Em “A passagem secreta”, Mac Barnett defende histórias que valorizem as crianças. Então, o que considerar antes de comprar um livro?
Escritores e especialistas em educação defendem que literatura infantil não precisa ser didática, mas sim uma arte capaz de expandir a imaginação e que respeite a inteligência das crianças.
“As crianças são pessoas com esperanças e medos, que têm vidas interiores ricas, que experienciam alegria e tragédia”, escreve o autor estadunidense Mac Barnett. “Elas têm o direito de ter histórias interessantes e arte cheia de significado.”
Barnett considera que a literatura infantil é arte e um direito das crianças. Mas, segundo ele, muitos títulos voltados à infância são “enfadonhos”. Isto é, acabam por moralizar ou subestimar o leitor.
Para o autor, parte do problema está no baixo apreço de muitos adultos pela capacidade das crianças. “Não acreditamos que elas sejam capazes de compreender a arte. Tendemos a pensar nelas como tendo mentes menos sofisticadas, capazes de emoções intensas, mas simples.”
Neste livro, Barnett coloca as crianças no centro e defende que literatura infantil é coisa séria. De acordo com ele, elas têm o direito de viver rodeadas de arte. Barnett também é autor, entre outros livros, da série “O primeiro gato no espaço” e “Kidspy – um agente disfarçado”, por exemplo.
A partir das provocações de Mac Barnett, Lunetas conversou com Kátia Chiaradia e João Luiz Guimarães para entender como avaliar livros infantis. Eles então compartilham uma lista comentada de títulos para começar — ou renovar — a estante.
Especialista em literatura infantil e tradutora da edição brasileira de “A passagem secreta”, Kátia concorda com a classificação do autor para obras “que querem moldar a criança, seu pensamento, como se nós adultos fossemos parâmetro de sucesso”. De acordo com ela, “a gente quer transformar as crianças em miniadultos e não permite que vivam o momento. Achamos que elas precisam se preocupar com o que vão ser. Isso é uma grande bobagem, porque a criança é, ela existe plenamente, completamente.”
“Uma das ferramentas que a gente usa para moldar as crianças nesse padrão são os livros, porque muitos deles dizem que ‘é assim que deve ser’”, afirma Kátia. “Talvez por isso muitos títulos pareçam ‘enfadonhos’ aos leitores.”
Já para o escritor João Luiz Guimarães, “muito da literatura infantil no mercado hoje é sofrível, no sentido estético, linguístico, simbólico e ético. O infantil não deveria nunca se confundir com o infantilizado ou infantiloide”.
“Quando escrevo o ‘Sagatrissuinorana’, converso com todas as fases que existem em mim mesmo — da criança que fui ao adulto que sou. E não subestimo a inteligência dos meus leitores”, afirma. O livro homenageia Guimarães Rosa e reconta a fábula dos “Três porquinhos” em meio ao rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais.
Segundo João Luiz, crianças e adultos podem ler sua obra de modos diferentes — por repertórios e vivências distintas —, e isso não é um problema, é parte do jogo literário. No entanto, “não significa que, como autor, eu deva procurar rebaixar o nível da minha linguagem. Pelo contrário, um certo grau de desafio e de mistério deve sempre existir na literatura”.
Em vez de diminuir as crianças e moldá-las às vontades e ideais dos adultos, Kátia Chiaradia e João Luiz Guimarães sugerem preservar e enaltecer o poder da imaginação.
Para Mac Barnett, a imaginação é uma das poucas experiências que a criança vive de modo independente. Portanto, um bom livro respeita essa autonomia — e pode expandir seus limites.
“A curiosidade, a sensibilidade e a imaginação das crianças sempre exigirão histórias novas e ambiciosas”, Mac Barnett
A partir da leitura de Barnett, Kátia e João Luiz entendem que literatura infantil não é manual — não doutrina, não disciplina. Pelo contrário, abre perguntas, em vez de entregar respostas prontas.
“Muitas histórias não deixam nada para a criança preencher, criar. E a leitura é um pacto entre o texto e quem o lê. Se não tem nada para fazer ali, se a leitura já está dada na escrita, então não tem espaço pro leitor”, reflete Kátia. “O que eu, como leitor, posso fazer no texto senão dar sentido para ele?”
Para João Luiz, “a literatura é um brinquedo infinito”. Ela não serve exatamente para nada em particular, não é útil, mas sim um fim em si mesma, assim como o brincar da criança, que é uma das coisas mais sérias que existem.
De acordo com ele, o livro para criança tem dois papéis principais:
Para isso, em suas obras, João Luiz procura adotar uma postura de “falar com” a criança, ao invés de “falar para” a criança. Ou seja, escolhe uma abordagem que dialogue mais próximo ao nível do seu pequeno leitor, e não a partir da autoridade dos adultos, de cima para baixo.
Ele usa a metáfora da “caixa de ferramentas”: uma criança que só tem em seu repertório martelos, irá enxergar todos os problemas da vida como sendo pregos. Por isso, enquanto autor, o desafio é o de ampliar a variedade de itens nessa caixa, incluindo serrotes, chaves de fenda, alicates, tesouras e lixas.
Para Mac Barnett, histórias para crianças podem ser ambíguas, complexas e paradoxais. A literatura infantil ganha quando inclui diversidade de temas, estilos e pontos de vista, como ocorre na literatura para adultos.
“O autor de livros infantis não é, de forma alguma, obrigado a ensinar, encorajar ou explicar. A única coisa que realmente deve fazer é contar boas histórias”, escreve Barnett. “E as melhores histórias para crianças — assim como as melhores histórias para adultos — contam a verdade sobre o que significa ser humano neste mundo.”
Kátia Chiaradia recomenda sempre ler o livro antes de dá-lo para uma criança. “É importante saber qual é a história e se ela se conecta com quem vai receber a obra, porque, principalmente na primeira infância, as histórias demandam mediação“, diz. “O livro é o início de uma relação. Se eu dei um livro para uma criança, eu preciso conversar sobre ele com essa criança.”
O Lunetas convidou João Luiz Guimarães e Kátia Chiaradia para ajudar na escolha de histórias que, como nas palavras de Barnett, “não repetem às crianças as mesmas banalidades que elas já ouvem por toda parte”.
escolheu livros com temas que poderiam ser apenas para “gente grande”, mas que se transformaram em obras que conversam sobre preconceito e desigualdade social de forma acessível para “gente de todas as idades”.
Quatro vozes narrativas contam a mesma história de um dia no parque a partir de pontos de vista bem diversos: um menino, sua mãe rica, uma menina e seu pai pobre. As ilustrações dialogam com o estilo de artistas plásticos como Edward Hopper e René Magritte, emprestando múltiplas camadas de leitura. Por fim, a obra consegue discutir, nas entrelinhas, a questão do preconceito e da exclusão social.
A história de um urso que entra numa gruta para hibernar e acorda no interior de um complexo fabril. Agora, perdido entre operários e máquinas, ele tem que convencer os gerentes de que é só um urso. Essa jornada kafkiana atravessa assim toda a hierarquia da fábrica, chegando ao presidente. Ao final, o urso é levado a acreditar que é um homem. Com bom humor e repetições acumulativas (que as crianças adoram), o livro discute a “desumanização” da classe operária, através do recurso de mostrar a “desursificação” de um urso.
As ilustrações do artista brasileiro Nelson Cruz conseguem emprestar novas e sutis dimensões ao clássico texto do alemão Bertolt Brecht. Como seria se o mundo subaquático fosse dominado pelos tubarões de forma análoga à dos humanos na terra? Com fina ironia, o narrador nos informa das incríveis benesses e dos confortos que os tubarões proporcionariam para os peixinhos, tudo para deixá-los felizes e alienados. Ou seja, mais dóceis e fáceis de serem convencidos a entrarem nas bocarras dos tubarões.
escolheu livros que vão contra o senso comum (tão criticado por Barnett) de que livros infantis devem ser educativos, ter personagens que só deem bons exemplos, com ilustrações sempre muito coloridas e sem abordar temas complexos demais.
Os três porquinhos construíram casas à beira de um vale. Porém, aqui, ao invés de o lobo derrubar as casas, quem faz isso é a lama vinda de uma barragem rompida. Contar a história dos três suínos usando o estilo do livro ‘Sagarana’, de João Guimarães Rosa, mostra que crianças podem sim entender e se encantar com palavras inventadas.
Julián vai acompanhar a avó na hidroginástica e, na volta, resolve arrancar a cortina e estragar a samambaia para fazer uma fantasia. Aqui, mostramos uma atitude que poderia soar como “arte”, “coisa errada”, “vandalismo”. Mas a história celebra a individualidade, o amor e o respeito, destacando a importância do apoio familiar e da diversidade.
Em cada página, os leitores podem encontrar crianças escondidas na ilustração. Elas se escondem em cenários misteriosos e em lugares improváveis. A brincadeira é boa e a ilustração é um tanto sombria, indo na contramão da ideia de que crianças só gostam de cores vibrantes.
A irmã de Anselmo vai crescendo e vendo seu irmão mais velho, que tem deficiência intelectual, continuar brincando. Fugimos da ideia de que crianças só devem falar de fantasias e mágicas e que inclusão é um tema muito complexo, que criança não entende.
Mac Barnett começou a se interessar por crianças quando estava na faculdade e monitorava uma colônia de férias, na Califórnia. Para passar o tempo, ele então inventava histórias para as crianças menores e fez sucesso dizendo a elas que, nos fins de semana, era espião da rainha da Inglaterra. Anos mais tarde, essa história se transformou no livro “Kidspy – agente disfarçado” (Nanabooks). Nele, Barnett é um garoto que decide sair escondido dos pais, pegar avião sozinho, atravessar oceanos, se envolver em perseguições para ser o espião secreto da rainha da Inglaterra. Ele definitivamente é uma péssima influência para todas as crianças (e por isso todas elas o adoram!). Vencedor de prêmios literários nos Estados Unidos e em outros países, como Alemanha, Itália e China, Barnett é também o Embaixador Nacional da Literatura Juvenil pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos em 2025-2026.