Série ‘Adolescência’ lança olhar profundo às relações parentais

Série da Netflix traz à tona temas como a responsabilidade de toda a sociedade no cuidado dos adolescentes e os riscos do uso da internet sem supervisão

Célia Fernanda Lima Publicado em 24.03.2025
Imagem mostra cena da série Adolescência, da Netflix. Eddir, um homem branco está sentado ao lado fo filho Jamie, um adolescentes branco que chora com a mão no rosto.
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Resumo

Série ‘Adolescência’ tem camadas profundas sobre o cuidado de meninos e meninas dentro e fora da internet, além de levantar questionamentos sobre a presença dos pais na rotina dos adolescentes.

Jamie tem 13 anos e é o principal suspeito do assassinato de uma colega da escola. Apesar da notícia do crime ser o ponto de partida da série “Adolescência”, da Netflix, este não é o foco da narrativa. Nos quatro episódios, o principal objetivo é compreender o que está por trás da violência entre meninos tão jovens. Assim, o roteiro explora intimamente cenas de conversas na delegacia, na escola, em uma sessão de terapia e na própria casa de Jamie para entender os motivos – nem tão diretos – que apontam o menino como um infrator.

A série se tornou a mais assistida da plataforma em 71 países nos últimos dias após o lançamento, no meio de março. Além da temática complexa sobre a formação de um adolescente capaz de cometer atos violentos, a história inquietou os telespectadores, sobretudo pais e mães, que passaram a refletir sobre a criação de seus filhos.

Desenvolvida pelo ator Stephen Graham, que interpreta o pai de Jamie, “Adolescência” aborda os riscos das pressões sociais que crianças e adolescentes enfrentam. Além disso, toca em pontos sensíveis da parentalidade e os medos mais profundos de cada pai e mãe. Ao portal Tundum, da Netflix, Graham declarou:

“Um dos nossos objetivos era perguntar: ‘O que está acontecendo com nossos jovens hoje em dia e quais são as pressões que eles enfrentam de seus colegas, da internet e das mídias sociais?’”

Filmada inteiramente em plano sequência – quando não há cortes nas cenas-, a ideia é prender o telespectador dentro da história, proporcionando uma experiência imersiva ao estar tão próximo da perspectiva dos personagens. Desse modo, acompanhamos de muito perto a angústia de Eddie, pai de Jamie, ao ver seu filho sendo preso; a inquietação do detetive Bascombe ao conhecer os bastidores da escola onde os suspeitos estudam; e a intimidade da família Miller.

Os recortes de tempo para cada episódio também apontam para um processo sobre os sentimentos e as revelações dos personagens. De alguma forma, todos se questionam sobre os motivos daquele crime. Enquanto isso, a busca por respostas traz elementos sutis do cotidiano de Jamie e que atravessam quase todos os outros adolescentes de sua geração.

Contar uma história com um ‘porquê?’ em vez de um ‘quem foi?’ nos permitiu explorar outras questões, como ‘o que se passa com os nossos rapazes adolescentes?’”, pontua Jack Thorne, co-criador da série.

Como o ambiente influencia na formação dos adolescentes

“Adolescência” não se volta para uma investigação policial ou um julgamento hollywoodiano, mas propõe juntar um quebra-cabeça mais complexo sobre como Jamie chegou até ali. Na verdade, ele parece ser um “menino normal” que anda com outros meninos e tem um pai como referência masculina. E isso faz com que os adultos ao seu redor, seja na escola ou dentro de casa, não percebam indícios de sofrimento ou sua incapacidade de lidar com as próprias emoções. Nos detalhes, a série também amplia o olhar para a ideia de masculinidade e de como os próprios meninos são pressionados a manifestá-la em todos os ambientes.

“Adolescentes estão inseridos em macro e microculturas, dentro e fora da internet”, aponta Filipe Colombini, psicólogo parental. Segundo ele, o personagem não é um jovem que tem um diagnóstico de algum transtorno. Mas representa meninos típicos, dentro de uma família funcional e que ficou suscetível a discursos violentos em ambientes digitais.

“O adolescente da série não comete um crime por ser mau ou porque precisa ser internado e tomar remédios”, explica Colombini. “O recorte é mais externalista, pois conta como os sentimentos dele e a influência das condições ambientais, como as regras culturais do grupo de amigos, por exemplo, compõem a construção desse menino.”

Jamie precisa validar um sentimento e descobrir, aos poucos, sua identidade. O processo é como o de qualquer menino ou menina que quer descobrir o que os outros pensam dele. Dessa forma, se encaixam em grupos e rótulos, mas nem todos lidam bem com isso, sobretudo no ambiente das redes sociais. “Para um adolescente isso é mais complexo, pois ele passa pela fase de questionar sua identidade e sua inclusão social”, diz o psicólogo.

Um adolescente e uma mulher sentados de frente para o outro em uma mesa.
Jamie revisita episódios da infância e do cotidiano na escola quando questionado pela psicóloga sobre a relação com o pai e outros colegas.

