Arquivo pessoal

Para que a filha Lis tenha mais autonomia, Natane incentiva que ela faça atividades sozinha, como andar de bike.

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Natane e Lis pedalam pela orla de Ubatuba (SP) para mais um dia de surf. Desde que aprendeu a andar de bike, Lis acompanha a mãe ao mercado e à praia, por exemplo.

Pedro Nische / Arquivo pessoal

As irmãs Bia e Liz pedalando com o grupo de ciclistas mirins a caminho da escola. Elas aprenderam, por exemplo, noções de trânsito, senso de direção e o sentimento de pertencer ao bairro.

Pedro Nische / Arquivo pessoal

Grupo é formado de modo a garantir a segurança: adultos na frente e atrás, equipamentos de proteção e número de participantes limitado. "Quando alguém escorrega ou quando solta a corrente, por exemplo, os outros imediatamente param, tentam ajudar".

Ciclocidade

O projeto "Ciclocidade" promoveu um dia de exercícios para os estudantes de escolas públicas de São Paulo. Além disso, levou uma oficina para consertar as bicicletas das crianças.

Espaço Alana

Uma média de 250 bicicletas são reparadas a cada edição do evento "Bike Alana", no Jardim Pantanal, em São Paulo. Lá, cerca de 9% dos moradores usa a bicicleta diariamente para se locomover.

Coletivo Pedale-se

Passeio ciclístico das crianças pelo bairro Jardim Pantanal durante o “Pedalada cicloturística”. De acordo com Laís Avelino, com a bicicleta, “a criança passa a se ver como parte da cidade

Márcia Duarte/Instituto Alana

As crianças circularam então pelas áreas verdes do Núcleo de Lazer Jardim Helena, na zona leste de São Paulo. "Pedalar pode expandir seus olhares", diz Laís Avelino.

lang="pt-BR">Bicicleta para crianças conhecerem o mundo sem rodinhas
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Bicicleta permite que crianças conheçam o mundo sem rodinhas

Foto de um menino de pele clara vestindo camiseta cinza e mochila de alças azuis nas costas. Ele está em pé ao lado da bicicleta e usa capacete, ambos azuis.

A mão da mãe a segurando pelos ombros é a última lembrança de apoio antes de conquistar o equilíbrio em cima da bicicleta. “Minha mãe me segurava e eu pedalava. Eu parava e olhava pra trás. Parava e olhava pra trás”, conta Lis, 7. Por fim, “eu não lembro como, consegui.”

Por algum tempo, esse foi o dia mais feliz na vida dela. Mas agora Lis já coleciona outras boas memórias que lhe tiraram essa certeza, como o dia que percorreu sete quilômetros de bike (seu recorde até o momento) e as tantas vezes em que ela e a mãe tiveram que pedalar na chuva. “Eu tenho vários dias mais felizes da vida’’, explica.

Lis aprendeu a pedalar ano passado. Foi em uma pracinha de Ubatuba, no litoral de São Paulo, pouco tempo depois que ela e a mãe, a coordenadora de operações Natane Siqueira, se mudaram da capital e chegaram à cidade. As ruas planas e equipadas com ciclofaixas permitiram que Natane trocasse o carro por uma bicicleta com garupa.

“Ela ia na minha garupa para todos os lugares: escola, mercado, praia… Quando aprendeu a andar de bicicleta, passou a fazer esses mesmos percursos pedalando do meu lado”, lembra. “Sou mãe solo, somos eu e ela dentro de casa. Então, tento incentivar que ela faça as coisas sozinha. Por exemplo, trocar de roupa, arrumar o quarto e a andar de bike.”

“No começo dá medo, mas as coisas vão se adaptando e você vai sentindo mais confiança. Ela também”, conta Natane sobre as primeiras ladeiras e travessias de ruas, ela e a filha disputando espaço com carros e motos. “Depois, a gente começa a sentir que está integrada à cidade, que está vivendo a cidade. Eu sinto muito isto: a vida acontecendo e a gente no meio dela.”

Uma bicicleta por vez: da garupa a caravanas organizadas

Quando Lis começou a ir pedalando com a mãe para a escola, guardava a bicicleta num bicicletário vazio. Mas, aos poucos, o movimento foi crescendo, uma bicicleta por vez. “Antes só ficava a minha bike no bicicletário. Agora tem um monte!”, conta Lis.

A cena logo chamou a atenção dos colegas. Por outro lado, fez os pais repensarem a ideia de que era cedo demais para conquistarem a cidade pedalando. “As mães diziam que a gente estava as incentivando enquanto as crianças começaram a pedir para ir de bike também”, lembra Natane. Até que, um dia, pais e filhos se juntaram para voltar da escola. “Eram cinco ou seis adultos e o dobro de crianças. Como numa caravana.”

Um movimento parecido aconteceu em São Paulo, em 2022. O arquiteto Pedro Nische, pai da Bia, 9, e da Liz, 12, e outros pais de crianças do bairro Santa Cecília organizaram-se para levá-las para escola sem usar carro. “Acho que o primeiro impulso foi a diversão”, diz. “A gente pegou o gancho do lúdico, de as crianças terem mais motivação para ir à escola se fosse divertido, sabe?”

No começo, valia qualquer veículo sem motor: patinetes, patins, skates… Faziam o mesmo trajeto todos os dias: na ida, às 13h, e na volta para casa, às 17h. “Uma coisa que impressionava a gente era a empatia do pessoal do bairro ao ver aquele bonde, aquela sequência de crianças pedalando todo dia, de horário marcado. O pessoal aplaudia, ficava olhando, gritava.”

“Acho que viam que crianças pedalando juntas numa ciclofaixa é uma coisa transformadora.”

Na escola, o grupo se tornou exemplo pelos resultados em sala de aula. “Os professores falavam pra gente que a ‘turma da bike’ chegava muito mais disposta e motivada para assistir aula do que o aluno que ia de carro. É algo científico, né? E a gente repara na prática.”

Uma pesquisa realizada na Dinamarca em 2012 buscou entender a influência da alimentação e dos exercícios físicos na concentração das crianças em sala de aula. O resultado revelou que as crianças que vão para a escola caminhando ou pedalando conseguem focar com mais facilidade nas tarefas e isso tem um impacto maior no desempenho escolar do que a dieta.

Hoje, depois de quase três anos, o grupo é formado por, no máximo, dez crianças. Elas pedalam acompanhadas por dois adultos, um em cada extremidade da fila. O número de participantes precisa ser controlado para criar um “bloco” compacto que consiga fazer as travessias de ruas e avenidas de forma rápida e segura.

Nesse tempo, Bia e Liz não só melhoraram suas habilidades com a bike como também aprenderam noções de trânsito, desenvolveram um senso de direção e o sentimento de pertencer ao bairro onde nasceram e cresceram. “São vários aprendizados no sentido de compartilhar o espaço da rua’’, comenta.

Além do costume ter aproximado mais ainda pai e filhas, “aconteceu entre as crianças um estreitamento de laços”, diz Pedro. “Juntos a gente tem mais força diante da hostilidade da cidade. E tem a solidariedade também: quando alguém escorrega, quando solta a corrente, os outros imediatamente param, tentam ajudar. Nesse sentido, o sentimento de pertencer a um coletivo é educador.”

Casa e rua integradas: o bairro como um lar e mais qualidade de vida

Pedro Nische cresceu em uma casa aberta para todos os lados, com uma rampa que ligava a garagem diretamente ao asfalto da rua. Assim, não havia, para a sua mente de criança, uma fronteira bem definida do que era “dentro” e “fora” de casa.

“Essa casa me impulsionou a ter um contato mais franco com a rua”, afirma. “Então, o que a gente tem tentado fazer com as crianças é isso: entender que a casa não é só da porta pra dentro. Talvez, seja até mais da porta pra fora.’’

O arquiteto lamenta a forma como a cidade é pensada quase exclusivamente para a circulação cada vez mais rápida de pessoas e mercadorias. Nesse sentido, para ele, a disputa entre automóveis e ciclistas nasce do descompasso entre o ritmo das bicicletas e o senso de eficiência imposto por essa realidade.

Por isso, ele sonha com iniciativas que questionem esse modelo, como dias sem carros ou mais faixas de trânsito compartilhadas entre carros e bicicletas. “As cidades, no fim das contas, são pra gente só ganhar dinheiro ou para viver uma vida saudável? Isto é, uma vida feliz, agradável, sustentável e que também promova o encontro das pessoas. Nos carros ninguém se encontra, tá todo mundo meio um contra o outro.”

