Crianças podem transformar um quintal em ‘Continentes’

Em novo livro, Gabriela Romeu e Anita Prades convidam a explorar esse espaço e a usar a imaginação para transformar elementos da natureza em brinquedos

Renata Rossi Publicado em 06.02.2025
Imagem de capa par amatéria sobre o livro Continentes, mostra uma ilustração de um quintal de fundo azul e vários elementos da natureza coloridos pelo chão.
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Resumo

Em “Continentes”, a escritora Gabriela Romeu e a ilustradora Anita Prades, traduzem a jornada de brincar no quintal pelo olhar de uma criança. A ideia é convidar o leitor a transformar as miudezas que habitam qualquer quintal de casa em brinquedos.

“As crianças brincam e muito! Elas sabem inventar seu próprio quintal”, diz a escritora e documentarista Gabriela Romeu. Em quase 30 anos observando experiências de ser criança em várias regiões do Brasil, ela afirma que a imaginação infantil pode fazer qualquer espaço virar lugar de brincar. “Elas transformam os mais variados espaços em campos de invenção. São locais onde a imaginação não tem mesmo fronteiras.”

Em parceria com a ilustradora Anita Prades, Gabriela narra as aventuras dentro desse território cotidiano, que é o quintal de casa. “Continentes”, publicado pela Peirópolis, convida as pessoas – crianças e adultos – a terem vontade de ir para fora, cavucar o chão e criar seu próprio continente.

A brincadeira de criar esta geografia imaginária não se restringe ao brincar na natureza, embora este seja o principal chamado. “Qualquer lugar vira quintal: na sala, debaixo do sofá, na varanda, no condomínio, no pátio da escola, nos fundos da casa, em uma pracinha”, sugere a escritora.

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“Continentes”, de Gabriela Romeu, Anita Prades (Peirópolis)

O que cabe em um quintal habitado pela infância? Na geografia imaginária desta obra, as autoras mostram que é o mundo inteiro. De cordilheiras a vulcões, bichos da terra e do ar. Acompanhamos um dia na vida de uma menina, que pode ser uma saga. Ao explorar o quintal, o leitor se aproxima do faz de conta e recebe um chamado a enxergar as miudezas. Olhar o que tem no chão, espiar as frestas e desvendar os segredos. Inventar um mundo que se recolhe com o silêncio da noite.

‘Meu quintal é maior que o mundo’

O poeta cuiabano Manoel de Barros já tratava da ludicidade do quintal de uma casa e do poder imaginativo de enxergar as coisinhas pelo chão. Portanto, é desses elementos que os brinquedos e as brincadeiras podem se reinventar, a partir do olhar de quem vive a infância.

“Quando era criança eu deveria pular o muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas.” Manoel de Barros – “Meu quintal é maior que o mundo” (Alfaguara)

Para Gabriela Romeu, é na variedade de texturas da terra, folhas e insetos, assim como os sons e silêncios da natureza, que está o chamado para imaginar. “O chão faz diferentes convites para brincar. Se tem sombra, as crianças sentam e podem ficar um tempão brincando”, explica. Além disso, “elas fazem brinquedos elaborados com elementos da natureza e com os restos das coisas. Então, tudo vira possibilidade para um brinquedo.”

Em “Continentes”, as autoras suscitam a potência imaginativa da infância. É assim que uma bacia, por exemplo, se transforma em rio. Já as carapaças de insetos se tornam um sítio arqueológico. Tudo dentro de um quintal.

“A criança tem desejo de tatear as peles do mundo. O tato é nosso sentido primeiro, é algo ancestral. Quis trazer isso de descobrir com as mãos, a relação com o chão, com a invenção das coisas do caminho, diz Gabriela.

Que as crianças não percam o sentido de um quintal

Em muitos lugares, a palavra “quintal” está desaparecendo, pois, atualmente, nem todas as crianças têm essa imagem para guardar. “Em um trabalho de escuta, algumas nem sabiam o que era um quintal. Foi preciso então ‘cavucar’ esse lugar dentro delas”, conta a escritora.

“Ouvi de um menino: ‘meu quintal é dentro do guarda-roupa, onde eu invento uma floresta.’ Essa fala me marcou muito, porque mostra como as crianças reinventam e criam universos”, relembra Gabriela.

No livro, há também provocações de um vocabulário que pode despertar a curiosidade dos pequenos leitores. Por isso, a autora assinala que não é motivo para ter medo. “Eles gostam de ouvir palavras que, mesmo sem entender completamente, provocam sentimentos, intuições e imaginação.”

