Uma conversa sobre perda gestacional com as crianças

Especialistas defendem naturalizar o diálogo e permitir que as dúvidas das crianças guiem conversas difíceis como o luto por um bebê que não vem mais

Carolina Pelegrin Publicado em 15.05.2025
Foto em preto e branco de duas crianças, uma mais velhade óculos que olha para o lado, e outra mais nova que segura uma pelúcia também capisbaixa.
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Resumo

Abertura para ouvir as perguntas das crianças é um caminho para guiar conversas difíceis, como o anúncio da perda de um irmão que ia nascer. Segundo especialistas, as famílias precisam de acolhimento humanizado.

“A perda gestacional para uma criança representa, muitas vezes, a perda de uma fantasia”, diz Carolina Serebrenick, especialista em terapia familiar. Então, em vez de fazer desse momento algo solene, ou simplesmente esconder e subestimar o poder de entendimento da criança, a psicóloga defende o equilíbrio. A ideia é propor a conversa tendo como régua as dúvidas que a própria criança traz.

Foi assim que Rachel Evelyn Ribeiro e o marido Guilherme Santos decidiram preparar o filho mais velho Lorenzo, na época com 4 anos, para a incerteza sobre o futuro do irmão Rael. Isso porque o casal recebeu o diagnóstico de displasia esquelética, uma alteração anormal no desenvolvimento de tecidos ou órgãos, no bebê que estavam esperando.

Então, conforme o momento da cesárea se aproximava e a iminência de um bebê com displasia severa se confirmava, os pais começaram a conversa enquanto assistiam a um desenho antes de ir para cama: “Filho, o Rael tá quase nascendo e talvez ele vá nascer doentinho. Então, talvez Deus queira levar ele”, conta Rachel.

Para Lorenzo, a expectativa de acelerar o tempo para conhecer o irmão se transformou em dúvida: “Por que Deus ia querer levar ele?”, perguntou para a mãe. Naquela noite, o menino chorou e disse que não queria que aquilo acontecesse. Nos dias seguintes, no entanto, não questionou os detalhes. Durante os três dias em que Rael ficou na UTI da maternidade Santa Brígida, em Curitiba, o irmão foi o único que pôde conhecê-lo além dos pais. “Ele disse: ‘ai, que fofinho meu irmão’”, relembra a mãe.

A importância de abrir espaço para o diálogo

Para Carolina Serebrenick, a dúvida direciona a capacidade de entendimento das crianças. “As questões são elaborações que elas fazem sobre momentos difíceis da vida. O que elas perguntam é aquilo que conseguem absorver e elaborar”, esclarece a psicóloga.

Ou seja, se a criança não alonga aquele assunto, não cabe aos cuidadores insistir. Carolina defende, ainda, que as conversas difíceis podem partir de um lugar de escuta, abrindo espaço para fluir com naturalidade. Aqui é preciso ter a sensibilidade para não se antecipar e impor informações, mas também não subestimar o poder de compreensão que elas têm.

Com formação em pedagogia, Rachel já havia estudado sobre a importância de naturalizar o diálogo sobre questões difíceis como o luto. “Acho que ele tem que saber lidar com esse tipo de coisa e entender que isso vai acontecer”, defende. Apesar de ter uma rede de apoio familiar forte, decidiu que ela mesma contaria para Lorenzo sobre a partida do irmão.

Além dos familiares, a escola também pode ser uma aliada para avaliar como a criança está lidando com a perda. “Eu escrevi um bilhete para professora, pedindo para me avisar caso notasse alguma diferença no comportamento do Lorenzo”, detalha Rachel.

“Às vezes a própria criança traz um ritual que ela quer fazer. Um desenho, uma cartinha, uma música”, explica a psicóloga. Segundo ela, cada criança terá suas especificidades e apresentará uma forma de se despedir.

Com Lorenzo, por exemplo, a mãe percebe nos pequenos momentos da rotina a lembrança saudável que ele carrega do irmão. Uma vez, ao serem questionados em um restaurante para quantas pessoas seria a mesa, Lorenzo respondeu: “Mesa para quatro. Tem meu irmãozinho Rael. Ele não está aqui, mas está sempre presente!”

As memórias de um irmão que não veio para casa

Há mais de 20 anos, Daiany Martins Visocki percebeu que o dia era incomum quando não viu os pais na saída da escola. Quem apareceu foi a tia. Ao chegarem em casa, ela deu a notícia: “Teu irmão virou uma estrelinha.” Na época, Daiany tinha 10 anos.

“Eu não entendi, pois não fazia sentido para mim”, recorda. Mesmo assim, o apoio de familiares e da comunidade foi essencial para enfrentar os primeiros dias após a perda. “A vida foi seguindo assim. Eu não lembro muito, mas acho que é esse o efeito do trauma. Algumas coisas vão se apagando da memória”, conta Daiany.

