Apesar do sonho olímpico, crianças que buscam esporte de alto nível também devem ter tempo para brincar e se desenvolver de forma saudável, defende especialista
Diálogo e equilíbrio entre treinar e brincar são essenciais para formar crianças felizes e saudáveis na trajetória do esporte de alto nível. Atletas mirins também precisam de tempo para brincar, se desenvolver de forma saudável e entender que podem falhar.
“Eu quero jogar rugby no grupo das Leoas.” O sonho é de Maria Luiza, que teve seu primeiro contato com o esporte ainda criança, com sete anos, no Instituto Rugby Para Todos, no Rio de Janeiro. Hoje, aos 15, Maria está animada com sua trajetória no esporte: ela quer se tornar uma atleta profissional.
Se Maria alcançar uma alta performance, em 2028, ela poderá fazer parte das Leoas, time de rugby brasileiro que, nas olimpíadas de Paris, conta com três atletas que iniciaram sua trajetória ainda crianças no mesmo Instituto.
O treinador e especialista em Ciência da Performance Humana pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), João Paulo Mayer de Barros, explica que, para identificar potenciais atletas, é preciso uma observação multidisciplinar. Cada aluno é avaliado, considerando os “cinco valores do rugby”, que são respeito, paixão, disciplina, integridade e solidariedade. “Se você não tiver esses valores, você não funciona ali”, diz o educador físico.
Apesar da cobrança ser evidente nos treinos, Maria Luiza conta que, durante as aulas, “todo mundo trabalha em coletividade, eu vejo que todo mundo se ajuda”.
Segundo a psicanalista especializada em neuropsicologia, Andrea Ladislau, o cuidado com a saúde mental é essencial para o desenvolvimento saudável dos atletas mirins. Para ela, a cobrança com a perfeição e estímulo ao brincar livre, devido à rotina puxada de treinos, é a principal queixa das crianças.
”As crianças treinadas para serem esportistas têm dificuldade de dizer ‘não’. É aí que entram os grandes casos de exaustão emocional”, explica Andrea Ladislau.
A psicanalista ainda afirma que essas crianças podem incorporar personagens que não condizem totalmente com quem elas são. Desse modo, “começam a perder a identidade, não se enxergam como um ser individual, mas só como atleta”, diz.
Contudo, ela alerta que nem tudo é emocional. Algumas vezes, as dificuldades podem estar relacionadas a outros aspectos da vida da criança. Por isso, João Paulo reforça que o trabalho do Instituto busca dar apoio social e psicológico para as crianças, para então prepará-las para uma vida de atleta nas federações.
“Temos assistente social que vai na casa dos alunos para entender o que eles precisam”, afirma o treinador. Além disso, “a gente tenta provocar neles essa vontade de trocar ideia com a psicóloga.” Para ele, o suporte psicológico e social é um pilar importante no desenvolvimento dos alunos, muitos deles nascidos em contextos de vulnerabilidade.
Em um país desigual como o Brasil, enxergar o esporte como meio de ascensão social é um aspecto que merece cuidado. João Paulo recorda que, durante a pandemia, observou que algumas crianças estavam lá principalmente pela necessidade de recursos. “Percebemos que esse auxílio [financeiro] era o motivo principal, porque os pais queriam que elas tivessem lá e aí acabou entrando essa carga sobre eles” declara.
Para Andrea Ladislau, essa cobrança não é saudável e, mais uma vez, pode afetar na habilidade futura de dizer “não”. “A criança que entra para esse ritmo de ser um profissional começa a perder um pouco a liberdade. Se a gente cria nossos filhos com esse excesso de responsabilidade e disciplina, ele vai se autocobrar além da conta”, argumenta. Assim, quando ela percebe essa intervenção exagerada dos adultos, atua junto aos pais traçando um “plano terapêutico”. Em alguns casos, isso inclui “colocar até um limite nessa família”, confessa a psicóloga.
