O que as crianças dizem sobre “Tempo rei”, de Gilberto Gil 

Ao assistirem ao show pela primeira vez, elas criam memórias com suas famílias que cresceram embaladas pela poesia e música de Gil

Carla Bittencourt Publicado em 24.07.2025
Imagem mostra o cantor Gilberto Gil em um cenário com flores coloridas.
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Resumo

Passado, presente e futuro se misturam no olhar poético de crianças e adolescentes, inspirados pela turnê “Tempo rei”, de Gilberto Gil, que marca começos e também despedidas.

Aos 83 anos, Gilberto Gil celebra o tempo rei em sua turnê de despedida dos grandes palcos. Ao apresentar um legado de 60 anos de carreira, nos convida então a também refletir sobre o tempo e pedir que transforme “as velhas formas do viver”.

“Como meu avô mesmo fala, tempo é rei, tempo é tudo e tudo acontece no seu próprio tempo”, define a neta Flor, 16. Portanto, “o tempo significa essa mudança de vida constante, os vai-e-vens e o desenvolvimento de nós, de uma pessoa, do ser humano, do mundo.”

No mesmo ritmo dessas transformações naturais, Gil se despediu da filha Preta Maria esta semana. Para resumir um amor nascido há 50 anos, ele procurou a sabedoria do tempo para mostrar a continuidade da vida, sob outra perspectiva: “Que venham os próximos 50 bilhões de anos”, disse para o neto Francisco, filho de Preta.

Quase um mês antes, em seu aniversário, a companheira Flora Gil leu uma carta escrita a ele justamente pelo tempo. “Você nos mostra que o tempo não precisa ser pressa, mas poesia. Já te vi menino, homem, pai, avô, vi você ser ponte entre gerações.”

Nesse sentido, a majestade tempo une adultos e crianças em torno da sabedoria de Gil, de não ser linear. Assim, no show, enquanto mães e pais resgatam as próprias infâncias, ouvindo a trilha de quando tinham a idade dos filhos, é a vez das crianças criarem novas memórias.

Como as crianças explicam o tempo?

O tempo desta reportagem começa em março, no dia de estreia da turnê “Tempo rei”, em Salvador. A pedido de Lunetas, as crianças tentam explicar o tempo a partir desse show, que marca começos e também despedidas.

Nina, 11, gostaria de saber por que Gil escolheu a capital da Bahia para essa estreia. Ela achou muito bom “ouvir de perto” as músicas que foram feitas antes mesmo de ser um bebê na barriga da mãe. Para ela, a música “Aquele abraço” é a que mais tem a ver com o seu momento atual, “porque fala de memórias, e eu sinto saudade da escola antiga”, diz.

Luca, 12, fala do tempo de ser criança, que é tempo de brincar e desfrutar a natureza, por isso o considera tão importante. A partir de viagens entre passado, futuro e presente, o tempo tem um ritmo que vai mudando, de acordo com ele. “Antes da pandemia, eu achava que o tempo era lento, mas agora acho que é muito, muito, muito rápido.” Sobre o show, ele conta: “Estava com meus pais em um lugar bom, todo mundo cantando junto, foi bem divertido. Mas o que eu mais gostei foi quando tocou ‘Andar com fé’.”

Para Ravi, 12, o tempo é ver as coisas passando e a pergunta mais difícil de responder é como foi que ele passou. “No show de Gil, eu prestei bastante atenção para não passar rápido e foi bom assim.” Uma vez, em uma festa de criança, Ravi deu bom dia a Gil. Se pudesse conversar mais com o artista, perguntaria “de onde ele tira ideias pra fazer músicas tão grandes, como ele memoriza tanta coisa e como não fica tenso de subir num palco lá na Fonte Nova e ver milhares de pessoas assistindo”.

“Como é a sensação de ser tão adorado, não só pelo Brasil, mas pelo mundo inteiro?”

Além disso, nas letras de Gil, Ravi aprendeu sobre a Bahia, terra dos dois, e sobre um tempo difícil para o Brasil. “Tem a música ‘Toda menina baiana’, que é alegre, e ‘Cálice’, que fala sobre o período da ditadura, quando ele foi exilado”.

A música “Tempo rei” foi lançada em 1984, no disco “Raça humana”. Era uma resposta à “Oração ao tempo”, de Caetano Veloso. O próprio Gilberto Gil explicou: “na música de Caetano, parece haver um mergulho no nada absoluto e uma resignação orgulhosa com a extinção. Na minha tem, quem sabe, uma quimera. Um vago desejo de permanência e de renovação”.