Ao contar sobre a relação que tinha com a vítima, Jamie cita episódios que levam o telespectador a entender os elementos de sua personalidade. A conversa com a psicóloga visita fatos da infância com o pai, troca de mensagens nas redes sociais com colegas e referências a estereótipos de gênero disseminados na internet, como ser um “incel” e a “red pill”, por exemplo.

“Isso mostra a construção contínua da personalidade dele, que vai levando a comportamentos morais, amorais ou civilizados”, ressalta Colombini. Mas a discussão não encerra em uma confissão ou no fechamento de um perfil do adolescente, pois os reflexos de quem Jamie se tornou ou está se tornando tocam profundamente todos os outros personagens.

A linguagem virtual dos jovens

“Adolescência” cita palavras de uma linguagem virtual que muitos jovens utilizam em redes sociais e plataformas online, mas que alguns adultos desconhecem. Isso fica evidente no episódio em que o detetive Bascombe investiga a motivação do assassinato na escola dos suspetios, e é surpreendido pela interpretação do próprio filho, também aluno da escola. Algumas expressões são carregadas de preconceito, estereótipos de gênero e discurso de ódio. No entanto, não é possível afirmar que tudo o que os adolescentes trocam nas conversas têm um sentido negativo. Mesmo assim, entenda alguns termos que a série mostra:

  • Red pill: movimento traduzido como “pílula vermelha”, inspirado no filme Matrix. Homens defendem a masculinidade dominante e acusam mulheres pela culpa da queda da virilidade.
  • Incel: referência a um grupo de homens e meninos que se intitulam “celibatários involuntários”. Ou seja, eles seriam incapazes de encontrar um parceiro romântico por culpa das mulheres e dos estereótipos que elas supostamente preferem. Fomentam discursos de ódio a qualquer grupo sexualmente ativo.
  • Emoji: recurso visual para a linguagem em mensagens online com símbolos e ilustrações.     

Um alerta para o uso da internet sem supervisão

Quando pai e mãe refletem sobre suas culpas pelo comportamento de Jamie, o diálogo revela que eles não sabiam o que o filho fazia na internet. “Ele não saía do quarto. Chegava, batia a porta e ia direto para o computador”, diz a mãe, Amanda. Na conversa, Eddie então questiona: “Deveríamos ter feito mais?”

Ano passado, em entrevista à Folha de São Paulo, a juíza da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, Vanessa Cavalieri, alertou para o fato de pais e mães desconhecerem o comportamento dos filhos dentro da internet. Ela citou o aumento de crimes cometidos por adolescentes a partir das redes sociais. Além disso, explicou que o perfil dos infratores são meninos de classe média e alta, que geralmente arquitetam ou influenciam atos criminosos a partir da interação em plataformas digitais. A maioria usa o próprio celular ou computador para isso.

“Muitas famílias ainda acham que o filho está seguro no quarto. Só que, se ele está no quarto com internet, está exposto a tudo.”

Dentre os crimes estão a apologia ao nazismo, tortura de animais, estupro virtual e organização de massacres. “Crianças e jovens passam anos expostos a discurso de ódio, ideologias extremistas, comunidades que planejam ataques a escolas. Se as famílias supervisionassem, poderiam ter sido evitados”, disse a juíza.

Leia também: Crianças viram alvo de discursos patriotas da extrema direita

No caso do personagem, a família tem um perfil comum, de pai e mãe que precisam trabalhar bastante, sem muito tempo ou interesse para as tecnologias. Já a irmã mais velha tem uma vida própria e ativa nas redes sociais, namora e vai fazer faculdade. Enquanto isso, Jamie é engolido por seu processo de crescimento cheio de dúvidas, questões sobre sua aparência e pouco espaço para dialogar com o pai. A influência do ambiente escolar e digital acaba impulsionando o menino mais do que o esperado.

“As famílias precisam passar por um letramento digital e, quando entenderem a gravidade, vão começar a fazer o seu papel, a adiar o máximo possível o momento de dar o primeiro celular para os filhos e, quando derem, a terem os cuidados necessários”, pontuou a juíza Vanessa Cavalieri.

Do mesmo modo, Filipe Colombini reforça a urgência da família dar atenção para o que crianças e adolescentes estão acessando e como estão interagindo com outras pessoas. “Os pais precisam saber o que os filhos estão consumindo, bloquear conteúdos indesejados e qual a comunidade que o filho está se envolvendo, quem são seus amigos e as influências”, diz o psicólogo.

Uma mulher loira de cabelo chanel e blusa azul escura está sentada em uma cama olhando para um homem de meia idade ao seu lado. O homem está vestido com uma camisa pólo azul clara da marca Lacoste. Em segundo plano, há uma parede azul e dois quadros pendurados na parede.
Em um diálogo profundo e sensível entre pai e mãe, o personagem Eddie Miller desabafa: “Talvez eu tenha sido um pouco omisso. Mas ele estava ali no quarto. Achávamos que ele estava seguro.”

Como as plataformas digitais também são responsáveis? 

