como consequência, de outros membros da família, é preciso considerar o prejuízo da aprendizagem e sociabilização das crianças, pois é certo que haverá impactos emocionais, físicos e cognitivos no curto e médio prazo. Damaris alerta então “avaliar as consequências do fechamento prolongado das instituições educacionais para o desenvolvimento das crianças, sobretudo em famílias que residem em espaços pequenos, com várias pessoas convivendo em poucos cômodos, sem quintal, em cidades com ruas e praças sem segurança para que possam brincar”. Ou seja, há diferenças sensíveis entre as realidades de cada criança, marcadas sobretudo quando se fala em ensino público ou privado, mas não só.

“A epidemia vem ressaltar as desigualdades que já conhecíamos, mas que não conseguimos ainda superar”

Para ela, escolas, especialmente creches para menores de três anos, atendem a um duplo direito: o direito das crianças ao cuidado e o direito de pais exercerem sua profissão. Sobre a pandemia e a volta às aulas, afirma: “Na medida em que os trabalhadores retomam seus postos, lembrando que aqueles dos serviços essenciais não pararam, necessitarão compartilhar cuidados e a educação de seus filhos com as instituições educacionais”.

Com o objetivo de construir sociedades do conhecimento inclusivas, sustentáveis e resilientes, o documento “Diretrizes sobre práticas educacionais abertas durante a pandemia da Covid-19”, da Unesco, descreve abordagens inovadoras e propõe uma ação conjunta para administrar os desafios desta e de futuras crises para os estudantes, bem como para estabelecer as bases de uma integração sistemática das melhores práticas para aumentar o compartilhamento de conhecimento para a aprendizagem.

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