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Arquivo Pessoal

O show de despedida de Gil, em Salvador, foi a primeira experiência musical de Luca, 12, em um estádio, com a mãe, Mariana Vaz, e o pai, Alessandro Vital.

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Arquivo Pessoal

Fãs de Gil, Nina, 11, e a mãe, Mariana Pereira, destacam o tempo na música “Back in Bahia”, que também fala da história delas.

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Arquivo Pessoal

Depois do show visto com a mãe, Tatiana Menezes, Ravi, 12, ficou com vontade de conversar com Gil sobre música e sobre o tempo.

De neta para avô: memórias de Flor Gil

Durante a pandemia, quando Flor Gil tinha então 12 anos, ela fez cinco perguntas ao avô. Na entrevista para o GNT, a neta quis saber o que Gil sentiu quando ela nasceu, o que estava aprendendo naquele momento difícil, que lição a pandemia deixava, o que mais queria fazer quando tudo acabasse e de que ou de quem mais tinha saudades. Ao revisitar esse tempo, Flor contou ao Lunetas que lembra de como a família ficou ainda mais unida. “Mesmo sendo muito nova, eu tinha essa visão. E não falo apenas do meu núcleo, mas da família toda, que é grande e está junta”, conta. “Isso me ajudou muito a criar uma base forte para levar a vida.”

Gil mantém seu legado vivo entre filhos e netos, alguns seguindo seus passos na música. Na turnê de “Tempo rei”, Flor subiu ao palco e cantou “Refazenda” com o avô, no Rio de Janeiro. “[Refazenda] mostra a relação com o tempo e com a natureza. Meu avô fala muito da natureza em si e da natureza de nós, seres humanos.”

Já a canção “Saudade” ganhou nova versão feita por ela, em parceria com Vitão, para seu álbum de estreia, “Cinema Love”. “Essa música tem duas histórias: a minha e a do meu avô. Sinto saudade pela história dele, que eu nem vivi”, diz. “Naquela época, eu estava muito próxima dele, fazendo shows de outra turnê. E isso é outra coisa sobre o tempo que eu gosto muito. Isto é, tudo fica no tempo, ele meio que gruda na gente.”

Ensinai, ó pai, o que eu ainda não sei

Em homenagem ao pai Gilberto Gil, que há tempos é presença em tantas famílias, ouvimos também o que os adultos acharam da experiência de ver “Tempo rei”, em Salvador, junto das suas crianças, ao mesmo tempo que voltavam às suas próprias infâncias.

Para Mariana Vaz, mãe de Luca, a experiência foi atemporal e representou uma renovação dos ciclos. “Foi muito lindo ver meu filho se emocionando junto comigo ao ouvir a trilha sonora de toda uma vida”, conta. Mais do que isso, fazer dessa despedida a estreia de Luca em grandes shows foi um convite para que ele veja a vida de outras formas. Mariana reflete que, desde a gestação, acompanhar o trilhar de um filho no mundo é uma aventura difícil de ser descrita apenas com palavras.

“A obra de Gil nos ajuda a dar conta de sentir aquilo que é indizível. É nesse lugar que a música e a arte me alcançam mais profundamente, e onde espero que Luca também encontre conforto.”

Alessandro Vital, pai de Luca, conta que o filho, assim como ele, é fã de Gil desde pequeno. “No filho, a gente se revisita, como Gil revisita Caymmi e todos os que o formaram musicalmente.” Ao pensar no legado do artista, Alessandro traz a importância de estar presente. Então, isso me faz viver mais do que registrar”, diz. “Tenho poucas imagens com Luca de experiências ‘memoráveis’, como ele diz, porque, quando estamos juntos de verdade, esquecemos fotos e selfies.” Para ele, envelhecer é acumular experiências, histórias e memórias ao lado de quem ama.

Já Mariana Pereira, mãe de Nina, define como “mágica” a experiência de estar com a filha em um show que marca tantas gerações. “A obra de Gil realmente transcende e, claro, traz assunto para conversas importantes.” Além disso, cantar a passagem do tempo também faz Mariana refletir sobre o momento atual da filha, que vive a despedida da infância e as transformações da adolescência.

“Me emocionei muitas vezes vendo ela cantar músicas que eu cresci ouvindo.” No entanto, cada uma vai encontrando, no mesmo artista, gostos diferentes. Enquanto Nina vibra com o Gil do reggae e do rock, sua mãe ama o Gil ijexá e luminoso. Nina tinha apenas quatro anos quando aprendeu sozinha a letra inteira de “Back in Bahia”, uma música que, curiosamente, se conecta à sua própria história. Nascida em Buenos Aires, filha de mãe baiana e pai inglês, Nina começou a se interessar pela canção que fala do tempo de Gil em Londres justamente quando a família se mudou para a Bahia, terra natal da mãe. “Nem eu consigo cantar todos aqueles versos complexos sem errar. Ela ama.”

O som de cada pessoa

Para Tatiana Menezes, levar Ravi ao show de Gilberto Gil foi um reencontro. “É como se a gente dividisse o mesmo tempo, o mesmo espaço e a mesma cultura. Isto é, a gente conversa sobre as letras, sobre os temas, e eu vejo que isso amplia o olhar dele para o mundo”, conta. “Ele fala de diversidade, espiritualidade, da existência… e as crianças também estão nesse processo de se entender no mundo.”

Viver o show de Gil com o filho foi, para Tatiana, uma confirmação de que o artista baiano é como o tempo, uma ponte entre gerações. Dessa forma, ao ver o filho crescendo com a mesma trilha, reflete como as músicas que marcaram sua infância voltam agora como guia, um gesto de confiança no caminho de Ravi. “É olhar pra trás e pensar: esse caminho é bom, vá por aí que é legal.”

Entre tantas canções que falam por ela em cada fase de vida, Tatiana, que é musicoterapeuta, elege “O som da pessoa” para explicar sobre o seu trabalho.

“Qualquer pessoa soa/ toda pessoa/ boa/ soa/ bem’. É como se ele sempre dissesse o que eu precisava dizer.”

Xangô menino

“[A música] entra na gente, passa pela gente, sai da gente… Por fim, provoca memórias e emoções”, diz João Almy, músico, compositor e professor de música para crianças. Conhecido artisticamente como Jalmy, ele acredita que “a música é uma alegria na infância e, anos depois, vira uma saudade gostosa de lembrar”.

Quando era menino, sua mãe o apresentou a Gil, aos Doces Bárbaros e à Tropicália, que tocavam pela casa em discos de vinil. “Lembro muito da música de São João, ‘Xangô menino’, porque meu nome é João e o do meu avô também.”

Desde pequeno, gosto de ouvir Gil, gosto do jeito dele de se expressar musicalmente com gritinhos, de convidar o público para dançar, da sua energia no palco.”

Além disso, Jalmy aproveita para desfazer a oposição entre “música de adulto” e “música de criança”. De acordo com ele, a relação de Gil com a música — aberta e capaz de expor até o que não sabe — revela uma intuição típica das infâncias, em que não saber é natural, despertando curiosidade e encantamento.

Nesse sentido, considera que o repertório de “Tempo rei” é para todos. “É bonito ver adultos com suas crianças no show e até com suas crianças internas assistindo a Gil em sua expressão mais poética e sublime. As pessoas merecem se aproximar desse repertório e dessas histórias. E esse merecimento é um poder, de entrar em contato com artistas como Gil, porque ele se renova e emana essa coisa tão especial com a passagem do tempo.”

Esse não é o fim

Conhecer profundamente o tempo e os seus mistérios fez com que Gilberto Gil aproveitasse a turnê de encerramento para mostrar que esse pode ser um novo começo. Assim, em maio, durante os shows no Rio de Janeiro, Gil lançou o filme-manifesto “Isso não é o fim”. Nele, o artista reflete sobre as urgências climáticas, convocando gente grande e gente pequena a repensar a relação com a natureza. “A vida é refazenda, recomeço, é invenção, renascimento, eu aprendi isso com ela, a natureza, companheira antiga minha, rainha do silêncio e das orações”, diz Gil no manifesto.

“Da mesma forma como Gil canta em ‘Tempo rei’, não vivemos o fim dos tempos, mas uma transição humanitária e de transformação”, diz Afonso Soares, diretor de criação do manifesto. Para ele, em vez de mensagens catastróficas ou uma contagem regressiva, é possível falar diretamente com os herdeiros de um planeta em crise, inspirando-os a cuidar da Terra e a pensar em soluções.

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