Memes e fake news: o impacto na educação das crianças

É preciso educar para a leitura crítica de conteúdos que circulam nas mídias sociais, defendem especialistas

Camilla Hoshino Publicado em 17.12.2018
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Resumo

Em tempos de notícias falsas, imagens manipuladas e velocidade de viralização, adultos e crianças precisam ser preparados para a leitura crítica de conteúdos nas plataformas de mídia, de acordo com especialistas. Entenda como os memes impactam esse cenário.

Há quem diga que o Brasil nunca mais foi o mesmo depois dos memes. Debates eleitorais, jogos da Copa do Mundo, manifestações de rua, a vida das celebridades e, se bobear, até sua ceia de natal: todo acontecimento é um meme em potencial. Na economia da velocidade, alguns apostam no humor, outros no engajamento político e tem gente investindo alto na mentira também.

Diante desse cenário, em que parte da comunicação estabelecida nas mídias sociais se resume a montagens de fotos ou textos com menos de 300 caracteres que podem viralizar em alguns minutos, uma pergunta se torna essencial: será que todo mundo está conseguindo traduzir as mensagens que postam, curtem e compartilham?

Essa dúvida incentivou a professora mineira de Língua Portuguesa Gilda das Graças e Silva a desenvolver uma proposta de leitura e análise crítica de memes com estudantes do ensino fundamental, na rede pública do Distrito Federal, na cidade de Samambaia. “Percebi que muitos alunos e pais estavam divulgando conteúdos sem saber o que havia por trás das palavras”, relata a professora.

O que é meme?

Meme é um fenômeno típico da internet: vídeos virais, fotos legendadas, citações, comportamentos, desafios, frases de efeito, desenhos, manifestações, ideias ou outros elementos da cultura popular, geralmente de caráter efêmero e que se espalham rapidamente nos ambientes virtuais, ganhando ampla repercussão social. Embora sejam imediatamente relacionados ao humor e ao “besteirol”, os memes são compreendidos por muitos pesquisadores como uma nova forma de letramento midiático, sendo constituídos por uma coleção de textos.

O termo aparece pela primeira vez em 1976, no livro de Richard Dawkins, “O Gene Egoísta”. Associado à ideia de gene, o meme é definido inicialmente como “uma unidade de transmissão cultural ou uma unidade de imitação”, atuando em conjunto e formando cadeias complexas de conceitos e comportamentos. Ao longo dos anos, o termo foi foco de discussões em diferentes áreas do conhecimento e passou a ser ressignificado com a difusão da internet.

“Somente a partir de fins da década de 1990 e início da década de 2000 é que os memes como hoje os conhecemos se difundiram na web, especialmente se manifestando como expressões de comunicação que ganhavam as redes sociais online através de uma forma de propagação viral.”

Fonte: informações do #MuseudeMemes, reunidas pelos pesquisadores da Universidade Federal Fluminense.

“Saber ler” nas mídias digitais

Se as tecnologias atuais ampliam as possibilidades de compartilhar informações, elas também impactam e diversificam a maneira como essas informações são produzidas e lidas, estabelecendo novas práticas sociais no mundo digital. De acordo com Gilda das Graças e Silva, que reuniu e avaliou o trabalho com memes em sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal de Uberlândia (MG), saber ler não significa apenas compreender a linguagem escrita, mas identificar e interpretar as diferentes modalidades de linguagens verbais e não verbais que compõem a mensagem.

A primeira proposta da professora foi estudar com os alunos memes que apresentavam crianças como protagonistas. “Escolhi a criança, pois ela é um sujeito que ainda não tem capacidade se manifestar quanto ao uso indevido de suas imagens, muitas delas com mensagens preconceituosas ou representações sexualizadas e adultizadas”, diz Gilda.

A experiência deu origem a um material didático possível de ser trabalhado em sala de aula com estudantes de várias séries, com mães, pais e professores de outras disciplinas, além da Língua Portuguesa, dentro de uma perspectiva de multiletramentos.

Entendendo os memes

Em busca de respostas sobre a popularização dos memes, o Lunetas conversou com o pesquisador, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e criador do Museu de Memes, Viktor Chagas.

Lunetas – Por que os memes fazem tanto sucesso?
Viktor Chagas – Não há uma explicação científica, mas uma observação comportamental. Os memes se configuram como uma linguagem que sintetiza informações de forma imediata. Eles materializam e facilitam o emprego de um conjunto de ações, sentimentos e comportamentos como expressão social.

