O Estatuto da Criança e do Adolescente cuidou da infância de muitos adultos de hoje e segue como referência para ampliar os direitos de todas as crianças
35 anos de ECA! Desde 1990, ano de sua criação, crianças e adolescentes passaram a ser sujeitos de direitos. Isso significa, na prática, a possibilidade de uma infância melhor, com mais saúde, mais segurança, mais educação e também mais felicidade!
Se você tem até 35 anos ou conhece quem viveu a infância em 1990, mesmo sem perceber, vocês cresceram amparados por um marco. Isso porque, a partir da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, o país passou a ver crianças e adolescentes não mais como “menores” ou “adultos em formação”, mas como sujeitos de direitos.
Desde então, leis que respeitam e protegem essa fase de vida, com absoluta prioridade, trazem oportunidades reais de viver melhor. Nesse tempo, houve uma redução histórica da mortalidade infantil, avanços na escolaridade, intensificação do combate ao trabalho infantil e um olhar cuidadoso para a convivência familiar segura.
Exemplo de base para essa construção, o ECA segue sendo a bússola para fortalecer os direitos quando o assunto é o bem-estar dos mais novos. Além disso, serve como guia para quem o aplica. “O ECA ajuda a enfrentar retrocessos e orientar saídas para as emergências do nosso tempo presente”, diz Mariana Zan, advogada do Instituto Alana.
A seguir, o Lunetas celebra leis dos últimos 5 anos que, embasadas no ECA, ajudaram a ampliar os direitos de crianças e adolescentes.
Criada após a vida do menino Henry, de 4 anos, ser interrompida dentro de casa pela mãe e seu namorado, a lei é uma das mais importantes nos anos recentes no âmbito das infâncias e adolescências, segundo os especialistas. Ela passou a proteger crianças — vítimas ou testemunhas — de violência no contexto doméstico.
“Para além das medidas de proteção previstas no ECA, a Lei Henry Borel criou instrumentos legais que garantem a segurança de crianças em situação de risco e determinam a aplicação de medidas de afastamento do agressor, prisões preventivas e acompanhamento psicossocial”, explica a advogada Mariana Zan.
Além disso, a lei também traz conscientização à população e prevê medidas preventivas em relação à violência, como a promoção e realização de campanhas, programas educacionais e pesquisas sobre violências contra crianças e adolescentes.
De acordo com o ECA, toda criança tem direito de viver com sua família e desfrutar de laços comunitários. A história de Luciana e Gustavo Leitis mostra como é o caminho percorrido na adoção para vivenciar esse direito. “Foram três anos para entrar na fila, com muita documentação e um curso obrigatório que nos lembra sobre o real sentido de ter filhos.”
“No caso da adoção, o Estado está procurando uma família para a criança, e não uma criança para a família”, diz Luciana.
Depois, o casal passou por uma entrevista. Foi então que chegou à conclusão de que estava em busca de uma menina entre 3 a 8 anos, sem irmãos. “É uma situação constrangedora e desconfortável, mas tenho certeza que ela contribui para a redução de casos de devolução de crianças adotadas. É triste falar assim, mas sabemos que isso acontece.”
Antes do ECA, o abandono de crianças era algo comum. Quem acolhia essas crianças eram instituições religiosas – a principal forma de assistência infantil nos séculos 18 e 19. Relata-se que, no Brasil, a primeira “Roda dos expostos”, como era chamado o lugar onde as crianças eram deixadas, data de 1726, na Bahia. Em um compartimento cilíndrico instalado na parede da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, havia uma prancha que girava de fora para dentro, onde a criança era colocada.
Em março de 2024, cansados da espera, Luciana e Gustavo decidiram sair da fila. Mas, no mês seguinte, receberam a notícia: havia uma menina para adoção com o perfil deles. Gabi, agora filha do casal, estava em Guarapuava (PR) enquanto eles estavam em Curitiba (PR), a uma distância de 256 km. Embora Luciana diga não poder afirmar que seu processo se beneficiou da Lei 14.979/2024, que determina a busca em diferentes cadastros no Brasil, essa história prova que a gestão efetiva de informação pode garantir o melhor interesse da criança.
Sem ignorar a alegria da adoção, Luciana destaca melhorias necessárias, como preparo às famílias acolhedoras e mais presença do Estado no pós-adoção. “Depois que recebi a guarda da minha filha, ninguém a procurou.”
Esta lei reforçou a luta contra a exploração sexual infantil, aumentando penas e ampliando quem pode ser considerado agressor. Mas, para que um agressor seja denunciado, é preciso que a vítima, seus responsáveis e sua rede de apoio o reconheçam como tal. Para Patrícia Almeida, idealizadora do projeto “Eu me protejo”, “só a lei não basta, é preciso ensinar as crianças sobre seus direitos”.
Assim, o projeto as ajuda a entender que o corpo é delas e que ninguém pode tocá-lo sem permissão. Segundo Patrícia, o “Eu me protejo” mostra que é possível promover uma educação integral em sexualidade sem constrangimento e que, assim, crianças têm mais autonomia para pedir respeito.
“Quando orientamos as crianças que é errado alguém bater nelas e que a culpa não é delas, elas se sentem fortalecidas com essa informação e seguras para procurar uma pessoa de confiança, até encontrar proteção”, conta Patrícia.
Há três anos, o projeto faz parte do currículo escolar de Santo Antônio do Descoberto (GO), o que garante sua continuidade mesmo com mudanças no governo. Patrícia relata que as denúncias de violência aumentaram na cidade, porque as crianças passaram a entender o que é certo e buscar ajuda.
Essas três leis recentes mostram como a saúde de crianças e adolescentes tem se beneficiado na prática. O destaque vai para a lei que ampliou o teste do pezinho, incluindo mais doenças que podem ser descobertas logo após o nascimento, ajudando a tratá-las com antecedência. O Ministério da Saúde estima que o teste atual tem mais de 82% de cobertura nacional.
Ainda que sem menção específica a crianças trans no ECA, Thamyres Nunes, fundadora da ONG Minha Criança Trans e mãe de uma criança trans, lembra que o Estatuto assegura a proteção integral e o princípio do melhor interesse de todas as crianças, sem discriminação. Com base nisso, em agosto de 2024, 106 crianças e adolescentes de mais de 10 estados brasileiros puderam ter seu nome e gênero retificados em seus documentos. Organizada pela ONG com apoio da Defensoria Pública e do Ministério Público do Rio de Janeiro, a ação – chamada de “Mutirão do amor” – foi inédita no país.
“Só possuem direitos aqueles que têm suas existências reconhecidas”, afirma Thamyres. “Crianças trans precisam deixar de ser uma disputa baseada na moral e nos costumes, porque são uma população vulnerável digna de proteção e direitos.”
Emocionada com a experiência, ela destacou a força simbólica e afetiva do evento. Para ela, trata-se de um exemplo de como a sociedade civil pode agir, cobrar pelos seus direitos e vê-los sendo garantidos, a partir da orientação do ECA.
Já Lucas Lopes, secretário executivo da Coalizão pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes, cita a lei que fortalece a atuação intersetorial entre os sistemas de justiça, assistência social, saúde, educação e segurança pública (13.431/2017). “Embora a legislação tenha sido promulgada anteriormente, sua efetivação ganhou impulso com a recente institucionalização da escuta especializada e do depoimento especial em diversos estados brasileiros.”
Segundo ele, isso gerou “um avanço significativo na redução da revitimização institucional e na promoção do direito à escuta qualificada. Isto é, a escuta realizada em ambientes protetivos, com profissionais capacitados e metodologias adequadas ao desenvolvimento infantil e juvenil”.
Outro exemplo que destaca a força e a atualidade do ECA está nas leis que visam proteger a presença no ambiente virtual e o uso da internet. Nesse sentido, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), de 2017, exige que qualquer uso de dados de crianças atenda ao seu “melhor interesse”. Já a resolução nº 245/2024, do Conanda, afirma a proteção de crianças e adolescentes, com “prioridade absoluta”, no ambiente digital. E que essa proteção é responsabilidade de famílias, Estado, sociedade e empresas. Isso inclui a defesa contra conteúdos impróprios, cyberbullying, discurso de ódio, assédio, vícios digitais e exploração sexual ou comercial.
Por fim, entre os temas em que a proteção integral de crianças e adolescentes ainda precisa avançar, está a pauta das mudanças climáticas. O Projeto de Lei 2225/2024 propõe a criação do Marco Legal Criança e Natureza e reconhece a urgência de proteger os grupos mais vulneráveis a eventos ambientais extremos, insegurança alimentar e crises sanitárias.
Mas, de modo geral, a infância segue invisibilizada nos espaços formais de decisão sobre os problemas que a atinge. Por exemplo, a participação infantojuvenil em espaços como a COP30, que acontece em novembro, em Belém, ainda é mínima.
Então, este é um chamado à coerência. Afinal, um país que se orgulha do seu Estatuto da Criança e do Adolescente não pode ignorar as principais vítimas de um dos maiores desafios da atualidade.
Em 2022, foram 22.527 casos de maus-tratos contra meninos e meninas entre zero e 17 anos. Isso significa um aumento de 13,8% em relação a 2021 e uma taxa de 45,1 novos registros por 100 mil habitantes dessa idade.
Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023