Como fica a rede de apoio familiar em tempos de pandemia?

Um pequeno retrato da relação das famílias com cuidadoras e domésticas e o embate social que a crise impõe a essas trabalhadoras

Laís Barros Martins Publicado em 24.04.2020
Imagem de uma menina segurando o rosto com as mãos e um olhar desanimado
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Resumo

Diferentes relações entre empregadores e empregadas evidenciam como a pandemia afeta de modo mais significativo os mais vulneráveis que, não dispensados do trabalho, precisam se expor ao risco para receber os mínimos salários e garantir a sobrevivência de suas famílias.

A situação atípica instalada com a pandemia de coronavírus levou famílias a se reorganizarem também por causa de uma eventual falta da rede de apoio, formada por escola, que suspendeu as aulas e passou a enviar conteúdo a distância às crianças; avós, que são o principal grupo de risco da doença; ou outros cuidadores e domésticas, que, como medida para conter a propagação do vírus, deveriam ser dispensados do trabalho.

Contudo, essa decisão suscita questionamentos sobre o que seria ético fazer em relação às pessoas que cuidam das casas enquanto os pais saem para trabalhar. Isso tem gerado preocupação para diaristas, domésticas e babás. Como atravessarão essa crise caso sejam dispensadas sem receber o salário? Como evitarão se expor aos riscos se seguem trabalhando dia a dia em outras casas que não as suas, somando-se às aglomerações nos meios de transporte?

Além de não ser prudente manter o serviço de uma pessoa que se desloca em trajetos diários com intenso contato humano, a recomendação mais sensata seria afastar essas profissionais e manter seus pagamentos, se não de forma integral, pelo menos negociar um valor do salário, independente se a relação de trabalho é formal ou não. Afinal, se sua diarista não está trabalhando para você, ela pode não ter outra fonte de renda. Não pagá-la seria sujeitá-la ainda mais a um momento de extrema vulnerabilidade.

A cientista política Rose Segurado alerta: “A Covid-19 expõe desigualdades entre territórios da cidade, porque a periferia acabou condensando de maneira mais significativa a pobreza”. Quem defende o isolamento tem condições mínimas de assegurar que a elas não faltará o essencial enquanto durar a pandemia. Mas, a realidade dos bairros periféricos é feita de pessoas a quem não é permitido parar de trabalhar.

Quem pode ficar em casa?

Se já se identificou que ficar em casa pode salvar vidas, essa alternativa não poderia estar ao alcance de apenas uma parte da população. Em outras palavras, o distanciamento durante a quarentena deveria ser acessível a todos, não um privilégio.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 6,3 milhões de pessoas prestam serviços domésticos no Brasil. Desse grupo, apenas 1,5 milhão trabalha com carteira assinada. Essa desigualdade, vale lembrar, ficou evidente logo na primeira morte por suspeita de coronavírus, no Rio de Janeiro, em 17 de março: uma idosa de 63 anos que cuidava da patroa cujo teste havia dado positivo para Covid-19 após retornar de uma viagem à Itália.

Considerando esse quadro, mas também para socorrer os mais vulneráveis economicamente, foi aprovada no Congresso a renda básica emergencial pelo período de três meses. O benefício de 600 reais ajudará pelo menos 100 milhões de pessoas a atravessar a crise sanitária. Para Rose, “é evidente que um auxílio de 600 reais não é suficiente para manter uma família, alimentação adequada para garantir imunidade e ainda comprar produtos de higiene indicados como forma de combate ao vírus”.

“Não é nem um salário mínimo”

Trabalhadoras dispensadas e não dispensadas

Dados levantados pelo Instituto Locomotiva indicam que 39% dos empregadores de mensalistas e 48% dos de diaristas promoveram as condições para que suas funcionárias permanecessem em casa para cumprir o distanciamento social, recebendo o pagamento. Patrões que abriram mão do serviço dessas profissionais sem manter o pagamento durante a pandemia são 39%. Entre os empregadores que mantêm suas funcionárias trabalhando normalmente, apesar da quarentena, são 23% de diaristas e 39% de mensalistas.

Gilmara Sena Santos é mensalista há cinco anos para a mesma família e foi afastada durante a quarentena com o salário mantido, que tem sustentado a família já que o marido foi dispensado do trabalho. “Meu patrão chegou e falou ‘como vai ser daqui pra frente?. Você tem filho, vai pegar ônibus e se expor ao risco. Pode sair de lá bem e se contaminar no caminho ou levar o vírus daqui pra lá’”, conta. “Eu disse que queria continuar trabalhando, que usaria máscara. Eu ainda insisto, ‘me deixa ir, não tô aguentando’, mas não teve jeito”.

Foi essa também a decisão de Murielle Reis, que dispensou a faxineira semanal nesse período “para preservar a saúde dela e da minha família”.

