Como o marco temporal afeta todas as crianças brasileiras?

O PL do marco temporal ameaça o direito dos povos indígenas ao seu próprio território, colocando em risco o futuro climático do planeta e a existência de todos

Eduarda Ramos Publicado em 05.06.2023 Atualizado em 13.06.2023
Protesto com adultos e crianças indígenas contra o PL 2903/2023 e o marco temporal.
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Resumo

A aprovação do PL do marco temporal pode dificultar a demarcação de terras indígenas, sujeitar esses territórios à exploração econômica e colocar em risco o futuro climático do planeta.

Mais do que ameaçar o direito dos povos originários ao seu próprio território ao não reconhecer o direito à demarcação de terras tradicionalmente ocupadas antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, o marco temporal coloca em risco o futuro climático do planeta e, consequentemente, a existência de todos nós. Sem um meio ambiente preservado, todas as crianças brasileiras herdarão os impactos da falta de condições ecologicamente equilibradas para viver. As crianças indígenas, mais afetadas pela decisão, além de perderem a casa, poderão perder também o direito a suas identidades, histórias, ancestralidades e culturas.

A perspectiva de tempo atrelada à definição das terras indígenas a serem demarcadas proposta pelo Projeto de Lei 490/07 contraria a “teoria do indigenato”, que reconhece as terras indígenas como direito originário desse povo. Aprovado pela Câmara dos Deputados por 283 votos a favor e 155 contra, o PL do “marco temporal” agora vai para votação no Senado sob o número 2903/2023.

O impacto do marco temporal para as crianças indígenas

Restringir a demarcação de terras indígenas é permitir que crianças e adolescentes indígenas percam o direito ao seu território. Estamos falando de cerca de um terço da população de 820 mil indígenas do país, de acordo com o Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância. “A centralidade do território é condição essencial para que os direitos fundamentais dessa população sejam garantidos”, diz Ana Claudia Cifali, coordenadora da Matricial Jurídica no Instituto Alana.

Para Paula Mendonça, assessora pedagógica do programa Criança e Natureza, também do Instituto Alana, o caráter de sobrevivência e os laços de ancestralidade com seus territórios justificam as demandas por demarcação.

Segundo as especialistas, o marco temporal fere o artigo 227 da Constituição Federal (CF), que estabelece, com absoluta prioridade, o dever da sociedade, da família e do Estado em assegurar a crianças e adolescentes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Também pode fragilizar políticas voltadas aos povos originários ao não considerar o artigo 231 que, além de tratar sobre sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, reconhece “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

O que a proteção do território garante para as crianças indígenas?

Crianças e adolescentes indígenas dependem do território para ter condições básicas de vida, o que inclui:

  • direito à moradia
  • convívio comunitário e familiar
  • acesso à água e à alimentação
  • saúde 
  • educação
  • proteção dos saberes e da cultura
  • o brincar

Para exemplificar como a saúde depende diretamente da integridade do território, Mendonça lembra como o uso de mercúrio no garimpo ilegal contamina os rios e os alimentos consumidos por essa população. Em quatro anos, 570 crianças com menos de cinco anos morreram em comunidades yanomami de Roraima por causas ligadas à ação de garimpeiros.

A histórica disputa por territórios

Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o marco temporal é um mecanismo perverso e inconstitucional que ignora séculos de perseguição e extermínio de povos indígenas – em processos que muitas vezes levaram estes povos a serem expulsos de seus territórios. “Durante os mais de 20 anos do regime militar, houve muitos casos de violência e remoções de grupos indígenas que foram forçados a liberar as terras para outros usos”, comenta Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA).

O povo indígena panará, por exemplo, foi afetado por políticas deficitárias de demarcação durante o regime militar. A construção da BR-163, que liga Tenente Portela (RS) a Santarém (PA), atravessou os territórios desta população, e o contato direto com trabalhadores civis transmitiu doenças das quais não estavam protegidos e para as quais não tinham remédios. Dois terços dos panarás foram mortos; os sobreviventes foram deslocados para o Parque Indígena do Xingu em 1975, e, apenas em 1994, reconquistaram seus territórios tradicionais.

“O marco temporal torna parte das comunidades indígenas como se fosse sem terra, populações párias que não têm um lugar reconhecido como seu pelo nosso direito constitucional” – Márcio Santilli

O impacto do marco temporal para as crianças não indígenas

A tese proposta pelo PL 2903/2023 de restringir a demarcação de terras indígenas compromete não apenas o direito à vida de crianças e adolescentes dos povos originários, mas ameaça o equilíbrio climático do Brasil e de todo o planeta. As terras indígenas são responsáveis pela preservação de importantes áreas dos biomas brasileiros, enquanto “os recursos naturais presentes nestes territórios fornecem todos os materiais necessários para a manutenção da vida humana e não humana”, diz Mendonça. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), povos indígenas protegem 80% da biodiversidade global em seus territórios, apesar de representarem apenas 5% da população mundial.

Além disso, o marco temporal pode levantar questionamentos contra a legitimidade de terras já demarcadas ao permitir que recursos naturais de territórios tradicionais sejam abertos a interesses econômicos. Para Renato Godoy, gerente de relações governamentais no Instituto Alana, a aprovação do PL na Câmara é uma violenta derrota pelo risco de “retirar o direito dos povos indígenas à sua própria existência”. A depender do resultado, a demarcação de terras indígenas poderá ser transferida do Poder Executivo para o Poder Legislativo, facilitando o garimpo e a mineração nestas terras. Tais atividades de exploração das terras em vez de preservá-las têm impactos diretos e indiretos para 40 milhões de crianças e adolescentes que, segundo o relatório “Crianças, adolescentes e mudanças climáticas no Brasil”, já estão expostos a mudanças na temperatura, na qualidade do ar e da água, e nos meios disponíveis para nutrição, por exemplo.

“A privação do direito de se desenvolver em um ambiente saudável traz consequências graves que se acumularão ao longo da vida, impedindo o exercício pleno de uma série de direitos” – Paula Mendonça

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