O meme é um fenômeno que nos diz sobre a cultura e as práticas políticas de um país ou é uma tendência mundial ligada ao ambiente digital?
VC –
As duas leituras são possíveis. De um lado, assistimos a popularização de plataformas de mídia no mundo todo – como o caso do Facebook e do Twitter -, que acabam facilitando o desenvolvimento de novos tipos de linguagens próprias deste meio. Mas a adesão às plataformas varia de uma região para a outra região. O Reddit, por exemplo, que está entre as dez comunidades on-line mais populares do mundo, é muito utilizada nos Estados Unidos, mas não é popular no Brasil.

“Portanto, os países podem apresentar um ecossistema de memes bem diferente em função da maneira como se comunicam e a partir da plataforma que adotam”

É importante lembrar que a forma de expressão cultural se desenvolve a partir do contexto geográfico, social e político de cada região. Isso significa que o humor no Brasil é diferente do humor na China, na Rússia e do humor judaico, famoso pelas piadas autodepreciativas. Às vezes os memes têm origem em uma região, mas mudam de tradução e de identidade quando chegam a outro país ou são introduzidos em outro contexto.

Então, de certa forma os memes exigem um repertório cultural. Isso pode estimular o engajamento político ou, no fim, tudo termina mesmo em zoação?
VC – As duas coisas: os memes engajam e superficializam. Por um lado, eles conseguem ampliar o debate justamente pelo uso do humor, pois chamam a atenção de pessoas que não estavam próximas a um determinado assunto. Por outro lado, eles contribuem para superficializar um ambiente de discussão que poderia ser aprofundado com outros argumentos. Mas é preciso reforçar que, por mais que o humor tenha forte relação com os memes, ele não está presente necessariamente em tudo. Há memes sérios, como boa parte daqueles que são apropriados por movimentos sociais. Alguns exemplos são os memes utilizados pelos grupos feministas que denunciam “meu primeiro assédio” e “meu amigo secreto”. Eles possuem ações comprometidas. Mesmo que às vezes façam uso do humor, não se constituem por isso.

Os memes podem ser considerados culpados pela proliferação das fake news e pela superficialização do debate político ou culpados somos nós que não estamos conseguindo checar informação e fazer interpretação de texto?
VC –Exato. Os memes são simplesmente um recurso de linguagem, uma estratégia de comunicação, um gênero midiático. Quem faz uso dos memes somos nós. O principal problema advindo desse cenário não são os memes, mas sim a nossa capacidade de interpretá-los. Quando digo ‘nós’ estou me referindo a uma parcela da população.

Os memes acabam funcionando como uma “muleta de acesso” para grande parcela da população brasileira que foi historicamente alienada do debate político e ainda não possui condições de atuar nesse tipo de debate de forma aprofundada.

“É preciso educação política para pensar criticamente a realidade. Se trata de um problema de letramento político”

Nesse sentido, você acredita que a educação política e digital será uma ferramenta indispensável para garantir a democracia?
VC – Nas eleições de 2018, vivenciamos um cenário de intensa circulação de fake news, potencializado em parte pelos memes. Ao mesmo tempo não é possível cobrar que não se faça uso dos memes em função do fato de que pessoas não estão aptas a interpretá-los. Pelo contrário, é preciso fornecer condições para que pessoas leiam os diversos recursos de comunicação de forma absolutamente crítica. É preciso educar para que consigam receber uma notícia, distinguindo fatos de montagens, sabendo a origem da informação e se provém de fonte qualificada.

O problema, portanto, não está na mensagem, mas na baixa capacidade de leitura crítica. Mensagens que induzem à enganação, que são planejadas para estimular uma reação pública, sempre existiu. A diferença é a velocidade com que as informações chegam às pessoas e o potencial de viralização que apresentam hoje.

Aguçando o olhar crítico

Se os acontecimentos políticos e outros fenômenos sociais estão indicando que parcelas da população possuem pouca capacidade de aprofundar debates, argumentar e até distinguir notícias falsas de fatos, voltamos ao primeiro passo fundamental da professora Gilda das Graças e Silva, isto é, desenvolver nas escolas o exercício de “aprender a ler” no contexto das mídias sociais.

“O que antes era engraçado para os alunos, passou a ser visto com outros olhos”, afirma Gilda. Para ela, que utilizou a representação da criança em memes de WhatsApp como material gerador das discussões em sala de aula, aguçar o olhar sobre essas mensagens impacta diretamente a atitude de postar, curtir e compartilhar conteúdos, ao estimular o uso consciente da informação que circula nas plataformas de mídia social.

Mas para que esse trabalho seja foco de currículos escolares, na opinião de Gilda, os próprios professores devem ser estimulados e preparados para a leitura e análise crítica desses conteúdos. Letramento político e midiático é um desafio intergeracional. Em tempos de notícias falsas, imagens manipuladas e de memes sendo usados como triunfo da verdade de cada um, checagem de informação e interpretação de texto acabam se tornando moedas valiosas.

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