“Segui as recomendações do Ministério da Saúde sobre o distanciamento social e mantive o pagamento, porque acho que é a coisa certa a fazer. Além da consideração pela profissional que está comigo há mais de 15 anos”

A cada dia, Murielle e a filha Letícia, de 5 anos, tentam equilibrar a rotina e essa falta de uma rede de apoio na pandemia, aproveitando a oportunidade para conversar sobre o privilégio de contar com ajuda externa de uma empregada. “Incentivo que ela ajude em coisas simples do dia a dia e entenda que, para ter as coisas organizadas, precisa organizar”, diz.

O Sindicato dos Empregadores Domésticos do Estado de São Paulo (Sedesp) definiu algumas medidas para preservar a saúde de empregados e empregadores, como flexibilizar os horários daqueles que utilizam transporte público; e, em caso de suspeita da doença, exigir que permaneça em casa até receber alta médica. Deixa como facultativo ao empregador oferecer materiais de segurança; apenas máscaras aparecem como itens a serem disponibilizados gratuitamente. O Sedesp informa ainda que acompanhará cada caso de empregado que apresente o sintoma ou tenha o diagnóstico de Covid-19 confirmado.

Para Juliane Ramos, fisioterapeuta em um hospital público de São Paulo, o trabalho essencial precisa seguir presencialmente. “Desde o início da pandemia fomos realocados e as escalas mudaram. Os plantões de fim de semana serão mais corriqueiros e o contato com pacientes infectados, maior”. O marido, que não atua na área da saúde, “está tentando se dividir entre o trabalho e os cuidados com o nosso filho Benjamin, de 4 anos. Não sei se no trabalho dele entendem a dificuldade de ter uma criança pequena em casa, sem mais gente para ajudar”. Para eles que não tinham empregada doméstica, na pandemia a rede de apoio que mais tem feito falta é a escola. “Nos sentimos sobrecarregados com funções demais a exercer e com medo.”

É sobretudo para famílias de trabalhadores de serviços essenciais que têm filhos pequenos, mas também famílias que não querem abrir mão desse serviço, que muitas domésticas continuam trabalhando. Contudo, existem empregadores fora desse quadro que simplesmente ignoram os riscos reais da pandemia, como relata Gil:

“Tenho colegas que não foram dispensadas e comentaram com os patrões que estavam com medo de pegar o vírus. Eles responderam que isso é mentira, que [as notícias do] pessoal morrendo é para assustar o povo”

Além de ser “imperativo para famílias que necessitam dessa pessoa flexibilizar horários e promover formas de diminuir a exposição aos riscos”, Rose recomenda ainda, “cada um em seu lar, repensar essa realidade social e histórica de precisar de uma empregada, herança de uma tradição escravocrata, perpetuando uma realidade de desigualdade, sendo que o Brasil concentra o maior número de empregados domésticos do mundo. Não no sentido de desassisti-las. Pelo contrário, garantir que seja uma mão de obra melhor remunerada e observar o cumprimento de seus direitos”.

Como fica a rede de apoio na pandemia?

Pesquisas até agora indicam que, embora sejam importantes vetores da doença, crianças contaminadas pela Covid-19 apresentam apenas sintomas leves. É natural, ainda assim, se preocupar com os filhos e querer ajuda externa, uma rede de apoio para cuidar deles durante a pandemia. Mas talvez o exercício empático seja entender que essas mulheres também têm suas próprias famílias e que muitas têm filhos pequenos que as aguardam voltar ao final de cada jornada de trabalho.

Gil compara essa nova rotina mais próxima da sua família do que a de outra pessoa: “Antes, eu chegava em casa só para botar os meninos [Antônio Carlos, 10, e David Luiz, 7] para dormir. Só tinha tempo de brincar com eles no fim de semana. Tem sido cansativo e um pouco estressante, porque moramos em dois cômodos. Mas é bom perceber que eles sentem falta de brincar com o pai, que está mais presente agora. Hoje eu dou mais valor, isso [o vírus] veio pra mudar a gente”.

“É uma realidade muito cruel essa de muitas mulheres que gastam um tempo considerável de deslocamento, passam oito horas com uma criança e, ao voltar para casa, ainda precisam dar conta da atividade doméstica do seu lar e dar atenção aos seus filhos”, pontua a cientista política.

“Domésticas são igualmente essenciais e também merecem o aplauso de todos nós”

O principal embate social destas vivências diferentes de empregadores e empregadas por conta da pandemia é, para Rose, a condição de invisibilidade que coloca essas trabalhadoras como pessoas que podem correr o risco.

“O mais trágico é afetar sobretudo essa mulher em condições vulneráveis. É pedir que coloque sua vida em exposição, o que pode levar à morte. Como não há direitos, ela se arrisca”

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