Como as escolas podem acabar com as violências contra alunos bolsistas

Enquanto não houver um trabalho eficaz de inclusão e saúde mental nas escolas particulares, bolsistas vão continuar expostos à discriminação e outras violências

Célia Fernanda Lima Publicado em 18.10.2024
Imagem de capa para matéria sobre alunos bolsistas mostra um menino negro de poculos, sentado em uma sala de aula ao lado de crianças brancas
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Resumo

Casos de bullying, racismo e discriminação social contra alunos bolsistas em escolas particulares são frequentes e afetam a saúde mental dos estudantes. Para acabar com a situação, é preciso trabalhar a inclusão e o respeito com toda a comunidade escolar.

“Os professores sequer me davam atenção e muitos colegas não falavam comigo”, se lembra a advogada Bruna Secreto, da época em que estudava em uma escola particular, em Ananindeua, no Pará. Ela fazia parte de um grupo de alunos bolsistas e cursou todo o ensino médio na mesma turma que alunos pagantes. “Até os funcionários me tratavam como se eu fosse de ‘segunda categoria’”, diz.

Foi também durante a adolescência, que o advogado Pedro Rocha começou a se incomodar com o tratamento da escola em que estudava como bolsista, no Rio de Janeiro. “Eu não entendia aquilo como discriminação, porém, ao me conscientizar, entendi do que se tratava”.

Os dois sentiram a falta de acolhimento no ambiente escolar. Eles contam que, por serem estudantes de baixa renda e não circularem nos mesmos ambientes externos que os alunos pagantes, não recebiam a mesma atenção. “Não havia um canal para falar sobre isso, porque ninguém se importava”, recorda Bruna. Já Pedro diz que, nos anos 2000, ainda não tinha acesso aos canais de denúncia sobre bullying e racismo, violência que afirma sofrer até hoje. “Já fui ministrar aulas de pós-graduação em uma universidade e não me deixaram entrar, porque o porteiro achou que eu era motorista de aplicativo”, conta.

Entre os impactos das discriminações que estudantes bolsistas sofrem em instituições particulares, o da saúde mental é um dos mais persistentes. “Falta um trabalho de habilidades emocionais e sociais envolvendo toda comunidade escolar”, afirma o psicólogo Filipe Colombini, mestre em psicologia da educação. Essa falta de trato no processo de inclusão e respeito aos alunos bolsistas pode gerar consequências graves, como no caso do adolescente Pedro Henrique, 14, que tirou a própria vida em agosto. Ele tinha bolsa integral no Colégio Bandeirantes, em São Paulo, considerado um dos mais caros da capital, e sofria bullying, além de homofobia e racismo constantemente pelos colegas de classe.

Inclusão deve ir além de ‘ter uma vaga privilegiada’

Segundo Colombini, muitas escolas privadas dão mais importância a manter índices de aprovação nos vestibulares do que “trabalhar aspectos socioemocionais e formação da cidadania”. Desse modo, as vagas para estudantes que não têm condições de custear as mensalidades não deveriam se limitar a “ceder uma cadeira” na sala de aula de alto padrão. “A inclusão social no ambiente escolar é tarefa de todos, desde a equipe da coordenação e professores, até monitores e pessoal da cantina”, defende o psicólogo. “Isso é de total responsabilidade da instituição, jamais do aluno”.

No entanto, Bruna recorda que a escola em que estudou fazia propagandas com os bolsistas. “Era como uma empresa fantasiada de instituição de ensino”, diz. Da mesma forma, o presidente do Sindicato dos Professores de São Paulo, Celso Napolitano, defende que alunos bolsistas “não podem ser usados como produtos de marketing pelas escolas”. Em artigo publicado na Folha de São Paulo, ele citou o caso de Pedro Henrique e argumentou que “todos precisam ser acolhidos por redes pedagógicas e de solidariedade, inclusive com atenção à saúde mental”.

A dinâmica da oferta de bolsas revela outras questões que vão além da publicidade. “A maior problemática é que muitas escolas recebem os incentivos fiscais da CEBAS Educação [Certificação das Entidades Beneficentes de Assistência Social na área da Educação]. Porém, não cumprem as contrapartidas da lei que prevê a isenção de impostos às instituições que ofertam bolsas escolares a alunos de baixa renda”, afirma Gabriel Domingues, presidente da Ponteduca, organização da sociedade civil pela redução das desigualdades socioeconômicas na educação e democratização do ensino particular.

Ele explica que a lei institui que essas escolas tenham, no mínimo, 10% de seus estudantes como bolsistas integrais e diz que a oferta insuficiente de bolsas gera um ambiente segregacionista nas escolas particulares. “Com claras diferenças sociais, os bolsistas podem ficar à margem e carregar muitos estigmas. Mas isso acontece também quando a própria instituição possui um programa pedagógico que perpetua e estruturaliza os preconceitos”, argumenta.

Escolas precisam incluir e não segregar

Ao longo da vida escolar, a sensação de acolhimento dos alunos diminui, conforme mostra a pesquisa do Observatório Fundação Itaú, em parceria com o Equidade.Info. A partir da escuta de alunos, professores e gestores de escolas públicas e privadas de todas as regiões do país, o resultado apontou que o índice de acolhimento nos anos iniciais e no ensino fundamental é de 86%, enquanto que no ensino médio cai para 71%. Outro ponto em destaque é a percepção do racismo, em que 21% dos professores autodeclarados brancos disseram não saber lidar com o tema.

Diante deste cenário, as desigualdades enfrentadas por alunos bolsistas se ampliam. Isso porque eles não se sentem parte daquele contexto, ainda mais em um local em que sofrem diversas violências. Assim, Filipe Colombini enfatiza que é papel das escolas “promover um ambiente saudável e acolhedor para todos os estudantes”. Segundo o psicólogo, se há segregação e preconceito em sala de aula, as violências extremas vão surgir. Por isso, as instituições não devem ser coniventes e, sim, assumirem responsabilidades sobre as ocorrências. “É importante discutir amplamente o real objetivo de essas escolas aceitarem alunos bolsistas, se, de fato, não existe uma política interna para apoiar este público”, questiona.

Além disso, as famílias de todos os alunos, bolsistas ou não, precisam se envolver nas discussões. Isso pode acontecer com “reuniões, treinamentos, oficinas de integração e sessões de orientação, para que ocorra, de fato, a inclusão naquele ambiente”, diz. Outra iniciativa é a possibilidade de interação entre os alunos em atividades fora do colégio, com a mediação de profissionais especializados. “O trabalho de inclusão social requer grupos de reflexão e atividades práticas, sempre mediadas pelo psicólogo escolar, em conjunto com a coordenação pedagógica”

Já Gabriel Domingues lista seis pontos fundamentais de atenção para as escolas no combate da discriminação contra alunos bolsistas:

    • Não segregar de forma alguma, com uniformes diferentes, restrições de espaços, horários ou turmas específicas.
    • Evitar a estigmatização por parte dos professores, que devem tratar o aluno como qualquer outro dentro da sala de aula e demais espaços.
    • Garantir as políticas de permanência e acesso às atividades extracurriculares.
    • Capacitar todo o corpo docente com letramento racial e políticas de acolhimento.
    • Cumprir a lei de ensino de história e cultura africana e indigena.
    • Ter diversidade entre os professores e funcionários.

“O aluno bolsista tem o direito de viver a experiência escolar como um todo e não ser tratado apenas como uma máquina que recebeu uma caridade”, diz Domingues. Ele conclui que as soluções envolvem “um compromisso conscientizador das escolas de tornarem os ambientes mais acolhedores e saberem trabalhar com a família a quebra dos preconceitos, que muitas vezes vem de casa”.

“As escolas precisam ter coragem de não assumir mais alunos e famílias racistas, homofóbicas e preconceituosas.”

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