Cuidotecas e cozinhas comunitárias: ações para acolher quem cuida

Governo deve implementar Plano Nacional de Cuidados com políticas voltadas principalmente para mulheres cuidadoras e para reduzir a sobrecarga materna

Camila Salmazio Publicado em 29.04.2025
Imagem mostra uma mulher e duas crianças brincando em uma sala com brinquedos.
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Resumo

Plano Nacional de Cuidados prevê atendimentos domiciliares e espaços comunitários de serviços para valorizar o trabalho de quem cuida, especialmente mulheres e mães. Governo explica ao Lunetas quais as principais ações.

Milhões de brasileiros, sobretudo as mulheres, mães e avós, movem todos os dias a chamada economia do cuidado. Eles dedicam a vida ou parte dela aos trabalhos da casa, de crianças, idosos ou de pessoas com deficiência, e não recebem remuneração por isso. No entanto, o governo brasileiro se mostra atento para a situação desde dezembro do ano passado, com a sanção da Política Nacional de Cuidados. A expectativa é que até junho seja lançado o Plano Nacional de Cuidados (PNC), que terá ações concretas para acolher quem cuida.

O Plano envolve a criação de cuidotecas, cozinhas e hortas comunitárias, lavanderias coletivas, restaurantes populares e serviços de atendimento domiciliar de saúde. Algumas ações têm inspiração nas políticas adotadas em países da América Latina e que ajudaram a desafogar a sobrecarga materna.

“É um grande passo que a gente dá. O cuidado nunca foi objeto de política pública. Então, olhar para quem demanda o cuidado ao mesmo tempo que a gente olha para quem cuida é uma inovação muito importante”, afirma Luana Pinheiro, diretora de Economia do Cuidado, da Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família do Governo Federal.

Ela explica que o governo brasileiro sempre teve uma “trajetória de pensar as mulheres como objeto de política para alcançar as crianças, mas agora está olhando para a garantia dos direitos das mães, das cuidadoras.”

Em 2023, o tema da redação do Enem foi “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. O assunto reforçou a necessidade da sociedade pensar na situação e do Estado prover políticas para esse público.

‘Brasil que Cuida’ chegará como apoio às mães sobrecarregadas

O PNC se chamará “Brasil que Cuida – cuidar é o trabalho que sustenta o mundo”. A previsão é que as iniciativas reduzam o tempo dedicado às tarefas domiciliares, que consomem mais de 21 horas semanais das mulheres e 11 horas dos homens.

Para Débora Aparecida, que já foi faxineira, babá e cuidadora de idosos, essa política teria ajudado quando morou em Fama, interior de Minas Gerais. Na época, a cidade não ofertava creches e, por isso, ela não tinha com quem deixar o filho de 4 anos. “Eu não tinha condição de pagar alguém pra ficar com ele, então a única saída era levá-lo comigo”, lembra.

Junto ao esgotamento físico de mais de 20 anos de serviços domésticos prestados, ela sente que perdeu momentos importantes com os filhos devido às jornadas exaustivas e de longos períodos.

“Cuidar de outras crianças para mim foi um choque. Minha cabeça entrou em parafuso porque eu deixava os meus para ir cuidar dos filhos de outra pessoa. Às vezes, me sentia muito culpada, mas não tinha escolha, era por necessidade.”

Outro ponto que começou a entender foi como a desigualdade afetava a sua experiência de maternidade. “Quando comecei a trabalhar como babá, entendi que não tinha as mesmas oportunidades com meus filhos. Via o cuidado que precisava ter com a criança que eu cuidava e pensava nas coisas que não podia fazer com os meus.”

Assim como Débora, outras 57 milhões de mulheres que trabalham fora e são chefes de família no Brasil, segundo o IBGE, serão prioridade do PNC. O público alvo também serão as crianças na primeira infância e adolescentes, pessoas idosas e/ou com deficiência e que demandam algum tipo de cuidado.

