A convivência com crianças inspira mudanças positivas nos adultos, que devem cuidá-las independente do vínculo afetivo
Na contramão do medo de trazer mais crianças ao mundo, entenda como a presença delas transformam a vida dos adultos, independente de parentalidade. Especialistas afirmam que essa convivência intergeracional é essencial para o bem viver.
Imagine uma cidade pouco colorida, sem brinquedos nas praças nem rabiscos de amarelinhas nas calçadas. Ou então as escolas mais vazias e esquinas onde as risadas de bebês são raras. Talvez, para quem não convive com crianças, esse impacto pode ser difícil de compreender logo de primeira. Mas, em uma sociedade com menos nascimentos a cada década, os reflexos chegam para todos.
Nas culturas indígenas e quilombolas, a presença de crianças nos espaços de convivência está bastante conectada à existência e identidade. São elas que, escutando as histórias dos avós e de outros mais velhos, aprenderão sobre seus mitos e tradições dando continuidade aos grupos. Por isso, as comunidades originárias têm um olhar para as infâncias que é diferente das pessoas brancas. Para os Avá-Guarani, por exemplo, os adultos têm uma missão com as crianças: transmitir a sabedoria das gerações passadas. Nessa experiência, exposta na série Culturas Indígenas, a convivência intergeracional tem um lugar de extrema importância para a vida das pessoas e pode servir de exemplo para toda a sociedade.
Afinal, imaginar um futuro em que a convivência com crianças pode ser reduzida deve configurar um alerta, conforme expõe Rafize Santos, filósofa e consultora organizacional. Para ela, “perdemos a esperança em um mundo em que não vemos a vida pelos olhos das crianças”. Portanto, afirma que os adultos deveriam se perguntar mais: “quantas crianças tenho no meu entorno?” e, a depender da resposta, ser intencional a busca por convivência com mais crianças. Ainda, ela nos provoca a pensar sobre o papel das crianças enquanto pessoas que também têm algo a nos ensinar.
“Os adultos precisam se permitir brincar mais e se colocar como aprendizes das crianças.”
Há um tabu de que os jovens sabem menos do que os mais velhos e nada têm a contribuir. Porém, a psicóloga Camille Saraiva explica que é reducionista pensar que as novas gerações nada sabem. Por isso, ela propõe que os adultos revejam essa ideia. “São apenas formas diferentes de viver, adequadas ao contexto em que nasceram. Ter essa consciência amplia horizontes”, diz.
“Crianças podem nos ensinar a fazer coisas de um jeito diferente, e também melhor, por que não?”. Camille se expressa não apenas do lugar de psicóloga, mas também de alguém que convive com crianças em outros espaços, como em um voluntariado que fez recentemente.
“Se conseguíssemos aprender com elas habilidades que são próprias de sua faixa etária, certamente, enfrentaríamos as dificuldades da vida adulta de outro modo”, afirma. Dentre essas habilidades, Camille destaca “viver no presente”. Ou seja, em um mundo de adultos ansiosos, que estão sempre olhando para o amanhã, as crianças nos lembram de olhar para o hoje!
Além disso, a capacidade de adaptabilidade e a disposição para descobrir o diferente são também próprias da infância. Nesse sentido, a psicóloga explica que essas características representam importantes aprendizados que a convivência com crianças pode promover. “Às vezes ficamos muito restritos a nossas bolhas sociais e isso nos priva de entrar em contato com o diferente. As crianças, por outro lado, são mais abertas.
“Conviver com crianças entendendo que elas também podem nos ensinar algo é valioso.”
Outro aprendizado diz respeito à manifestação de sentimentos. Segundo Camille, a forma como as crianças se expressam é também uma grande lição para os adultos. “Como as crianças ainda estão desenvolvendo a sua habilidade verbal, é comum que deixem transparecer seus sentimentos sem muito filtro e isso provoca desconforto em muitos adultos”, aponta. “Mas, às vezes, só o que precisamos é aceitar o sentimento e sentir, sem querer processar ou verbalizar aquilo ao mesmo tempo”. A psicóloga comenta, ainda, que se nos permitíssemos sentir mais — tal qual as crianças — teríamos a chance de melhor desenvolver a nossa inteligência emocional.