“O que eu vejo muito, inclusive no futebol, é aquela criança sendo preparada para dar uma vida melhor para a família”, alerta.
Atleta de beach soccer por 25 anos, Cláudia de Souza Campos, mãe de Maria Luiza, conhece bem as dificuldades da carreira. Por isso, defende que “em primeiro lugar vem a vontade dos filhos”. Mesmo sonhando com o futuro da filha e do filho João Paulo, 12, no rugby, Cláudia sabe que isso só será realidade se eles quiserem se comprometer de verdade com os treinos. “A gente não força a eles a fazer nada que eles não queiram.”
“A criança precisa ter um tempo para ser criança”, afirma Andrea. Diante disso, na busca pelo pódio diário, a hora de brincar deve ficar em primeiro lugar. João Paulo explica que, durante as aulas no Instituto, toda dinâmica parte da diversão. “A gente tenta trazer a importância do atleta viver a idade dele. Em um primeiro momento, a ideia é brincar.”
De acordo com a psicanalista, é na brincadeira que a criança consegue expressar sua individualidade e criar senso de pertencimento, exaltando que, acima de tudo, também existe um ser humano que pode errar. “Brincar e socializar com meu colega faz diferença para encontrar esse equilíbrio entre o humano e o automático.”
Para as crianças, mesmo com a seriedade dos treinos, a importância da brincadeira fica evidente. Kauane Souza, 11, conta que o “pique-pega” até ajuda no desempenho: “Mesmo cansada, com a respiração profunda, a gente continua brincando”, diz a atleta.
A pouca idade da menina esconde uma longa trajetória de prêmios. Kauane começou no esporte com cinco anos e hoje já soma seis medalhas entre campeonatos nacionais e internacionais de jiu-jitsu. Após ser campeã mundial em sua categoria, no campeonato Pan Kids, ela compartilha seu sonho:
“Quero ser campeã no grand slam de Dubai” – Kauane Souza, 11 anos.
Para isso, a família auxilia a equilibrar treino e diversão. “Montamos juntos um cronograma e colocamos na parede do quarto dela”, diz a mãe da atleta, Taina Lucia de Souza Lima. Já nos fins de semana, Kaune está livre para brincar. “Não dá para impor responsabilidades de adulto. E ela se sai muito bem”, comemora Taina.
Mas, não é apenas terapia e brincadeira que auxiliam a equilibrar essa rotina puxada. Além disso, “o diálogo [com as famílias] deve existir para entender se é aquilo mesmo que ele quer”, defende a psicóloga Andrea Ladislau. Nesse processo, pais e mães precisam estar prontos para esclarecer todos os benefícios de ser um atleta e também as dificuldades e os desafios.
“Nossa vida como pai e mãe mudou, pois não temos condições para arcar com isso. Ser pai de atleta é deixar de sonhar sozinho para sonhar junto”, diz Taina Lucia
É por meio da conversa também que encontramos os caminhos para lidar com a competitividade, a frustração e os medos. Na família de Kaune, a mãe reforça que “sempre conversamos com ela antes e depois [das competições]. Tentamos deixá-la bem preparada para qualquer resultado. Abraçamos e aconselhamos sempre.”
A troca com os pais cumpre seu papel, já que a atleta mirim tem um plano para os momentos difíceis de nervosismo: “Quando ouço música, eu me acalmo, tiro o nervoso e penso positivamente na luta e o que vai acontecer”, explica Kauane.
Assim, Andreia pontua que, em um ambiente onde “expressar a emoção de frustração não é permitido”, o diálogo aberto com as famílias, que se propõe a identificar e categorizar emoções, também ajuda a criança a lidar com a frustração e o medo.
“A grande questão é olhar para esse atleta e sempre enxergar um humano”, complementa a psicóloga. Ou seja, especialmente nos casos de perda, é essencial reforçar junto à criança que “a sua trajetória não se resume a uma falha”. E, com isso, dar suporte para lidar com aquele momento olhando por uma perspectiva mais generosa.