Além disso, o Brasil que Cuida deve direcionar ações para cuidadores no mercado formal, como domésticas, enfermeiras e babás, e no informal – pessoas que cuidam dos filhos ou dos pais sem remuneração.

Responsabilidade do cuidado também é do Estado

A psicóloga e mestra em educação Luiza Ribeiro Xavier, coordenadora de Mobilização e Cuidado do Instituto Procomum, destaca que o cuidado não é um assunto novo. Porém, afirma que o PNC traz uma “nova forma de olhar para ele”.

Ela lembra que ações simples como cozinhas e hortas comunitárias já são práticas comuns em comunidades mais pobres e “foram maneiras que a população marginalizada encontrou para sobreviver e sustentar a vida.”

Nesse sentido, “a Política tira o trabalho de cuidado da esfera privada e familiar e traz para a pública. Isso é importante porque localiza a responsabilidade do estado e faz a gente pensar em questões como a consolidação do direito das mulheres e a questão racial no Brasil”, ressalta Luiza.

Dados do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome mostram que 45% das pessoas que trabalham no setor de cuidado são negras, assim como a maioria das mães solo. “A invisibilidade e a desvalorização do trabalho de cuidado estão profundamente relacionadas à transição do trabalho escravo para o trabalho livre”, reflete a coordenadora.

Com o PNC, o cuidado passa a ser reconhecido como uma necessidade de todos e um direito a ser garantido pelo Estado, assim como um trabalho essencial para o bem-estar das pessoas. No Orçamento de 2025, aprovado pelo Congresso, está previsto mais de R$ 26 milhões para estruturar a política.

Para fortalecer o setor, os trabalhadores vão passar por formações no novo Programa Nacional de Formação e Cuidados. Os cursos vão contar com espaços onde os alunos poderão deixar os filhos enquanto se qualificam.

Cuidotecas já têm projeto-piloto

Espaços dedicados para acolher crianças em horários alternativos já são realidade em um projeto-piloto de cuidotecas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ). No local, crianças de 3 a 10 anos ficam em um espaço seguro realizando atividades lúdicas com funcionários especializados enquanto pais e mães assistem aulas, no período noturno. A iniciativa é uma parceria da Universidade com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

“As cuidotecas não são serviços educacionais, mas vem complementar a ideia de uma integralidade de cuidado”, explica Luana Pinheiro, diretora de Economia do Cuidado do Governo Federal. “Muitas pessoas trabalham a noite ou seis dias na semana. Portanto, essa trabalhadora passa a ter onde deixar a criança se não tiver rede de apoio ou preferir usar os serviços do Estado.”

Imagem mostra uma sala com almofadas coloridas.
Cuidoteca da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, funciona como um projeto-piloto e atende 40 crianças de 3 a 10 anos, das 17h às 22 horas. Todas são filhos de estudantes e servidores.

Investir no bem-estar de cuidadores é um desafio cultural e econômico

Apesar de o cuidado ainda ser uma função majoritariamente feminina, Luiza Xavier acredita que a política ajudará a mudar essa concepção cultural. “Precisamos investir em campanhas e colocar o cuidado na agenda pública”, defende a psicóloga. “Esse tema se conecta com outros debates, como a escala de trabalho 6×1 ou a crise climática, por exemplo.”

Já Luana Pinheiro confirma que a Política Nacional de Cuidados também poderá influenciar a economia brasileira a longo prazo. Prova disso é um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que aponta o acréscimo de 13% ao PIB do Brasil se o trabalho de cuidado fosse remunerado. O índice supera o valor gerado pelo agronegócio.

“Muitos estudos internacionais já mostram que políticas de cuidados geram retorno econômico significativo. Afinal, mulheres que estão fora do mercado de trabalho geralmente o estão porque precisam cuidar. Se elas ingressam no mercado, passam a gerar renda.”

Além disso, o PNC busca reduzir a desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Atualmente, metade das mães perdem o emprego após a licença-maternidade, e as que continuam empregadas recebem até 19,4% menos que os homens nos mesmos cargos, conforme dados do Ministério do Trabalho e Emprego.

“Tem essa dupla dimensão: ao mesmo tempo a gente libera as mulheres para entrarem no mercado e está investindo em um setor que é majoritariamente feminino. Portanto, abrimos espaço para que elas ocupem essas novas vagas de trabalho”, conclui Luana.

Para isso, os governos federal, estadual e municipal devem trabalhar em conjunto, com adesão às ações do PNC, assim como fomentar o desenvolvimento de políticas locais, de acordo com a realidade de cada região.

Ideias que deram certo em outros países

Na Colômbia, a ação de cuidados domiciliares ‘Manzanas del Cuidado’ oferece serviços como formação, entretenimento e tratamentos psicológicos para muheres que vivem em Bogotá. Enquanto os cuidadores recebem atendimento nos chamados “Quarteirões do Cuidado”, onde os serviços são reunidos, profissionais capacitados atendem em casa o familiar necessitado, como idosos ou pessoas com deficiência.

No Brasil, a intenção é implementar um plano de atendimento com visitas domiciliares para quem requer cuidado constante, desafogando, assim, o tempo dos cuidadores. “A ideia é que o Estado chegue na casa das pessoas, ofereça um atendimento para aquelas que têm menos autonomia para se deslocar para outros serviços, ao mesmo tempo em que libera a pessoa que está na casa cuidando”, explica diretora de Economia do Cuidado do Governo Federal.

Imagem mostra uma lavanderia comunitária de Bogotá
Em Bogotá, Colômbia, o projeto ‘Manzanas del Cuidado’ oferece serviços comunitários de cuidado, cursos e lazer para mulheres em mais de vinte unidades pelos bairros da capital.

Segundo Luana, o serviço contará com a articulação da área da saúde e da assistência social, o que representa “grande inovação”. Isso porque a política já existia como “tipificada na assistência social, mas não tinha uma atuação do governo federal.”

A comitiva presidencial responsável por elaborar o PNC também visitou o Uruguai. Lá, o Sistema Nacional Integrado de Cuidados (SNIC) se consolidou desde 2015, para enfrentar a queda na taxa de natalidade e o envelhecimento da população. Esses fatores também acontecem no Brasil, conforme aponta o Censo do IBGE.

O número de pessoas com mais de 60 anos triplicou no Brasil entre os anos 2000 e 2023. A previsão é que até 2070 a idade média da população seja de 48,4 anos, enquanto em 2023 foi de 35,5 anos.

“A troca de experiências entre esses países é muito importante na construção da política, pois temos uma articulação muito forte com os países da América Latina e Caribe, que saíram na frente nessa discussão no mundo”, explica Luana.

Ela também revela que a comitiva amplia a conversa com países da Europa. Lá, o processo de envelhecimento já acontece há mais tempo, por isso, as pesquisas pretendem entender as políticas de cuidado que deram certo. Com os esforços, a previsão para essas políticas no Brasil é otimista e pretende acolher, pela primeira vez, quem cuida e move a economia de maneira muitas vezes invisível.

Quais as principais propostas do Plano Nacional de Cuidados?

  • Ampliar os serviços de creches e escolas de ensino infantil;
  • Implementar cuidotecas de atenção familiar;
  • Ofertar serviços de atenção domiciliar a pessoas idosas e com deficiência;
  • Entregar centros de convivência para pessoas idosas e pessoas com deficiência;
  • Criar lavanderias coletivas, restaurantes populares, cozinhas solidárias e comunitárias, hortas comunitárias;
  • Formação sobre cuidados para cuidadores não remunerados, trabalhadores domésticos e do cuidado remunerado;
  • Formação sobre cuidados para gestores federais, estaduais e municipais;
  • Fortalecimento do combate ao trabalho infantil doméstico e do trabalho escravo doméstico.

Fonte: Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome / via Agência Brasil

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