Assim, pedalando junto com as filhas, aos poucos Pedro tenta transmitir uma leitura mais profunda da cidade. “Eu tenho o sentimento de estar plantando uma semente. Como se a gente pudesse, através do crescimento das crianças, criar uma nova geração que olhe para a estrutura urbana e a questione. A Bia e a Liz hoje veem que a rua não precisa ser só pro carro.”

Reparar no entorno com mais calma e conhecer a cidade como a palma da mão

“A gente vê que a experiência da bicicleta para as crianças depende muito da influência dos pais. Se a criança faz parte de uma família que tem o hábito de se deslocar de bike, ela tem a oportunidade de conhecer a cidade de outra forma”, diz Dionízio Bueno. O professor e pesquisador é membro da Ciclocidade (Associação de Ciclistas Urbanos da cidade de São Paulo) e um dos responsáveis pelo projeto “Comunidades escolares que pedalam”.

Para incentivar o uso de bicicletas e fazer com que toda criança possa viver a cidade sobre duas rodas, os alunos eram convidados a levar suas bicicletas para a escola para um dia divertido, com exercícios e desafios. Depois, dentro e fora das salas de aula, promoviam conversas sobre temas como direito à cidade, acesso a serviços públicos, meio ambiente e trânsito.

Em 2020, o trabalho aconteceu em quatro escolas públicas, duas municipais e duas estaduais, da região do Grajaú. Os pesquisadores queriam também divulgar o uso dos bicicletários das estações de trem do entorno, para estimular a intermodalidade e ampliar as distâncias que a comunidade escolar poderia percorrer.

“A atividade faz bem para a saúde física e mental das crianças”, diz Dionízio. Pedalar estimula o corpo a liberar neurotransmissores responsáveis pelo bem-estar: serotonina, endorfina e adrenalina. Como é um exercício ao ar livre que exige atenção completa, a bicicleta exercita o foco e ajuda a melhorar a plasticidade cerebral, o que pode combater quadros de ansiedade e prevenir doenças como a depressão, por exemplo.
De acordo com os pesquisadores Neville Owen e James Sallis, as atividades físicas podem ter efeitos semelhantes à psicoterapia no combate às desordens emocionais. Isso porque também influencia nossa autoestima e senso de realização.
Apesar desses benefícios, 42% dos brasileiros não sabem andar de bicicleta, segundo a pesquisa “Ciclismo ao redor do mundo”, realizada pelo Instituto Ipsos, em 2022.

Além da questão da mobilidade, Dionízio afirma que a relação que as pessoas estabelecem com a cidade deriva da forma como se deslocam. Nesse sentido, no deslocamento em uma bicicleta, o movimento é mais lento e dá a oportunidade para perceber o entorno com mais calma.

“Eu acho isso realmente transformador, tanto para crianças como para adultos”, diz. Dessa forma, é possível “conhecer muito melhor o lugar por onde trafegam e frequentam. Assim, passam a se situar de uma forma mais segura, menos dependente de aplicativos como Waze e Google Maps, de GPSs. É uma questão de profundidade”.

Bicicleta não é como geladeira: as dificuldades de acesso e sua importância em bairros periféricos

Por conta da percepção de que a bicicleta é apenas um brinquedo durante a infância, e não está associada diretamente a um meio de locomoção, o pesquisador Dionízio Bueno notou que, quanto mais avançado o ano escolar do aluno, menor a chance de ele ter uma bicicleta. Ou seja, havia uma tendência: os alunos do 1º ano tinham mais bicicletas do que os do 2º, que tinham mais do que os do 3º, e assim por diante.

“Alguns tinham em casa bicicletas pequenas, de quando eram menores e que não serviam mais”, diz. “A criança vai crescendo e a bicicleta vai se perdendo, sendo abandonada, ou fica defasada, vira ferro-velho. Isso tem a ver com a ideia de que a bike serve como brinquedo, e não como equipamento de mobilidade urbana.”

Assim, durante o projeto Ciclocidade, resolveram montar nas escolas a estrutura de oficinas mecânicas e fazer mutirões para consertar as bicicletas que os alunos conseguiram levar. Forneceram suprimentos e peças, como pastilhas de freios e cabos novos, e recuperaram dezenas de bicicletas que voltaram a servir para os estudantes e suas famílias. “A demanda por esse serviço foi gigantesca. As pessoas fizeram filas. Foi o nosso evento com mais apelo.”

