Fomos preparados para a parentalidade do não saber?

Não conseguimos ser sábios universais como Visconde de Sabugosa, embora nossos filhos continuem seu destino de Emílias criativas e transgressoras

Alexandre Coimbra Amaral Publicado em 01.06.2018
Mãe e filho pesquisam no computador.

Resumo

Como pais e responsáveis por crianças cada vez mais conectadas, como nos sentimos diante de um “eu não sei, filho, preciso pesquisar sobre isso"? O psicólogo Alexandre reflete sobre a parentalidade do não saber", e o exercício de ser pai na era do Google.

Foi desta forma que nos ensinaram a educar uma criança para ela poder se haver com o mundo que lhe cerca: nós sabemos, ela não sabe. Ela traz as perguntas e nós lhe entregamos as respostas, em linguagem adequada à sua fase do ciclo de vida. Uma cartilha que parece simples, talvez para pais de uma época menos mutante que a nossa.

A criança sai de nossos braços para uma cultura que lhe instiga, deixando espaço para surgirem inquisições várias sobre os símbolos, regras e artimanhas do jogo social. Quando esta mesma criança se aproxima de nós, tentando compreender o mundo a partir de suas lentes tingidas de fantasia e ludicidade, vivemos uma experiência deveras desconcertante. Em muitos momentos, nem entendemos direito a pergunta, e não é por uma questão de estruturação da frase. É que não faz e nem fez parte de nosso mundo o conteúdo da sua interrogação. Somos estrangeiros no espaço que nossos filhos estão habitando. Não conhecemos o idioma que elas facilmente aprendem, à revelia de nossas vontades.

O mundo infantojuvenil, antes habitado pelos contos de Grimm e quiçá pelas adaptações da Disney para seus clássicos, hoje é um caldo cultural recheado de mangás, youtubers, jogos de videogame online, raps compostos por outros garotos em homenagem a personagens de histórias que desconhecemos. O nosso Waze interno não nos entrega um caminho fácil para a resposta a estes conteúdos. Transformamo-nos, assim, em desbravadores do mundo deles, precisamos pedir-lhes tempo para googlarmos estes vocábulos estranhos e estudarmos o que são, como vivem e o que comem estes novos deuses das infâncias que dormem no quarto ao lado.

O que acontece conosco, portanto, em nossa experiência parental? Como nos sentimos diante de um “eu não sei, filho, preciso pesquisar e pensar sobre isso”, “nem ideia, filho, não havia isso na minha época”? Fomos preparados para uma parentalidade de mãos dadas com o não saber? Fomos ensinados a dizer de nossos vazios? Qual a consequência para nossa ligação com nossos filhos o fato de não sabermos o que dizer-lhes?

Vale a pena revisar o que quisemos fazer de diferente de nossos pais. Geralmente, estamos falando de transposição de uma cultura materna ou paterna mais autoritária, para outra mais participativa, em que a voz da criança e do adolescente é considerada como parte da tomada de decisões. Não somos os oráculos absolutos, e nem temos a obrigação de sê-los. Não somos aqueles portadores de uma boa nova sobre aquilo que de fato não pertence à vida que vivemos.

“Não somos enciclopédias (sobretudo porque, muito rapidamente, as crianças vão entender que o Google lhes responde com muito mais eficácia, pluralidade de opiniões e rapidez que nós a qualquer de suas perguntas)”

Se fôssemos alguma enciclopédia, no máximo seríamos como aqueles volumes da Barsa que estampavam as prateleiras de nossa infância, cheias de pó de uma época que não consegue existir mais em sua forma de acessar conhecimento.

“Se não somos os detentores do saber das coisas, quem nos anfitriona neste mundo novo de pais e filhos. A resposta é uma palavra que transforma todo o jogo das hierarquias: ambos”

Em muitos momentos, eles nos ensinam sobre a terra nova em que vivem, e nós aprendemos os códigos de existir que não foram precisos para nossas vidas adultas de século passado. Em outros, continuamos a ser aqueles que lhes convidam a ver a vida sob um determinado ponto de vista, sob uma ética determinada. Este é o nosso maior papel: dar-lhes um referencial ético para se relacionarem com o mundo. Se não conhecemos o conteúdo destes tempos estranhos, que tenhamos firmeza e consistência para entregar-lhes a forma com que vemos a vida.

Repito: somos seus referenciais éticos. Conosco, eles receberão a primeira tábua de mandamentos sobre como lidar com as relações, as responsabilidades, os afetos, a beleza, a maldade, a vida coletiva, a injustiça e tantas outras dimensões de uma existência. É claro que a nossa cartilha ética é só o prólogo do livro da vida deles, cujas páginas serão escritas para além de nossos olhares atentos. Ao crescerem, manterão algumas destas características nossas, renegarão outras, inventarão umas tantas – como autores que merecem ser de suas virtudes e desvarios, já que não dá pra ser diferente na condição humana que nos une.

Portanto, resta-nos desaprender a saber tudo. A postura de não saber faz justamente parte de uma ética para um mundo em que muitas vozes portam as suas verdades particulares. Eles vão viver neste mundo, onde muitas formas de sentir a vida coexistem, precisam aprender a dialogar, e a construir junto uma realidade.

“Então, esta primeira experiência com os pais que nem tudo sabem é o primeiro laboratório de um mundo novo, onde uma verdade não precisa desconstruir a outra para existir”

Elas podem conversar de forma respeitosa, aprendendo juntas o exercício da convivência com a diversidade, inventando assim uma nova forma de aprender. Nós talvez ainda vivamos no sítio da princesa Narizinho, casada com o Príncipe das Águas Claras, com uma avó aposentada em uma cadeira de balanço. Mas, conscientes de que, no século XXI, não conseguimos ser sábios universais como Visconde de Sabugosa, embora nossos filhos continuem o seu destino Emílias arteiras, criativas, transgressoras e inventivas.

Pensando bem, o Visconde sempre teve sua sabedoria vencida pela ação irreverente de Emília, e tampouco conseguia reprimi-la em seu desejo legítimo de conhecer o mundo a que ele jamais pertencera. Até o sábio de Sabugosa entendia que, em tantas vezes, era a boneca de macela que lhe apresentava o mundo inacessível a ele, pobre espiga de milho falante. E que, mesmo assim, continuava a ser uma referência ética sobre tantas coisas da vida, consultado por seres fantásticos e pelas crianças que lhe tinham em alta conta.

Não somos tudo, mas somos algo. Não somos absolutamente certos, mas carregamos valores em forma de certezas. Podemos, assim, ser referência, marco fundante. Somos o princípio. O meio e o fim fica por conta deles, numa história em que nós, se soubermos aproveitar bem, seremos também aprendizes que viram heróis que viram perguntas que viram respostas. Tudo ao mesmo tempo agora.

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