OperaçÔes policiais deixam rastros de trauma, luto e sentimento de medo e desamparo entre famĂlias e crianças
Entre mortes, o sentimento de luto e o medo da violĂȘncia, como ficam as crianças apĂłs as chacinas? Lidar com o trauma Ă© uma missĂŁo contĂnua e que precisa de um esforço coletivo.
Em 2020, as primas Emily e Rebecca morreram baleadas enquanto brincavam na porta de casa em Duque de Caxias, na baixada fluminense. No mesmo ano, JoĂŁo Pedro, 14, foi morto a tiros brincando dentro de casa. Em maio de 2021, a favela do Jacarezinho foi palco da operação policial mais letal da histĂłria do Rio de Janeiro, com 28 pessoas mortas, inclusive na presença de crianças. Um mĂȘs depois, Kathlen Romeu, grĂĄvida de quatro meses, foi assassinada em uma operação policial no Complexo do Lins, Zona Norte do Rio.
HĂĄ duas semanas, uma operação policial, envolvendo 400 agentes, quatro aeronaves e dez veĂculos blindados, matou 17 pessoas no Complexo do AlemĂŁo. O mesmo lugar onde a menina Ăgatha, de apenas 4 anos, foi morta com um tiro de fuzil nas costas em 2019. As histĂłrias de crianças vĂtimas da violĂȘncia do Estado (que deveria protegĂȘ-las) sĂŁo incontĂĄveis e entram para as estatĂsticas e anuĂĄrios. E como ficam essas crianças quando sobrevivem Ă s guerras nĂŁo declaradas do dia a dia?
Quem cuida dos pequenos que vivem em estado de violĂȘncia constante?
âEu me sinto no meio de uma guerra. Foi muito tiro perto da minha casa, perto da casa dos meus colegasâ, conta LetĂcia, 12, moradora do Complexo do AlemĂŁo. Quando as operaçÔes sĂŁo muito intensas, como a Ășltima, LetĂcia explica que a famĂlia âfica em um Ășnico cĂŽmodo da casa, que Ă© o mais seguro, deitada no chĂŁo, e nĂŁo pode sair pra comprar pĂŁo, ir ao mercado, nĂŁo pode ir pra lugar nenhumâ.Â
A escola municipal onde ela estuda, localizada prĂłxima ao Complexo do AlemĂŁo, recebe alunos de vĂĄrias regiĂ”es do Rio e fica aberta mesmo em perĂodos de violĂȘncia, por ser considerada um lugar de acolhimento. âA escola Ă© um grande ponto de apoio para as crianças, tĂȘm crianças que vĂŁo para a escola mesmo no feriado para comer ou fazer outras atividadesâ, conta a menina.
âEu me sinto no meio de uma guerraâ – LetĂcia, 12 anos
Sua avĂł RosĂąngela mora em um local ainda mais perigoso do Complexo do AlemĂŁo. Em sua casa, existe o chamado âtapetinho do tiroâ, para que a famĂlia se deite no chĂŁo quando começam os tiroteios. âMinha mĂŁe estava deitada atrĂĄs do sofĂĄ, no chĂŁo da sala, com meu sobrinho de 12 anos. Ele tremia muito e era complicado atĂ© de abrir a geladeira pra dar um suco de maracujĂĄ pro meninoâ, conta Camila Moradia, mĂŁe de LetĂcia, e de mais outras duas crianças. Thales, de 6 anos, revela que ficou triste nos dias do tiroteio. Giovanna, 9, diz que sentiu medo e conta que âna casa da vovĂł a gente pega o âtapetinho no tiroâ pra deitarâ e nĂŁo serem atingidos pelas balas.Â
Camila integra um coletivo que acolhe mulheres vĂtimas de violĂȘncia, a maioria delas com filhos, em que cerca de 200 crianças fazem parte desse contexto. Durante as operaçÔes, ela relata que uma dor de barriga coletiva acometeu diversos integrantes do grupo devido ao estresse e Ă tensĂŁo, enquanto encaminhavam crianças para psicĂłlogos e tentavam aliviar um pouco a situação em meio ao caos. Contudo, fora do coletivo, ainda existe uma ideia de que as crianças nĂŁo estĂŁo percebendo ou sentindo os impactos da violĂȘncia, e, segundo Camila, os adultos acabam falhando no acolhimento voltado aos pequenos.
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NĂŁo existe um manual que ensine exatamente como falar com as crianças sobre situaçÔes de violĂȘncia ou que vivem em cenĂĄrios hostis, mas ignorar a realidade Ă© ainda mais danoso. âUma conversa franca, permeada de esperança futura e transmitida com segurança pode fazer a diferença na compreensĂŁo do tema, com linguagem adequada e de acordo com as prĂłprias demandas delasâ, explica Bruna Richter, psicĂłloga e atriz. A especialista reforça a importĂąncia das crianças estarem na companhia de pessoas de sua confiança para possibilitar âmaior compreensĂŁo de sua histĂłriaâ, mesmo em eventos traumĂĄticos, fazendo com que se sintam seguras e amadas.
Para Richter, o efeito imediato da violĂȘncia Ă© o sofrimento. Ela explica que, apesar de ser impossĂvel mensurar todos os danos causados pelos impactos da violĂȘncia devido Ă subjetividade de cada indivĂduo, a autopercepção distorcida e disfuncional, alĂ©m do forte sentimento de injustiça e invisibilidade sĂŁo algumas das sequelas que a criança exposta Ă agressividade pode manifestar ao longo da vida – ainda mais na vida adulta, caso as feridas nĂŁo sejam tratadas. Manifestação de insegurança, baixa autoestima, tristeza profunda, problemas escolares, dificuldades em relacionamentos futuros e propensĂŁo para o isolamento ou para a prĂłpria violĂȘncia tambĂ©m podem se manifestar.
âO maior desejo do ser humano Ă© o de ser amado. Diante disso, as consequĂȘncias de situaçÔes que levam as crianças a nĂŁo se sentirem assim podem ser devastadorasâ
Em 1996, o Jardim Ăngela (bairro da Zona Sul de SĂŁo Paulo) foi considerado o lugar mais violento do planeta, com uma taxa anual de 116,23 assassinatos para cada 100 mil habitantes. Aos 11 anos de idade, quando morava no bairro, o educador Reinaldo Nascimento viu um assassinato acontecer com seus prĂłprios olhos.Â
A experiĂȘncia na infĂąncia, motivou o Reinaldo-adulto a trabalhar com a pedagogia da emergĂȘncia, que atua para tratar os traumas em crianças residentes em locais hostis ou atingidas pelos impactos da violĂȘncia, com o objetivo de amparar a infĂąncia e criar possibilidades de vida no caos.
âEm um paĂs traumatizado como o Brasil, ter medo de polĂcia Ă© uma pena. Ă catastrĂłfico vocĂȘ crescer sem poder confiar naquela pessoa que em todo seu imaginĂĄrio existe pra te protegerâ, conta Reinaldo.
A pedagogia de emergĂȘncia foi criada em 2006 pelo professor alemĂŁo Bernd Ruf. O educador esteve no LĂbano em meio Ă guerra entre Israel e o Hezbollah para acompanhar o repatriamento de 21 jovens libaneses, que nĂŁo puderam voltar para casa atĂ© que a situação se tornasse menos crĂtica. Utilizando recursos da pedagogia Waldorf, a pedagogia de emergĂȘncia atua nas fases iniciais do trauma, fazendo o possĂvel para que a situação traumĂĄtica nĂŁo se torne uma sequela grave. Entre as atividades desenvolvidas, estĂŁo a produção de desenhos, aquarelas, ouvir histĂłrias, brincadeiras, entre outras.
O principal objetivo na pedagogia de emergĂȘncia, tanto no Brasil quanto em outros lugares do mundo, Ă© agir logo apĂłs o episĂłdio traumĂĄtico, tentando evitar que as feridas do trauma deem inĂcio a um ciclo de violĂȘncias, para que as crianças nĂŁo lidem com tamanhas sequelas conforme forem crescendo. Se o trauma nĂŁo for tratado no inĂcio, doenças como depressĂŁo, ansiedade, episĂłdios de agressividade, violĂȘncia e vĂcios podem acometer a criança ao longo da vida.
Mas para entender o trauma, esse acolhimento precisa ser oferecido. âComo as crianças vĂŁo saber que estĂŁo passando por um trauma sem que isso seja dito a elas, com o devido acolhimento e cuidado?â, indaga Reinaldo. Saber nomear os acontecimentos e sentimentos, sem escondĂȘ-los, em um paĂs que vive uma guerra nĂŁo declarada, Ă© uma das maiores missĂ”es para cuidar de crianças que sofrem com os impactos da violĂȘncia.Â
âApesar dos brasileiros criarem âestratĂ©giasâ para lidar com isso, como carros blindados ou esconderem as crianças em condomĂnios com muros cada vez mais altos, Ă© mais fĂĄcil olhar para a violĂȘncia de fora do paĂs em vez de olhar para aquela que acontece do lado de casaâ
* Com informaçÔes de UOL.
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O AnuĂĄrio Brasileiro de Segurança PĂșblica 2022 aponta que de todos os homicĂdios contabilizados no mundo em 2020, em nĂșmeros absolutos, 20,5% deles aconteceram no Brasil. Especificamente no Estado do Rio de Janeiro, segundo dados do MinistĂ©rio PĂșblico, as polĂcias realizaram 1.376 operaçÔes entre junho de 2020 e junho de 2021 (em mĂ©dia, duas operaçÔes por dia). Nos Ășltimos cinco anos, foram 103 crianças baleadas e 30 mortas de forma violenta no estado – uma barbĂĄrie normalizada, visto que as mortes do paĂs ao longo dos anos foram maiores do que as de paĂses em guerra, como a SĂria.Â