O pesquisador Dionízio comenta que, para crianças de escolas de periferias, que vivem em regiões vulneráveis, surge também a questão do acesso. “A gente percebeu que muitas famílias não tinham bicicletas. A gente pensa que bicicleta é como geladeira, que toda casa vai ter uma, mas não. Muitos sequer tinham como conseguir uma emprestada.”

No distrito Jardim Helena, onde fica o bairro Jardim Pantanal, no extremo leste de São Paulo, por exemplo, a bicicleta foi uma alternativa para superar a ausência do transporte público e de investimentos em infraestrutura, diz a arquiteta e urbanista Laís Avelino. Lá vive a maior concentração de ciclistas da capital. Enquanto cerca de 9% dos moradores usa a bicicleta diariamente para se locomover, a média na cidade é de apenas 2%, de acordo com um levantamento da Secretaria de Subprefeituras de São Paulo, de 2020.

“Para muitas comunidades, bike é mais um meio de lazer, né? Mas, em territórios como o Jardim Pantanal, é o único meio de locomoção”, afirma. O Jardim Pantanal fica numa região que frequentemente passa por enchentes e alagamentos, obrigando a população a transitar a pé ou sobre duas rodas. “Isso é mais um elemento que evidencia a ausência do poder público na infraestrutura de mobilidade.”

Para garantir que as crianças e suas famílias possam se locomover em segurança, o “Bike Alana”, uma das iniciativas do Espaço Alana, sede do Instituto Alana no Jardim Pantanal, do qual Laís faz parte, realiza um mutirão para consertar as bikes da comunidade uma vez ao ano. A iniciativa é uma das ações socioeducativas e de articulação comunitária no território. De acordo com Laís, uma média de 250 bicicletas são reparadas a cada edição do evento.

Uma cidade mais amigável para as crianças é melhor para todo mundo

Além de obras de saneamento básico e a construção do sistema de microdrenagem (guias, sarjetas e galerias de águas fluviais), o Plano de Bairro do Jardim Pantanal também ampliou a malha cicloviária local e desenvolveu rotas de cicloturismo. Segundo levantamento feito pela Aliança Bike (Associação Brasileira do Setor de Bicicletas), houve um crescimento de 7,3% entre 2023 e 2024 na estrutura cicloviária nas capitais.

Durante esse processo, em parceria com o coletivo Pedale-se, o Urbanizar desenvolveu iniciativas para colocar a bicicleta no centro. O “Pedalada cicloturística pelo Jardim Pantanal”, por exemplo, integrou duas rotas de cicloturismo (uma para crianças e outra para adultos), percorrendo o Núcleo de Lazer Jardim Helena, uma área verde do bairro. O Urbanizar, também vinculado ao Instituto Alana, atua para melhorar as condições de vida, promover o bem-estar socioambiental e garantir o direito de crianças e adolescentes à cidade, com incidência política e articulação com a comunidade local.

Em sua segunda fase, o Plano de Bairro do Jardim Pantanal é construído a partir de uma parceria entre os moradores e arquitetos, engenheiros, geógrafos, pedagogos e outros especialistas. Assim, os moradores têm a chance de propor melhorias para a comunidade enquanto análises técnicas sobre o território e seus habitantes resultam em propostas de intervenções estruturais. “É um projeto 100% participativo. Isso porque, geralmente, as cidades são pensadas por pessoas que não vivem nelas, nem usufruem de todas suas áreas. E pensar territórios vulnerabilizados é um desafio para as gestões públicas, de olhar de maneira mais sensível e amigável. Mas não é impossível”, comenta Laís Avelino. Dessa forma, o projeto dá subsídios ao poder público no processo de urbanização da região.

Para Laís, a bicicleta ajuda os moradores a atravessar os problemas estruturais do bairro, independentemente de suas idades. Mas, para as crianças, pedalar pode expandir seus olhares para além da própria casa e as faz perceber a cidade mais de perto.

“Eu vejo que o principal impacto da bike durante a infância é a autonomia. Assim, as crianças têm mais liberdade e menos medo de enfrentar o mundo, de sair, fazer suas coisas, não têm medo da rua.”

“O uso da bike, principalmente para as crianças, é um ato político. É uma forma de ter acesso à cidade.”

Além disso, Laís destaca a possibilidade de “uma formação cidadã”. Isso porque, de acordo com ela, “a criança passa a se ver como parte da cidade, compartilhando o espaço com outros meios de locomoção e com outras pessoas. Por fim, esse movimento as torna mais empáticas e isso é um aprendizado que vai acompanhá-las para sempre”.

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