Além da necessidade da supervisão da família, a proteção dos adolescentes no ambiente virtual se estende às grandes empresas e plataformas virtuais assim como o Estado. Isso porque, mesmo com ferramentas de controle parental, classificação por idade e denúncias de violação de direitos, as redes sociais mostram que não foram desenhadas para crianças.
“As plataformas têm responsabilidade central em relação a este tipo de conteúdo. Isso afeta de uma forma muito mais impactante crianças e adolescentes por causa da sua fase peculiar de desenvolvimento e da hipervulnerabilidade”, diz Maria Mello,  coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana. “Quando o uso é abusivo, isso pode causar inclusive dependência, além de outras consequências físicas e mentais.”
Além disso, as leis de regulação como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais precisam ser reforçadas. Maria Mello defende que as plataformas de redes sociais deveriam considerar os direitos das crianças e adolescentes desde a concepção dos serviços. No entanto, explica que o sistema de algoritmos funciona como uma espécie de “isca” para que os usuários fiquem cada vez mais tempo no aplicativo. Ou seja, se torna um modelo de negócio, que ao invés de proteger, explora a vulnerabilidade de quem está atrás da tela.

Refletir sobre a parentalidade e se aproximar dos adolescentes é fundamental

Acompanhar a série “Adolescência” traz questionamentos profundos sobre a parentalidade e sobre os erros e acertos de criar um ser humano em desenvolvimento. As fotos dos personagens quando bebês no início de cada episódio despertam sentimentos mistos de entendê-los como crianças que cresceram, mas que ainda precisavam de atenção. É nessa jornada que muitas famílias não assumem que seus adolescentes ainda estão aprendendo a viver em sociedade.

“Eles necessitam de uma parentalidade com disciplina positiva, com regras e comunicação transparente. Porém, nem todos os pais vão se dar bem em todas as fases do desenvolvimento dos filhos”, explica Colombini. Contudo, isso não significa que esse pai ou mãe vai “fracassar”. O que o psicólogo aponta é que eles precisam refletir sobre suas fragilidades e buscar ajuda. “É importante os adultos entenderem como é a parentalidade que exercem. Quais as habilidades e as dificuldades. Esse é um processo contínuo de buscas de solução”, ressalta.

Essa reflexão traz uma série de desafios pessoais. “Ninguém nasce sabendo ser pai ou mãe, pois não é um comportamento natural e não há um manual que ensina isso. Mas existe um pedido de ajuda que pode ser feito aos profissionais com terapia familiar, e à rede de apoio dos próprios pais.”

Na família Miller, Eddie e Amanda só conseguem encarar essa reflexão um mês antes do julgamento de Jamie. Outra observação é o pouco afeto físico entre pai e filho. No primeiro episódio, o abraço só acontece na cena final e é iniciado por Jamie, que percebe a decepção do pai. Para Colombini, é importante não perder o vínculo.

“Dar afeto e carinho são relevantes assim como dar exemplos de comportamentos sociais e emocionais. Pais precisam ser referências porque os filhos estão olhando e aprendendo mais com o exemplo do que só com a palavra.”

É comum pais e mães sentirem medo depois do turbilhão de temas que a série fez valer. No entanto, são as atitudes mais simples que permitem uma aproximação com os filhos. Segundo o psicólogo, pais de adolescentes precisam estar presentes. “Tente saber do que os filhos gostam, onde estão andando e se conectando. Além disso, fazer o monitoramento da internet, dando condições e limites, porque isso não tem a ver com privacidade mas com segurança”, aponta Colombini.

Um olhar para a masculinidade imposta aos meninos 

Em várias cenas, a série revela camadas sobre como os discursos misóginos afetam Jamie e outros meninos. Nas falas, parece natural julgar as meninas quanto à aparência e ao comportamento. Além disso, eles citam teorias sobre as preferências físicas, sexualidade e zombam quando um deles leva uma surra de uma aluna: “Você apanhou de uma menina.”
Em entrevista à Netflix, o co-criador, Jack Thorne revelou que esse é um tema pelo qual eles nunca olharam de fora. “Phil, Stephen e eu analisamos a masculinidade, refletindo sobre nós próprios como homens, os tipos de pais, companheiros e amigos que somos, e questionando com intensidade quem somos como pessoas”, revelou.
Por fim, a narrativa também sugere que entre Jamie e Eddie faltou mais diálogo, mais informação e mais tempo disponível. Porém, o percurso entre casa, delegacia, escola e internet especula que a culpa não deveria cair somente sobre o pai, mas sugere que toda a sociedade tem responsabilidade sobre o cuidado de uma criança e de um adolescente. Há um sistema muito maior que captura meninas e meninos silenciosamente, e que atinge todas as pessoas. Enquanto isso não for discutido de maneira mais eficaz, caberá sempre à família a responsabilidade.

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Jamie é um adolescente de 13 anos, em um processo de crescimento cheio de dúvidas, questões sobre sua aparência e pouco espaço para dialogar com o pai.

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