Na literatura, inúmeras obras convidam o leitor a ver o mundo pelo olhar das crianças, incentivando os adultos a serem mais sensíveis, como nos clássicos “O Pequeno Príncipe”, escrito por Saint-Exupéry, e “As aventuras de Pinóquio”, de Carlo Collodi. Este segundo é daquelas histórias que também falam do poder transformador da presença de uma criança em nosso meio. Com as suas diversas adaptações para o cinema, espectadores de várias gerações foram levados a pensar em como a vida triste e solitária do velho carpinteiro Gepeto ganhou outro sentido com o menino Pinóquio, antes um boneco de madeira. Desse encontro, além das aventuras, foram as lições de afeto que despertaram sentimentos universais sobre a relação da vida adulta com a infância.
No Tocantins, a experiência do projeto Ecoponto na Escola mostra como é possível criar oportunidades para gerações diferentes interagirem. Tudo envolvendo o núcleo familiar e também pessoas de fora desse contexto. A professora Nubia Brito, uma das idealizadoras do projeto, conta que a ideia central consiste em convidar crianças do Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) João e Maria, em Palmas, a fazerem uma coleta e higienização de resíduos com o apoio de seus familiares. A partir desse primeiro momento, elas participam de encontros com os idosos da Universidade da Maturidade, projeto de extensão da Universidade Federal do Tocantins, onde juntos começam a criar brinquedos com os materiais coletados.
Nubia percebe isso na prática e afirma que o jeito curioso e criativo das crianças orienta uma mudança de atitudes dos adultos. “No contexto do projeto, vemos que as pessoas idosas, que já convivem com o cenário de crise ambiental e climática há tempos, podem estar pessimistas. No entanto, a visão positiva das crianças diante do reaproveitamento de resíduos ensina que, mesmo em situações de escassez ou dificuldade, é possível encontrar novos caminhos e significados”.
Nessa troca, os dois lados se beneficiam. “Para as crianças, a interação representa uma oportunidade de aprender com as experiências de vida dos mais velhos, que as inspiram a respeitarem as tradições e o outro”, diz Nubia. “Já do lado das pessoas idosas, a convivência com as crianças traz oportunidades de envelhecimento ativo e aprendizagem ao longo da vida, incluindo a descoberta de novas formas de enxergar o mundo e enfrentar desafios.”
De acordo com as Projeções da População do IBGE, as taxas de natalidade estão caindo no Brasil. A previsão para 2030, por exemplo, é que as mulheres tenham menos de dois filhos (1,47). A título de comparação, a taxa de fecundidade era de 2,32 filhos por mulher no ano 2000.
A filósofa Rafize Santos diz que não pretende ter filhos e deixa evidente que a pergunta-chave diante da queda da natalidade não está em impor que as mulheres tenham mais filhos. Porém, a questão passa pela reflexão de “como podemos cuidar melhor das infâncias e promover a convivência intergeracional em uma sociedade cada vez mais cheia de adultos e idosos?”
Santos lembra que muitas mulheres realmente não sentem desejo em maternar. Ao mesmo tempo, outras podem optar por esse caminho. Nessa balança, há ainda outra reflexão sobre a resposta de como a sociedade não entende a maternidade como um esforço de vida. Por isso, muitas vezes sobrecarrega a mulher. “Se eu sobrecarrego aquelas pessoas que desejam ser mães, então eu sou uma pessoa que não está cuidando das infâncias”, aponta.
Portanto, cuidar das infâncias deve ser visto como uma responsabilidade coletiva. Além disso, não pode se restringir àqueles que possuem vínculos com a criança, conforme defende Santos. Isso porque elas fazem parte da sociedade e devem estar integradas.
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Nesse cenário, garantir que meninos e meninas se desenvolvam plenamente é um pilar importante. Principalmente para uma sociedade que preza pelos direitos humanos, pelo bem viver coletivo, e que deve superar discussões sobre a vontade individual de querer ou não ter filhos. É o que nos lembra Rafize Santos, adicionando mais um elemento a essa equação.
“Não podemos admitir que a defesa das infâncias esteja à mercê de uma dúvida, que por vezes aparece, mas que deveria ser inquestionável, que é se alguém gosta ou não de crianças”, diz. Nesse sentido, Rafize reforça que meninos e meninas “são sujeitos de direitos como quaisquer outros e defender as infâncias é papel de todos nós.”
Assim, a filósofa destaca três atitudes que nós adultos devemos ter, independente de vínculo afetivo com os pequenos: