Facilitação da posse de armas para civis e comprometimento da saúde mental de crianças e adolescentes são algumas hipóteses apontadas por especialistas
O aumento de casos de violência com armas de fogo em escolas alerta estudantes, pais e educadores. Especialistas apontam as causas relacionadas ao crescente índice de ocorrências, além de apontar caminhos para proteger e cuidar das vítimas e também dos agressores.
O professor Agnaldo Xavier saiu de casa para uma jornada normal de trabalho, no dia 13 de março de 2019. Deveria ter passado o dia ensinando matemática, mas precisou servir de escudo para proteger a vida de 60 alunos em um episódio de violência armada em escolas. Ele era um dos educadores que estavam dentro da Escola Estadual Professor Raul Brasil, na cidade de Suzano, em São Paulo, onde dois ex-alunos entraram e atiraram em estudantes, professores e funcionários. Dez pessoas morreram. Os traumas permanecem. Aquele não foi um caso único.
O caso de Suzano é um dos cinco ocorridos nos últimos cinco anos, em que atiradores entraram em centros educacionais do país e deixaram vítimas. Um levantamento realizado pelo Instituto Sou da Paz mostra que, entre 2002 e 2019, foram oito situações. Se considerado o histórico da última década, são seis ocorrências. Nesse último semestre, em menos de 10 dias, foram dois episódios.
Um deles ocorreu no início de outubro, na cidade de Sobral, no Ceará. Um adolescente entrou em uma escola pública e atirou em três estudantes, levando um deles à morte. O outro aconteceu em Barreiras, na Bahia, no fim de setembro. Um aluno de 14 anos, portando um revólver calibre 38 e duas facas, atirou contra estudantes dentro de uma sala de aula e matou uma aluna. Se forem contabilizados os casos sem vítimas, houve ainda outra situação, em agosto deste ano, quando um ex-aluno de 18 anos invadiu uma escola em Vitória, no Espírito Santo, com flechas, facas e garrafas de coquetel molotov.
A violência armada dentro de escolas brasileiras se torna uma preocupação cada vez maior. Não existem estudos que expliquem os motivos exatos para essa crescente, mas especialistas em educação infantil e em segurança pública entrevistados pelo Lunetas apontam algumas hipóteses, que vão desde o aumento do número de armas nas mãos de civis até o comprometimento da saúde mental de crianças e adolescentes.
“A violência armada sempre existiu no Brasil, este é um problema de muitas décadas e que atinge de maneiras diferentes cada região do país. Mas, nos últimos anos, episódios trágicos e inaceitáveis têm se tornado cada vez mais frequentes, como alunos baleados dentro de escolas ou crianças que, ao brincar com armas de fogo, sem querer, acabam atirando em irmãos ou em outros familiares“, explica Maria Isabel Couto, diretora do Instituto Fogo Cruzado. Embora não haja um levantamento específico de casos como esses, afirma, é possível perceber que estamos enfrentando uma dispersão da violência e uma diversificação das formas como ela ocorre.
Há uma dificuldade de registro formal das ocorrências de violência armada dentro de escolas, pois no Brasil não há na legislação uma denominação específica para esse tipo de crime. Isso dificulta a coleta estatística e análise de padrão desses casos, de acordo com Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz. Entretanto, segundo ela, a partir de análises de publicações na mídia, é possível identificar a escalada desse tipo de fato dentro das escolas brasileiras, que pode ser classificada em duas dinâmicas. Uma delas é a de crianças e adolescentes levando armas de fogo para a escola, por curiosidade, para mostrar aos amigos ou por se sentirem ameaçadas, entre outros motivos, mas sem realizar disparos. Há também aqueles casos em que a arma não só é levada, mas usada dentro das escolas.
Há alguns meses, o Instituto Fogo Cruzado vem monitorando e publicando semanalmente uma lista no Twitter com a hashtag #TragediasComArmas. O que se percebeu é que as tragédias que antes envolviam uma ou duas pessoas, cada vez mais estão encerrando a vida de muitas de uma só vez. “Como um caso recente que vimos no Ceará em que uma comunidade escolar inteira foi marcada por uma arma que não deveria estar fora de um cofre, que não deveria estar dentro de uma escola”, afirma Couto. “Isso se deu porque a violência que até a primeira década de 2000 [quando entrou em vigor o Estatuto do Desarmamento] era um problema, agora, é vista como solução.“
Para Pollachi, há três fatores que contribuem para esse aumento. O primeiro é a facilidade de acesso à arma de fogo, pois segundo o Sou da Paz, em mais da metade dos casos a arma estava na casa da criança ou adolescente que cometeu os crimes ou de parentes próximos. Essa questão se conecta diretamente à facilitação de registro de armas de fogo no Brasil. Desde 2019, há um aumento de licenças concedidas ao grupo identificado como CACs (colecionadores, atiradores esportivos e caçadores). Nos últimos dois casos mencionados no início desta reportagem, da Bahia e do Ceará, as armas usadas pelos estudantes eram provenientes desse grupo. “Esse é um fator de risco grande, pois crianças e adolescentes com acesso à arma não só facilita a violência em escolas, como aumenta a sua gravidade.”
O atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), publicou 42 regulamentos facilitando o acesso ao porte e à posse de armas para os CACs nos últimos três anos, gerando um total de 1,3 mil armas novas adquiridas por civis, por dia. Por meio de portarias e decretos, ampliou o acesso de 50 para 200 munições compradas anualmente, facilitou a aquisição de seis armas sem justificativa e, ainda, autorizou a compra de aparatos com calibres quatro vezes mais potentes dos que os que podiam ser comprados antes.
“Quando atores políticos estimulam o uso de armas, trabalham para facilitar o acesso a elas e insinuam que a população deve resolver conflitos através das armas, fecha-se um ciclo grave que favorece a violência”, explica Couto. “O Brasil é um dos países onde mais se mata no mundo. Mas agora, temos mais armas nas ruas, e os mecanismos de fiscalização e investigação não acompanharam essa flexibilização do uso de armas. O resultado disso é que desviar armas ficou mais fácil e que essas tragédias tornaram-se ainda mais comuns.”
Segundo a diretora do Fogo Cruzado, há ainda uma tentativa de grupos pró-armas brasileiros dialogarem com jargões e narrativas que circulam nos Estados Unidos. Estes distorcem e descontextualizam a ideologia defendida na segunda emenda da constituição norte-americana que protege o direito da população e dos policiais de garantir a legítima defesa, seja por meio de manter ou portar armas ou qualquer equipamento. “É importante ressaltar que Brasil e EUA são países muito distintos, com dinâmicas e questões internas diferentes em relação à segurança pública e o fenômeno da violência”, explica.
“Crianças e adolescentes brasileiros já convivem intensamente com uma rotina de violência armada que gera traumas, prejudicando a aprendizagem e afetando seu desenvolvimento cognitivo”
Apenas no primeiro semestre de 2022, o Fogo Cruzado registrou uma média diária de 10 tiroteios no entorno de escolas no Rio de Janeiro. No primeiro semestre de 2019, essa média era de 23 tiroteios por dia. Veio a pandemia, as escolas fecharam, os números caíram, mas ainda num patamar inaceitável. “Este é um aspecto do problema real de segurança pública que o país precisa enfrentar e isso não se resolve com mais armas nas ruas”, conclui Couto.
Mais de três anos após o ocorrido na escola de Suzano, o professor Agnaldo Xavier ainda vê ao seu redor a repercussão de tudo que viveu naquele março de 2019. Ele não desistiu de ser professor e permaneceu dando aulas, mas acompanhou outros colegas que não conseguiram voltar ao prédio da escola. Em casa, a esposa e os dois filhos sofreram impacto na saúde mental, chegando até a desenvolver crise de pânico. O próprio Agnaldo, nos primeiros meses após o ocorrido, sequer conseguia controlar o choro e foi vencendo a dor com o suporte de psicólogos disponibilizados para estudantes e funcionários. “Foi um momento triste na história de todo mundo”, lembra.
Os crimes com armas de fogo dentro de escolas carregam algumas similaridades. Os motivos para os ataques são difusos, mas costumam ocorrer no local onde o aluno estuda ou já estudou e geralmente são cometidos por alunos homens, com histórico de problemas de saúde mental ou episódios traumáticos familiares e escolares. No caso de Sobral, no Ceará, o atirador contou que sofria bullying na escola.
A psicóloga especialista em trauma Ediane Ribeiro afirma que existe uma crescente também de diagnósticos de ansiedade e depressão em crianças e adolescentes. Para ela, isso precisa ser considerado quando avaliamos o cenário da violência nas escolas. “As rotinas, formas de contato social, as pressões da vida moderna, a qualidade dos hábitos de vida, tudo isso influencia a saúde mental que é um componente social”, explica.
“O aumento da violência armada nas escolas nos levam a pensar em como nossa sociedade está adoecendo”
Segundo Ribeiro, outro fato importante no desequilíbrio emocional de uma criança ou adolescente é a ausência de um adulto que o ajude a regular a compreensão das emoções. “Soma-se a esse fato questões mais amplas, como o uso da tecnologia”, acrescenta.
“O acesso muito cedo às telas diminui a sociabilidade na infância. E a sociabilização é um fator de regulação emocional”
Entretanto, os estudos disponíveis ainda não permitem colocar o adoecimento mental das crianças como causalidade para a violência armada dentro das escolas. “Pode-se falar de correlação. Um dos sintomas do adoecimento mental ou de um trauma é a hiperativação do sistema nervoso simpático, o que ativa as defesas de sobrevivência. Então, nós podemos reagir a um trauma lutando, fugindo ou congelando. A luta é uma reação desproporcional àquilo que estou vivendo”, explica a psicóloga.
Quando acontece um ataque nas escolas, há muitas vítimas, inclusive o próprio autor ou autora da violência. Como mostra a história do professor Xavier, as sequelas demoram para serem curadas. Para a psicóloga, as atitudes podem ser, antes de tudo, preventivas, a fim de evitar as reações extremas, como invasões e mortes dentro de escolas. Segundo Ribeiro, uma criança não costuma chegar a um ato extremo sem dar sinais, mas nem sempre eles são os mais óbvios.
“Precisamos estar mais atentos a crianças que têm tendência ao isolamento, que são quietas demais, embora a nossa sociedade possa associar isso a ‘bom comportamento’. Criança dá trabalho, faz parte do desenvolvimento”, diz. Outros sinais de desregulação emocional que podem chamar a atenção são alteração de sono, alimentação, dificuldade de concentração, foco, relaxamento e evitar lugares e pessoas.
Quando a situação já ocorreu, entretanto, também é preciso intervenção. O trauma, nesse caso, é coletivo: da escola, da família, de crianças e adolescentes e dos funcionários. Como é uma situação inesperada e dramática, nem todas as pessoas presentes terão recursos psicológicos para lidar com isso. Outra questão importante, mas pouco abordada, é desenvolver serviços e mecanismos para tratar o agressor. “Não é só terapia, é pensar a organização familiar e de rotina dele. Temos dificuldade em dar o direcionamento adequado a essas pessoas, que são julgadas socialmente”, afirma a psicóloga.
Também é preciso acolher alunos que estavam na escola no momento do ocorrido, seus professores e familiares. Além da psicoterapia, um caminho é oferecer rede de apoio, que facilite identificar sintomas de um eventual transtorno pós-traumático (comportamento evitativo, pensamento repetitivo, pesadelos, memórias intrusivas, entre outros). Os sintomas são preocupantes quando acontecem por mais de quatro semanas depois do ocorrido.
Dentro da rede de apoio, é importante para crianças e adolescentes terem contato com adultos que transmitam a sensação de segurança, para que eles se sintam seguros a retomar a rotina e fazer atividades prazerosas. A escola precisará de especialistas em manejo de situação de crise, por ter se tornado o cenário da violência e, para onde, muitas vítimas voltarão. “Não é algo que dá para fugir, fingir que não aconteceu e seguir a rotina letiva normal. É preciso parar e elaborar”, acrescenta a psicóloga.
O professor Xavier sugere ampliar a segurança nas escolas e colocar mais profissionais atuantes na área para monitorar a movimentação dos estudantes. Entretanto, Natália Pollachi alerta sobre o cuidado de não transformar as escolas em espaços militarizados. “Colocar detector de metais e segurança armada pode ser uma armadilha. A escola precisa ser um espaço seguro, de acolhida, de aprendizado e desenvolvimento. Essas ações não são práticas, nem efetivas”, defende.
Ela acredita que uma redução na frequência desses casos passa por mudar as legislações que flexibilizam e facilitam o acesso a armas de fogo no Brasil. Também recomenda a formação de profissionais da escola para que saibam identificar os conflitos que estão acontecendo, seja entre estudantes ou estudantes e professores. Isso envolve não só a pedagogia, mas serviço social, psicólogo e outros. Para Polacchi, é preciso ainda falar sobre o tema com estudantes, funcionários e pais, nas salas de aula e em reuniões.
“Muitas vezes, as crianças estão com medo de que um episódio ocorrido em outro lugar se repita lá. Ou os pais têm armas em casa e precisam saber da responsabilidade que isso traz, pois as crianças são curiosas.” Há ainda outros atores nessa construção, como os meios on-line, os veículos de comunicação e quem dissemina conteúdo sobre esses acontecimentos. A forma como a história é divulgada, segundo ela, pode estimular um comportamento repetitivo em outros jovens. Em lugares como os Estados Unidos, alguns desses crimes têm como motivação a fama que o agressor receberá após o ocorrido.
No Brasil, os recentes ataques trouxeram uma onda de boatos de massacres em escolas, com pichações sugestivas e discussões em conversas em redes sociais e aplicativos de mensagens. Outro papel compete às instituições de segurança, que precisam desenvolver metodologias para identificar possíveis organizações de ataques às escolas, o que passa por um monitoramento de fóruns de internet, de conhecimento das escolas na região de atuação e de formação dos policiais.
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Nos Estados Unidos, a violência armada em escolas alcança uma média anual de 28 mortos e 59 feridos. Só neste ano já foram 37 ocorrências com vítimas, segundo o Education Week.