O texto é aberto e metafórico. Assim, aliado à narrativa visual, reinventa o mundo com as peles do chão, como diz a autora, e aproxima as crianças de palavras-paisagens, como: cordilheira, colina e cupinzeiro – para ficar só na letra C, pois há muitas outras.

A reflexão que fica é que, em um mundo onde as crianças têm nas mãos ou uma tela ou um plástico colorido como brinquedo, descobrir palavras e tatear as miudezas do chão pode ser revolucionário. No quintal, as palavras ficam e os brinquedos, no fim do dia, voltam à terra e se transformam de novo.

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Ilustrações: Anita Prades

Na geografia imaginária, objetos do cotidiano se abrem à poesia do faz de conta.

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Ilustrações: Anita Prades

As miudezas e cacarecos do chão se reinventam nas mãos da menina para conduzir a novos mundos, do outro lado da cordilheira.

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Ilustrações: Anita Prades

Bichos do chão e do ar, juntos, se tornam povoados.

As paisagens que nos habitam

A antropóloga Michèle Petit, cita em seu livro “Somos animais poéticos: A arte, os livros e a beleza em tempos de crise” (Editora 34) uma frase da cineasta Agnès Vardas: “Se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens. Em mim, encontrariam praias”. Da mesma forma, Gabriela Romeu brinca com essa frase: “Se me abrissem encontrariam quintais.”

Para ela, as crianças têm muitas paisagens interiores. Não se trata só das memórias geográficas, das cidades e dos lugares onde já passaram, mas também as de silêncio, de solidão, de sonoridades.

“A ideia é que a gente possa alimentar esse lugar das paisagens nas crianças e a literatura alargar nossas paisagens interiores. É algo que diz a Michèle Petit. Ao alargar essas paisagens, lemos melhor nós mesmos e o mundo”, defende Gabriela.

Compor as paisagens internas por meio da literatura é algo que a própria Michèle fez: “Os livros oferecem uma cabana de onde percebemos não apenas os ruídos ou o canto do mundo, mas também as paisagens. Quando era criança, até parece que era isso que eu buscava nos livros: paisagens. Ou seja, talvez fosse isso que eu encontrasse nos livros, mesmo sem buscar.”

Outros quintais de Gabriela Romeu

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“Terra de cabinha – Pequeno inventário da vida de meninos e meninas do sertão”, de Gabriela Romeu e Samuel Macedo (Peirópolis)

É um livro que pode ser lido de muitas maneiras, com diversos gêneros textuais que informam, divertem e surpreendem. Desse modo, traz histórias, causos, brincadeiras, receitas, versos e adivinhas. Além disso, as muitas vozes que compõem a obra contam como vivem as crianças do sertão.

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“Lá no meu quintal: O brincar de meninas e meninos de Norte a Sul”, de Marlene Peret, Gabriela Romeu e Kammal João

O brincar é uma espécie de língua-mãe da infância, pela qual Gabriela Romeu, Marlene Peret e Samuel Macedo conheceram o Brasil. Dessa forma, conectaram-se com as crianças das beiradas de rios, dos grandes centros urbanos, de comunidades quilombolas e povos indígenas. O registro da coleta desta língua pelos quintais das cinco regiões está neste livro. 

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“Diário das águas”, de Gabriela Romeu e Kammal João (Peirópolis)

O tempo da cheia e da seca. Nesse ritmo, o diário ilustrado, mês a mês, leva o leitor a conhecer a vida de quem está nas margens dos rios. Entre versos, receitas, poemas e dizeres dos mais velhos, vamos nos assentando no tempo do rio, que é estrada, quintal de brincadeira e meio de sustento. 

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“Noite de brinquedo”, de Antonia Mattos, Gabriela Romeu e Luci Sacoleira (Peirópolis)

Obra permeada dos saberes da cultura brasileira, traz o rito de passagem da menina Maria, que cresceu brincando o reisado, até o dia em que precisa passar a coroa de rainha a uma menina mais nova. Somado a isso, o mistério toma conta da narrativa e, assim, Maria é convocada a atravessar o sertão numa noite escura sem fim.

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“Menininho”, de Gabriela Romeu e Elisa Carareto (Panda Books)

Menininho espreitava a vida dos passarinhos nas árvores do quintal, enquanto recolhia objetos para criar seus brinquedos. Era o rei dos cacarecos, como dizia a irmã. Mesmo assim, entre costuras e marteladas, menino e passarinho estão unidos pelo fio da história.

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