O que ela sabe é que foi por um erro médico que a mãe perdeu o bebê dias antes do nascimento. “Muitos dos meus traumas hoje são devido a essa perda. É como se eu tivesse que compensar essa falta e ser boa em tudo”, revela ao se lembrar da resistência em tratar o assunto na infância e adolescência.

Para Carolina Serebrenick, “não falar nada também pode ser um sintoma”. Segundo a psicóloga, se aos 6 anos as crianças ainda não conseguem formular muita coisa sobre a perda, aos 10 é comum que o entendimento passe a ser similar ao dos adultos.

Nesse desenvolvimento, se as perguntas mudam, as respostas têm que se adaptar. Além disso, não querer falar sobre o assunto ou mudanças no comportamento também são sinais. Por isso, procurar ajuda é fundamental.

Daiany acredita que tanto ela quanto sua família deveriam ter sido encaminhados para um acompanhamento profissional. “Meu pai já estava em uma depressão tão forte que não quis ir atrás, mas na época ninguém falava disso”, lamenta.

Redes de apoio e orientação humanizada

Quando uma mãe é amparada corretamente, é possível amenizar as infelicidades de uma perda gestacional e aliviar o trauma familiar. Contudo, nem sempre quem dará as notícias difíceis para a gestante será a obstetra que a acompanha no pré-natal.

“Muitas vezes, esse diagnóstico vai ser feito por alguém que nunca viu aquela pessoa”, explica Beatriz Dutra, ginecologista e obstetra especialista em Medicina Fetal. Portanto, é comum que o médico técnico durante o primeiro ultrassom seja o primeiro a dar a notícia de uma gravidez de risco. Ou então, o profissional de uma emergência, que é para onde as mães vão após sofrer um aborto.

Segundo ela, devido a essa segmentação, muitos lugares não têm estrutura para as conversas delicadas, o que resulta no atendimento sem humanização. Isso porque o médico ultrassonografista geralmente dispõe de uma linguagem técnica e, diante de um diagnóstico grave, muitas vezes não estará preparado para acolher e orientar a mãe.

Não à toa, Rachel se recorda da resistência desenvolvida pelo médico responsável por seus exames e posteriormente o desamparo e decepção com a sua obstetra. “Achei que faltou um pouco da parte dela como humana. Não me senti acolhida”, lamenta.

Na época, ela optou por mudar de médico e encontrou um especialista em gravidez de risco. Assim, pôde ter o acolhimento que buscava. “Ele foi um anjo”, define. O mesmo médico indicou que Rachel procurasse apoio em grupos de mães que também esperavam bebês com displasia. Ela lembra que não se sentia à vontade para falar com muitas pessoas sobre o caso, por isso, os grupos foram um lugar de conforto.

Para a obstetra Beatriz Ribeiro, o profissional não pode ser dúbio. Portanto, ser claro, direto e objetivo não é sinônimo de desamparo. Da sua experiência em atendimento de emergência dentro do SUS, ela explica que nesse sistema “as pacientes têm uma chance de se preparar e serem encaminhadas para uma psicóloga”. Inclusive familiares e até irmãos menores podem estar presentes em contextos de emergência.

Quando é inevitável que informações difíceis sejam compartilhadas, Beatriz recomenda sensibilidade. Por isso, o questionamento inicial procura certificar se a mãe entendeu o que foi dito. Na sequência, busca-se entender se o acompanhante também compreendeu a informação. “É importante dar tempo para a pessoa processar aquilo que foi dito. Dar tempo para que perguntem o que precisam. Se for o caso, até chorar.”

Como iniciar uma conversa difícil com as crianças? 

  1. Escuta ativa: mais do que falar, nesse momento é importante que os pais permitam que a criança expresse seus sentimentos e faça perguntas. Isso valida as emoções dos pequenos e cria um espaço seguro para que ela possa compartilhar suas preocupações e tristezas.
  2. Seja honesto e claro: quando falar sobre a perda, é importante usar uma linguagem que a criança compreenda. Por isso, evite eufemismos. Na intenção de suavizar a mensagem, é provável que gerem confusão. Ser acessível ajuda a criança a processar o que aconteceu e reduz a angústia vinda do não entendimento.
  3. Rotina: manter a rotina diária da criança proporciona estabilidade e segurança, essencial em um momento de dor. Retomar atividades, como ir à escola e brincar, e normalizar a nova realidade é bom tanto para as crianças quanto para os adultos.
  4. Expresse suas emoções: ao demonstrar emoções como a tristeza, os pais ensinam ser natural sentir dor e que o luto é uma parte do processo de cura. Isso ajuda a criança a entender que todos estão lidando com a perda e que é aceitável chorar e sentir saudade.
  5. Diálogo constante: se as perguntas sobre a perda voltarem a surgir, mantenha a comunicação aberta. As novas conversas auxiliam a criança a compreender a situação com o tempo e promovem um sentimento de conexão familiar, essencial para amenizar as angústias.

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