Especialistas comentam o impacto da pandemia no convívio social entre as crianças e novos caminhos para o seu desenvolvimento
Como a pandemia está afetando as relações das crianças na sociedade? Nessa reportagem, especialistas apontam caminhos de como elas podem viver esta nova realidade sem perderem o vínculo social.
A presença das telas se impôs entre nós que seguimos privados do convívio social na pandemia. O recurso prometeu proximidade quando a distância se faz sinônimo de proteção e ajudou a manter o mínimo de contato com aqueles que mais amamos.
A rotina permanece quebrada, com os cacos arranjados em configuração improvisada e temporária, e vamos encontrando soluções mais ou menos capengas para lidar com a situação. Sujeitas à mesma realidade, as crianças também sofrem um empobrecimento de suas experiências devido ao confinamento.
Para tentar aplacar a saudade que essa distância insistente tornou regra e minimizar esse corte brusco nas relações, Marcela Teixeira, mãe da Manu, e Giordana Marques, mãe da Pietra, providenciaram videochamadas para que as meninas, ambas de quatro anos, pudessem se encontrar virtualmente e contar as novidades. Pelo menos uma vez por semana, elas vêm mantendo contato através da tela de um celular.
“Quando é dia de videochamada, a Manu fica superempolgada. Às vezes coloca uma roupa que é especial para ela, ou prepara a mesa do lanche com todo cuidado e carinho”, conta Marcela. “Também já fizemos sessão de cinema, com direito a pipoca ou pizza. Um aplicativo permite iniciar o mesmo filme de forma sincronizada e exibe uma pequena tela onde as crianças se vêem, garantindo certa interação”. Pietra, apesar de preferir ligação por voz, depois de trocarem fotos e áudios, deu uma chance ao vídeo, comenta Giordana.
Finzinho de tarde de uma sexta-feira, me juntei às meninas para acompanhar esse encontro. As mães prepararam um piquenique para que elas comessem enquanto mostravam seus brinquedos favoritos, perguntavam sobre os filmes que haviam assistido e conversavam ali do jeitinho delas. O foco se perde rápido, rápido, mas a experiência de um tempo “juntas” já vale a pena.
“O sujeito é sempre constituído com e pelo outro”, lembra Rodrigo Estramanho, sociólogo e psicanalista que estuda formas de comunicação entre jovens. “É evidente que o isolamento traz consequências para todos nós. Para a infância, o isolamento pode condicionar tanto ou mais o cotidiano, uma vez que a diminuição do brincar, a atomização da relação com os colegas no ambiente escolar ou de entretenimento, bem como uma suposta intensificação da vida com os pais e os irmãos pode significar mais ansiedade ou mesmo preponderar as fugas de atenção mobilizadas na TV e na internet. É bem provável que, para as crianças menores, esses processos de adaptação e entendimento das causas do isolamento sejam internalizados de forma diferente e com impactos diversos em sua formação”.
Enquanto a escola permanece fechada, um espaço promotor dessas relações durante a infância, reuniões por vídeo têm sido uma estratégia para crianças conversarem com amigos da sua idade. Marcela conta que a escola da Manu “não estimulou chamadas de vídeo entre as crianças, pois entende o contato através da tela uma experiência ‘vazia e sem emoção’”. Mas, ela não acha que seja o momento de “promover um ataque contra a tecnologia”, e sim reconhecer os benefícios de inclusive minimizar essa perda de vínculo. “O rostinho da Manu mostra a alegria de ver os amigos e isso é o mais importante!”
Karina Menezes, presidente do Raul Hacker Club de Salvador Bahia e idealizadora do projeto Crianças Hacker, também destaca o papel da conexão com colegas para a socialização das experiências vivenciadas nesse momento. “As tecnologias em rede possibilitam essa partilha e as crianças podem permanecer horas conectadas com um coleguinha em chamada de vídeo, falando de assuntos diversos”.
“Durante esse período, é a memória de uma certa normalidade que prevalece”
“O convívio de crianças entre pares é fundamental para a constituição do sujeito na medida em que as interações baseadas nos jogos, nas fantasias e na linguagem infantil acaba por ser recíproca”, comenta Rodrigo. Para ele, algumas produções culturais voltadas à criança também têm esse papel, “depende do acesso aos bens que possibilitam a qualidade dessas interações num momento como esse”, ressalva.
A pandemia confinou as crianças dentro de casa, muitas vezes restringindo a convivência delas apenas com os pais. Entre outros prejuízos à infância, pode haver sinais de que a comunicação infantil não corresponde ao ideal para a sua faixa etária ou apresenta alta carga de adultização. Marcela observou que estar isolada só com adultos, além de não estar encontrando os amigos diariamente na escola nem ter conversas de criança, afetou o comportamento da Manu. “Somos apenas mãe, pai e filha num apartamento. Notei que o vocabulário dela tem se desenvolvido muito rápido durante a quarentena”.
“Somos furtados do outro e/ou condenados ao mesmo palco e atores num cotidiano imerso nas incertezas do momento”, pontua Rodrigo. Para tentar administrar essas questões, ele recomenda “sensibilidade para ouvir, se interessar pelos comportamentos e atitudes das crianças, tentar compreender e ficar ao lado: escuta e amparo nos termos que eles suscitarem”.
“As crianças podem estar querendo nos dizer coisas por meio de uma língua que um dia falamos, mas que já esquecemos”
Karina lembra que “em cada casa, há diferentes infâncias. Cada criança é única e as respostas que elas apresentam frente à pandemia não serão as mesmas”. Além de olhar para a infância com afeto e cuidado, ela recomenda olhar também para as pessoas com as quais essas crianças convivem durante a quarentena. “Ou seja, temos que olhar para nós mesmos e autoavaliar o nosso jeito de nos comunicarmos com as crianças, para ajudá-las a se comunicar melhor conosco e com o mundo”.
Assim, conversar com elas de forma sempre verdadeira é o principal conselho, “para conseguir analisar como as crianças tendem a se adaptar – ou não – ao que estão vivendo”, aponta Karina. “Compartilhar medos, desafios, mostra que, como todos os sentimentos são importantes nesse processo, não podem ficar centrados apenas nelas mesmas”. A pedagoga indica ainda prestar atenção ao corpo da criança, “um dos seus primeiros veículos de comunicação. Ela comunica suas dores e alegrias através do olhar, do sorriso, da risada, do choro, do grito, do toque. Estamos nos lembrando de abraçar, fazer um cafuné? Estamos interagindo com as crianças de forma que não fiquem apenas largadas em frente à TV ou com pescoço dobrado no celular?”, questiona ela.
Além de desconhecer os reais impactos que todos esses meses de isolamento social trarão, Marcela comenta sobre a incerteza de quando as aulas poderão retomar com segurança e lamenta algumas mudanças sem despedidas. “Sei que alguns colegas já mudaram de cidade, outros mudarão de escola por conta da idade… imagino que não será fácil para as crianças, após esse longo tempo sem contato, chegar na escola e não encontrar boa parte dos amigos”.
Enquanto isso, precisamos garantir espaço para que cada criança se desenvolva integralmente. E isso se dá a partir do contato com o outro. “O nosso desenvolvimento socioemocional depende das interações que vamos construindo no decorrer da vida e a infância é o período de maior desenvolvimento, é quando as crianças têm os maiores ganhos biológicos e cognitivos”, comenta a pedagoga Karina.
“A criança precisa de espaço para se divertir, ter relações com os outros e desenvolver-se como sujeito”, comenta Rodrigo. “Se o mundo se fecha por uma contingência – como é o caso agora – é preciso abri-lo. Um bom caminho é contar histórias para dormir, resgatar brincadeiras e estimular a memória sobre momentos vividos fora dessa situação”, aconselha ele.
“Há no interior de todos nós recursos para resistir”
Karina segue na mesma linha, sugerindo falar com as crianças sobre o que elas têm feito. “Vale perguntar sobre um vídeo que assistiu na internet, relembrar um passeio, conversar sobre um filme, um desenhos animado”.
Estamos todos com opções reduzidas, mas, segunda Karina, é “responsabilidade do adulto ampliar o mundo da criança que está em casa, sem restringir essa obrigação apenas aos pais e as mães. Afinal, para se educar uma criança é preciso uma comunidade inteira”, lembra ela.
“Os mundos digital e físico hoje são o mesmo mundo. Um afeta o outro, estão interconectados”
Contudo, é preciso atenção, pois “um dos riscos para as crianças que são ‘abandonadas’ nos ambientes digitais é se perder das referências que deveriam ter em casa: valores, responsabilidades, cuidado com o outro, empatia”, comenta.
A pedagoga destaca ainda alguns comportamentos que têm sido estudados em países da Europa, onde a pandemia começou há mais tempo, que nos mostram que as crianças tendem a ser mais flexíveis para se adaptar às novas condições que lhe são impostas. A questão mais sensível, pondera, é que “ser flexível não significa que a criança possui preparo emocional para lidar com o que está acontecendo”.
De fato, é muita coisa para enfrentar e não precisamos dar conta de tudo. Rodrigo lembra que “esperamos que a criança possa viver seu tempo de aprendizado paulatino sem que seja atravessada pelas questões que afligem os adultos”, mas, infelizmente, não foi possível preservá-las integralmente dessa experiência que afetou, em maior ou menor grau, todos nós.
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