Em miniCOP realizada no Complexo da Maré (RJ), crianças pedem que suas vozes sejam ouvidas, além de melhores condições de saneamento, educação e lazer
Crianças da Maré, no RJ, apresentam demandas relacionadas à saneamento básico, educação e lazer à Janja e à ministra Anielle Franco, em uma miniCOP. A iniciativa reflete a construção do protagonismo e engajamento dos moradores em relação a questões ambientais urgentes.
Para quem vive os impactos da crise ambiental no presente, como as crianças do Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, não dá para deixar para depois a esperança de um futuro melhor. Miguel, 12, por exemplo, tem um desejo simples – e urgente: “queria pedir menos esgoto a céu aberto”.
Junto a outras crianças, Miguel teve a oportunidade de apresentar à primeira-dama Janja e à ministra da igualdade racial, Anielle Franco, uma série de demandas relacionadas a saneamento básico, educação e lazer. A conversa aconteceu durante uma miniCOP realizada na Nova Holanda, uma das 16 favelas do bairro, em agosto. A iniciativa, que incentiva o protagonismo juvenil, é inspirada na Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30), que este ano será em Belém do Pará.
“Somos afetados o tempo inteiro pelas limitações do território. Isso porque ele não foi pensado para 140 mil habitantes”, afirma Kamila Camilo, ativista climática e fundadora do Crias do Tijolinho, instituto social, artístico e ambiental da Maré, responsável por organizar a miniCOP. Kamila conta como o acesso à água durante sua infância dificultava reunir amigos e familiares em aniversários e churrascos. De lá para cá, muita coisa mudou, mas problemas antigos ainda persistem. “Por que eu tô contando essa história? Porque independentemente da idade, a gente não tem direito ao lazer”.
Por isso, Miguel sabe que seu pedido precisa de soluções concretas. Com esgotos correndo a céu aberto e que alagam quando as chuvas são fortes, fica difícil ir para a escola a pé, acessar o posto de saúde ou que sua família saia para trabalhar. Segundo ele, “é bom lembrar que os valões já foram um rio um dia e que estão assim porque o ser humano jogou muito lixo”.
Ao longo de um mês, as crianças do projeto Crias do Tijolinho se prepararam para a miniCOP por meio de conversas sobre o clima e produção de cartas e cartazes com mensagens relacionadas a problemas socioambientais. Brenda Mel, uma das educadoras que conduziu essas oficinas, conta que foram as próprias crianças que escolheram o modelo de apresentação de ideias. De acordo com ela, é fruto de uma “educação ambiental crítica e de base favelada”.
“Essa carta que escrevemos eu queria que fosse para Belém do Pará para ouvirem a nossa voz”, Miguel, 12 anos.
“Num dia de chuva, o teto [da galeria de arte] desabou, e desde aí nós perdemos o direito de brincar”, contou Jhennyfer, 18, durante uma apresentação aos visitantes. Por isso, as crianças pediram uma reforma na galeria, para conter os alagamentos. Janja anunciou o compromisso: “Vou ver se consigo trazer o presidente Lula para inaugurar a galeria.”
Também pediram a liberação das piscinas públicas nos dias de calor e uma quadra nova de esportes. Arthur, 10, mostrou a eles o projeto. “A gente quer com grama, traves e demarcação.” Os pedidos refletem a ansiedade de quem teve o direito básico de brincar ameaçado pela invisibilidade.
Enquanto ouviam as demandas, Janja e Anielle, acompanhadas pelo secretário da cultura do Rio de Janeiro, Lucas Padilha, e o secretário do Ministério da Cultura, Márcio Tavares dos Santos, faziam anotações e trocavam olhares. “Eu quero muito que vocês tenham certeza de que a gente vai construir uma COP diferente”, disse Janja. “Eu já fui em duas COPs, e elas não têm nada de humano, nada da realidade que se vivencia nos territórios.”
Já Anielle afirmou que “todo e qualquer projeto que diz respeito à primeira infância e às pessoas mais pobres precisa ser política de Estado”. Para a ministra da igualdade racial, que cresceu na Maré e também teve diretos e sonhos ignorados pelo poder público, revisitar seu bairro na miniCOP é uma chance para fazer diferente. É a oportunidade de romper com o racismo ambiental, que faz com que os impactos climáticos afetem as infâncias de formas distintas. E Kamilla então garante: “Tem muita criança que sabe o que é racismo ambiental”.
Em 2021, o Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança reconheceu que a mudança do clima é uma questão de direitos humanos infantis, já que as crianças são as mais afetadas pelo aquecimento do planeta e já vivenciam um aumento descontrolado desses impactos. Um estudo realizado pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI) registrou 6.772 eventos climáticos no Brasil em 2023, um número 236,9% maior que em 2019.
A mesma pesquisa aponta a vulnerabilidade dos territórios de favela, como a Maré, que devido à precariedade habitacional e alta densidade, podem apresentar temperaturas 5ºC superiores às de áreas arborizadas, que amenizam a sensação térmica. Essa elevação identificada nos termômetros, conforme explicam os especialistas do NCPI, aumenta os riscos de desidratação, doenças respiratórias e estresse térmico, sobretudo em bebês.
Para se ter uma ideia, em fevereiro deste ano, a temperatura na Nova Holanda chegou a 61º, enquanto o resto da cidade apontava 44º. Um relatório publicado pela ONG Redes da Maré em 2023 sobre ilhas de calor e qualidade do ar no complexo revelou que, entre as causas, está a ausência de áreas verdes suficientes, o fato de casas serem construídas majoritariamente por tijolo cru e a proximidade com as linhas Vermelha e Amarela do metrô, e pela Avenida Brasil.
Por isso, as miniCOPs têm incentivado o protagonismo infantojuvenil em vários cantos do Brasil para pensar a crise climática e propor soluções por meio do debate e da educação ambiental.
Assim, enquanto as comissões oficiais da COP30 calculam quais países têm mais ou menos chances de ceder em termos de soluções para um futuro possível, as Crias do Tijolinho desenham e constroem a realidade da favela, com problemas que, segundo elas, não podem esperar.
“Nós somos citados na COP, mas a gente não está lá. Nós estamos fazendo no Crias do Tijolinho a COP do jeito que nós gostaríamos que ela fosse”, Gaby, 15 anos.
Saneamento básico na Maré
De acordo com o Censo Populacional da Maré, de 2012, 98,3% da população local possui água canalizada dentro do domicílio, 417 casas possuem fontes de água apenas na área externa e 151 não têm água encanada. No entanto, segundo um documento produzido pela Redes da Maré e pela Casa Fluminense para fortalecer as políticas públicas no território, ainda que algumas casas tenham rede de esgoto, essas redes não estão conectadas às estações de tratamento. Ou seja, o esgoto é canalizado para os valões, que seguem sendo despejados na Baía de Guanabara.