‘Não quero carne’: Como acolher a decisão da criança vegetariana?

Em vez de se preocupar, adultos podem acolher crianças que decidem ser vegetarianas, desde que “comida de verdade” seja protagonista na dieta

Michele Bravos Publicado em 11.09.2023
Foto de uma família em um piquenique. Uma criança, sentada no meio de um homem e de uma mulher, está diante de uma mesa cheia de frutas
OUVIR

Resumo

O desenvolvimento de crianças vegetarianas não deve preocupar as famílias, se a alimentação for rica em proteínas vegetais e com baixa ingestão de ultraprocessados. Acolher a escolha da criança e respeitá-la contribui para a sua autonomia.

“O que eu estou comendo?” foi a pergunta que Brunna, 13, fez à mãe Sandra Sachs com apenas dois anos de idade. Sachs disse que era carne. “E o que é carne?”, a menina replicou. “É vaca”, respondeu a mãe. Esse breve diálogo foi suficiente para levá-la a decidir não comer mais animais. Mais tarde, ao estudar a pirâmide alimentar na escola, ficou horrorizada ao descobrir que frango é galinha. Depois, percebeu que ficava triste quando comia peixe. Então, durante um almoço, falou para a mãe:

“Não quero que mais nenhum animal tenha que morrer ou sofrer para eu viver”

Brunna percebeu muito cedo que, para ela, não era certo colocar no prato animais; eles deviam ser amados e protegidos. “Eu nasci com alergia à proteína do leite de vaca e isso sempre me fez perguntar sobre a minha alimentação. Foi assim que descobri sobre os animais que estavam no meu prato.” Desde então, as refeições em sua casa são preparadas sem nenhum derivado animal.

No Brasil, o número de pessoas que se autodeclaravam vegetarianos em 2018 era de 30 milhões. Isso significava 75% a mais do que em 2012, de acordo com uma pesquisa encomendada pela Sociedade Vegetariana Brasileira ao Ibope. Para a nutricionista Marina Schneppendahl, a decisão da criança não deve ser motivo de preocupação. Além da Organização Mundial da Saúde afirmar que uma alimentação predominantemente à base de vegetais e frutas é mais saudável, Schneppendahl garante que a alimentação vegetariana é segura em qualquer fase da vida. “Uma criança que come mal pode ter seu desenvolvimento prejudicado. O que importa é comer bem.”

O protagonismo das leguminosas

O feijão, presente não apenas no prato diário da família de Brunna, mas de muitas famílias brasileiras, deve ser o protagonista de um prato vegetariano. “A carne não precisa ser substituída, porque ela não é essencial”, explica a nutricionista. “Mas, ao se tirar a carne, é necessário colocar outra proteína no lugar, para manter uma alimentação saudável. É aí que entram as leguminosas [grão de bico, ervilha, lentilha e tofu (feito de soja)], que são ricas fontes de proteínas vegetais.”

Image

Vegana desde os 4 anos de idade, o ativismo pela causa animal e ambiental acompanha Brunna

Image

Sandra Sachs acolheu a decisão da filha em se tornar vegana e mudou o seus hábitos alimentares também

Mas, será que a criança ficará fraca?

Schneppendahl explica que uma alimentação vegetariana oferece a quantidade adequada de cálcio, proteína, carboidrato e todas as vitaminas que uma pessoa precisa, exceto a B12. Como as carnes são as principais fontes dessas vitaminas do complexo B, importantes para o desenvolvimento do sistema nervoso central e responsáveis pelos comandos do corpo, “é aconselhável que crianças vegetarianas façam a reposição delas, inclusive para bebês cujas mães optaram por fazer a introdução alimentar sem carne e nada de origem animal.” Em alguns casos, também pode ser indicado fazer reposição de ferro.

É nessa direção que Débora Sá, 33, pretende seguir com a introdução alimentar do filho de cinco meses. “Quando criança, escolhi ser vegetariana. Depois de alguns anos, acabei desistindo por falta de apoio familiar. Há cerca de 10 anos, sou vegana, e isso faz parte do que quero passar para minha família. Meu filho não vai comer alimentos de origem animal e darei atenção às reposições necessárias.” O tradicional pirão de peixe do nordeste adaptado com vegetais estará presente na dieta do filho junto de outros alimentos como cuscuz, tapioca, arroz, feijão, grão de bico e coco.

Quanto às crianças vegetarianas que optam por não comer laticínios, a nutricionista comenta que a ingestão de vegetais verdes escuros e de feijão branco suprem essa falta, pois são alimentos ricos em cálcio, ou leites vegetais enriquecidos com cálcio, por exemplo. Uma das coisas que Brunna mais gosta de comer no recreio é “pão de beijo” (diferente do pão de queijo, ele é feito com batata-salsa ou mandioca, por exemplo, em vez do laticínio).

Ultraprocessados podem sair caro demais

Segundo a nutricionista, ultraprocessados podem ser mais prejudiciais para a saúde das crianças. É um engano achar que é uma boa opção substituir a carne animal por carne de soja (Proteína Texturizada de Soja – PTS) ou carnes vegetais industrializadas para manter um nível adequado de proteína na dieta.

