Do passado menorista à proteção integral, a evolução legal para a construção de primeiras infâncias dignas de sujeitos de direitos
O advogado Pedro Mendes, do Instituto Alana, escreve sobre como devemos abraçar definitivamente a doutrina da proteção integral ao olhar para crianças e adolescentes em detrimento da noção menorista após o termo "menor" reaparecer no Congresso Nacional.
Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos. Para chegar a essa afirmação, foi preciso muita luta, a partir da segunda metade do século XX, para uma construção social e jurídica de proteção integral a esse público até então visto a partir de uma perspectiva menorista. Essa ideia hierárquica de sujeitos “menores” é também problemática por carregar consigo a negação das múltiplas formas de exercício e expressão da infância e da adolescência.
Assumir que crianças e adolescentes são cidadãs – e não “menores” – exige saber que experimentam um momento singular na vida, no qual o desenvolvimento pleno e a proteção integral devem ter protagonismo, escutando-os sempre sobre os assuntos que lhes dizem respeito, para que participem dos processos políticos exercendo e reivindicando seus direitos de forma plena. Todas essas condições de cidadania prescindem de investimento orçamentário para sua realização e a mudança dos ideais coletivos que envolvem infância e adolescência, firmando um pacto para substituir o menorismo pela proteção integral.
Na lógica menorista, prevalece o entendimento do Estado de que essas crianças não são seres humanos completos detentores de direitos com absoluta prioridade, priorizando medidas como a intervenção estatal e a institucionalização desmedida. Já na lógica da proteção integral, reconhecemos o dever compartilhado de cuidado e proteção de crianças, dividido entre sociedade, poder público e família, para combater quaisquer formas de violações de direitos.
Contudo, alguns entraves ainda impedem que essa simples ideia seja uma realidade concreta, principalmente para crianças e adolescentes negros e pobres ou de qualquer outra minoria social, que têm seus direitos violados diariamente em rede nacional e em espaços de convivência social. Um exemplo recente é a adoção, no Congresso Nacional, do termo “menor” para se referir a crianças e adolescentes em um texto que modifica a competência de um grupo de legisladores destacados para tratarem de temas como assistência social, infância e família, viabilizando a proposta de leis.
A partir da década de 1980, movimentos sociais que lutavam pela redemocratização do Brasil, assim como adolescentes organizados de grupos específicos, como o Movimento Nacional de Meninas e Meninos de Rua, passaram a ocupar espaços políticos reivindicando um novo olhar jurídico e social para crianças e adolescentes. Fruto dessa luta, em 1988 foi inaugurada no Brasil a doutrina da proteção integral, segundo a qual crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e devem ter respeitados o seu peculiar estágio de desenvolvimento com absoluta prioridade, o que vem expresso no artigo 227 da Constituição Federal.
Desde então, outras conquistas foram garantidas para esse grupo no âmbito do direito. Foi nesse mesmo Congresso Nacional, cerca de dois anos após a promulgação da Constituição, que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi construído e aprovado, inclusive, com a participação de crianças e adolescentes. Entre outras importantes legislações que garantem direitos dessa parcela da população está o Marco Legal da Primeira Infância (MLPI), promulgado há oito anos após atores da sociedade civil, dos poderes legislativo, executivo e judiciário se unirem em torno das necessidades dessa faixa etária. Em 2013, a instituição da Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância, composta por mais de 200 parlamentares de diversos partidos, é mais uma expressão da importância deste tema.
Diante desse cenário, a retomada do termo “menor” pelo poder público não é uma mera ocasionalidade. O “menor”, nas lógicas anteriores à legislação e à compreensão atual das infâncias, representa hoje uma parcela significativa da população brasileira nessa faixa etária: crianças em situação de rua, provenientes de famílias em pobreza extrema caracterizadas pela fome e pela insegurança alimentar, vítimas de maus-tratos ou violência.
Um exemplo contundente desse panorama é o tratamento dado para crianças com familiares em situação de rua ou com mães encarceradas. Essas crianças geralmente são retiradas de suas famílias, sem poder exercer qualquer forma de vínculos e, quando permanecem no seio familiar, são alvos de violência e da privação de direitos, como o direito à saúde e à alimentação. Nesses casos, previsões do MLPI sobre a priorização de políticas públicas para fortalecimento familiar, por exemplo, são ignoradas e o poder público facilmente retira a condição de direitos para recolocar essas crianças na posição de “menores”.
Os avanços legislativos, a organização da sociedade civil em prol das infâncias e adolescências e certa sensibilização do poder público demonstram que não estamos mais em um ponto zero em relação aos direitos dessa população. Apesar disso, a concretização social dessas normas ainda é um desafio, porque elas são, cotidianamente, desrespeitadas em prol da manutenção do menorismo para crianças e adolescentes específicos. Fazer a legislação valer de forma crítica e posicionada pela luta constante por esses direitos é garantir que todas as infâncias e adolescências sejam definitivamente afastadas do menorismo e abraçadas pela doutrina da proteção integral.
* Pedro Mendes é advogado do Instituto Alana, formado pela Faculdade de Direito da USP, instituição na qual coordena a Clínica de Direitos da Criança e do Adolescente.
** Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
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Os direitos de crianças e adolescentes, sua concreta efetivação e as ameaças a eles, acompanham a vida política do Brasil e são diretamente afetados pelo cenário nacional. Antes da retomada da democracia, em 1988, vigorava no Brasil o Código de Menores de 1979, que seguia a lógica da “doutrina da proteção irregular” e menorista, segundo a qual crianças e adolescentes – à época, chamados de menores em situação irregular – em situação de pobreza e vítimas de violência ou que cometessem crimes, por exemplo – eram alvos de intervenção estatal, sem qualquer diferenciação, e estariam sujeitos à institucionalização. Isso é dizer: prevalecia a ideia de que crianças e adolescentes pobres deveriam ser recolhidos da sociedade, sem voz e sem direitos. Nosso compromisso ético, político, moral e social é impedir que isso volte a ser uma opção.