Como lembra Ariela Doctors, autora do livro “O que vai ter para comer? O que você coloca no seu prato pode mudar o planeta”, ultraprocessados são alimentos feitos em laboratórios, com muitos corantes e conservantes, além de alta quantidade de açúcares, sódio e gorduras.

“Para aumentar o tempo de prateleira dos produtos, diminui-se o tempo de vida de quem os ingere”

Além disso, uma alimentação sem carne não é mais cara, ao contrário do que algumas famílias acham, e até apelam para esse argumento para resistir a uma possível mudança. “A economia de mercado é real”, conta Sachs. “Para quem compra comida industrializada, vegetariana ou não, é sempre mais caro.” Segundo Schneppendahl, o quilo de qualquer leguminosa que é fonte de proteína vegetal é mais barato do que o quilo da carne, ou seja, o prato fica mais barato. “A melhor parte é que 1 kg de feijão triplica de tamanho. A carne, a gente perde no preparo.”

Segundo levantamento realizado pelo programa Alimentação Consciente Brasil (ACB), refeições vegetarianas são até 65% mais baratas que as com carne em todas as 26 capitais do país. O ACB, que incentiva o consumo de alimentos de origem vegetal em instituições públicas que servem refeições junto a prefeituras, publicou o “Guia sobre a culinária vegetal” com receitas de pratos tradicionais recriados com ingredientes vegetais.

Os impactos ambientais do que se põe no prato

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde, o baixo consumo de frutas, hortaliças, grãos e leguminosas, assim como o alto consumo de alimentos de origem animal, aumentam o risco de doenças cardiovasculares, diabetes e alguns tipos de câncer. Além disso, estão diretamente relacionados a graves problemas ambientais, como desmatamento, emissão de gases poluentes e uso excessivo de água. Segundo o relatório “O valor da água”, lançado pela Unesco, a agropecuária é responsável por consumir 69% dos recursos hídricos no mundo.

Por isso, Sá se considera “uma ativista pelo veganismo popular”. “Ser vegano no Brasil é também político”, diz. “Ninguém deveria ser indiferente ao fato de que a água é um recurso finito e que tem relação com a criação de gado.”

Outra reflexão que está conectada com uma alimentação à base de plantas é o consumo local. Além de contribuir para a preservação do meio ambiente, a prática do locavorismo tem a ver com respeito às diferenças. “Não se pode querer que uma pessoa do Nordeste do país consuma as mesmas coisas do que uma pessoa do Sudeste”, diz Doctors. “Saber o que faz parte da biodiversidade em que se está inserido ajuda a diminuir a cadeia de abastecimento, valorizar a cultura e costumes locais, além de movimentar uma economia circular.”

Mais acolhimento e menos julgamento

A decisão de Brunna com apenas quatro anos em se tornar vegana motivada pela causa animal e ambiental foi uma lição para sua mãe. “Eu abracei a causa na hora, pois o que ela sentia vinha do coração e fazia todo sentido”, diz Sachs. Contudo, para Doctors, a diferença entre gerações pode tornar adultos resistentes a aceitar a alimentação vegetariana entre as crianças. “Muitos não entendem as razões pelas quais a criança toma essa decisão. Por isso, é importante que busquem compreender que existe uma nova consciência ambiental e alimentar em curso.”

Para Schneppendahl, “quando uma criança escolhe o vegetarianismo, comunicando que não quer mais comer carne ou não quer mais tomar leite, isso demonstra autonomia alimentar e isso é incrível”. Mas, será que os adultos estão mesmo dispostos a desenvolver essa autonomia, se escolhem o que as crianças comerão e já lhes dão tudo picado, questiona Doctors.

Além de ser um ato de respeito, acolher a decisão da criança em se tornar vegetariana é fundamental para estimular o desenvolvimento da autonomia, garantindo-lhes a capacidade de tomarem suas próprias decisões própria desde cedo e também as condições de assumirem as responsabilidades pelos seus próprios atos.

A importância de escutar a criança e a oportunidade de aprender juntos

“Estude com as crianças, pesquise sobre o assunto, assista a documentários”, recomenda Sachs. Além de fazer um breve passeio pela história da comida, o livro “O que vai ter para comer? O que você coloca no seu prato pode mudar o planeta”, das autoras Ariela Doctors e Maísa Zakzuk, pode ser um bom começo de conversa, pois traz dicas para colocar a mão na massa, estímulo a hábitos  alimentares mais saudáveis e propostas que ajudem a natureza a reagir nesse combate desigual com a indústria dos alimentos.

“Adultos precisam descer do pedestal de achar que sabem mais do que as crianças e entender que têm muito a aprender com elas também”

Para inserir a comida vegetariana no dia a dia da casa de um modo leve, Sachs sugere que a família possa cozinhar junta. “Alguns adultos podem até se tornar flexitarianos (vegetarianos ocasionais) ao descobrirem receitas numa nova versão”, diz. Se a intenção é quebrar o estranhamento entre amigos e família estendida, um caminho, segundo ela, é levar pratos vegetarianos a eventos quando todos estarão reunidos. “Aos poucos, as pessoas vão percebendo que essa é uma alimentação inclusiva e deliciosa.”

Leia mais

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS