A luta invisível da maternidade em ‘Ainda estou aqui’

Filme provoca os espectadores a refletirem sobre memória e resistência a partir das experiências maternas de Eunice Paiva para proteger a família na ditadura

Camila Santana Publicado em 21.11.2024
Imagem de capa de matéria sobre o filme Ainda estou aqui mostra um acena em que a personagem Eunice Paiva sorri parea uma foto ao lados dos cinco filhos.
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Resumo

Cotado para disputar o Oscar, filme brasileiro mostra a luta de Eunice Paiva após o desaparecimento do marido durante a ditadura militar. Focada no olhar de uma mãe de cinco crianças, a obra humaniza a figura materna e os sentimentos vividos para proteger a família.

A intimidade de uma família brasileira com um lar vibrante, sempre aberto aos amigos, músicas e ideias é o pano de fundo de “Ainda estou aqui” (2004), filme do diretor Walter Salles, cotado para representar o Brasil no Oscar do ano que vem. Ambientado na década de 1970, em meio à ditadura militar, o longa abre as portas e as janelas da casa da família Paiva, que ficava perto do mar, no Rio de Janeiro, e que parecia estar constantemente cercada de alegria.

No entanto, em um dia comum, o pai é levado por agentes da ditadura, fato que traz para o primeiro plano a trajetória de Eunice Paiva, interpretada pela atriz Fernanda Torres. Matriarca da família, a personagem conduz um retrato tocante de uma maternidade marcada pela luta por justiça e pelo silenciamento de suas dores para proteger os filhos. É através dessa história de reinvenção que a produção propõe reflexões sobre os impactos dos anos de chumbo no país.

Recorde de bilheteria no Brasil, com mais de 1 milhão de espectadores nas salas de cinema, o filme também foi aclamado pelo público internacional. Até agora, já ganhou os prêmios de melhor roteiro, no Festival de Veneza, melhor atriz, no Critics Choice Awards, e filme favorito do público em três cerimônias: Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Vancouver International Film Festival e World Cinema do Mill Valley Film Festival. Além disso, é o representante oficial brasileiro para disputar uma vaga na categoria de melhor filme internacional no Oscar 2025, com pedidos do público para que Fernanda Torres entre na lista de indicadas a melhor atriz.

Com um tom sensível e intimista, o diretor explora as complexidades do luto, a resistência contra os regimes autoritários e a força dos laços familiares. A estética característica de Salles, com seu olhar atento aos detalhes e às emoções contidas, oferece uma experiência tocante a uma narrativa capaz de se comunicar de forma universal. É desse modo que o filme ganha relevância no momento atual, ao trazer uma protagonista feminina e destacar a importância do trabalho do cuidado e a luta invisível das mulheres, como sugere Ana Lúcia Dias, advogada especialista em Direito das Mães.

“Para além da política, este filme fala sobre mulheres e maternidade. Sobre nossa condição de ocupar um lugar invisível, seja pelo trabalho invisível, pela luta invisível ou pela sobrecarga invisível”

As lutas da mãe e ativista Eunice Paiva

Eunice, muitas vezes lembrada como a “viúva de Rubens Paiva” ou a “mãe do escritor Marcelo Rubens Paiva”, tem uma trajetória que vai além desses papéis. Formada em direito aos 47 anos, construiu uma carreira como advogada e ativista. Dedicou-se à luta por direitos humanos, pela memória dos desaparecidos políticos e pela proteção dos povos indígenas. A atuação reafirma sua identidade como uma mulher de coragem, não limitada pelas tragédias que enfrentou.

Em entrevista para a revista Forbes, Fernanda Torres aponta que as espectadoras vão se identificar com as diversas faces de Eunice. “Elas vão se reconhecer tanto na dona de casa, quanto na mãe, na advogada, esposa e todas essas pessoas. São muitos lados do feminino”, disse. “Também nas adversidades da vida, em que as mulheres não têm como sentar e ficar chorando porque normalmente são mães. Como mãe, você aguenta firme e segue em frente”, exemplifica.

Ana Lúcia Dias confirma que diariamente mulheres e mães sofrem por terem que silenciar o seu luto e as suas dores. Tudo pela necessidade de manter os filhos protegidos. “Nunca é dado às mães o direito de não saber o que fazer. A protagonista do filme, uma mãe de cinco filhos, se vê nessa posição. Esse talvez seja um dos grandes problemas do nosso tempo”, diz a advogada.

“O que acontece quando uma mulher, que cuida de tantos, não pode cuidar de si e nem é cuidada? Gostaria que Eunice tivesse a oportunidade de chorar por um dia”

“Nós vamos sorrir. Sorriam!”

Apesar de todas as dificuldades, Eunice não quis passar a impressão de que a ditadura militar havia vencido a sua família, como sugere Marcelo Rubens Paiva, no livro homônimo que inspirou o filme. A mãe recusava a nomenclatura de “família vítima da ditadura“, pois reconhecia que era apenas mais uma das “muitas famílias vítimas”.

Marcelo também narra em detalhes o momento em que tiraram a primeira foto da família após o desaparecimento do pai, para a revista Manchete. “O fotógrafo reclamava: fiquem mais sérios, mais tristes, mais infelizes. Não conseguimos. Ou não queríamos. Observo a foto hoje e vejo nos olhos da minha mãe: quem você pensa que é para nos fazer infelizes?”, diz o trecho do livro. O filme também mostra que, mesmo com a pressão da imprensa, Eunice orientou que os filhos sorrissem.

Para Mariana Festucci, doutora em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo, as dores de Eunice têm um contexto semelhante ao mito grego de Antígona, cuja versão mais conhecida foi escrita por Sófocles. Segundo ela, é possível ampliar a personagem além da figura de “viúva da ditadura”. Isso porque o mito conta como a heroína agiu ao ser impedida de enterrar seu irmão por ordens do rei.

Festucci argumenta que a interpretação de Fernanda Torres consegue captar o momento de desconcerto e desorientação frente à violência do Estado. “Essa interpretação fica muito compatível com a tragédia de Antígona, não só pela determinação de cumprir a honraria fúnebre, mas também por questionar a lei dos homens e marcar sua rigidez como uma forma de determinação”, diz a psicóloga. Dessa maneira, conhecemos a matriarca como uma personagem histórica, que lutou pela dignidade humana e que se posicionou ultrapassando os limites da tragédia pessoal.

Uma obra que uniu mãe e filha no mesmo papel

Em uma entrevista para a FRED Film Radio, Fernanda Torres compartilhou sua visão sobre o manejo de emoções para o filme, a partir de um conselho de sua mãe, Fernanda Montenegro. “Uma vez ela me disse: ‘em uma tragédia grega, se você vai interpretar personagens como Hécuba ou Antígona, você não pode chorar. Se a Hécuba começa a chorar com a primeira má notícia, no final, ela vai parecer uma barata. Ela enfrenta a tragédia!’”, conta. Para viver Eunice Paiva, Fernanda lembrou de cada palavra da mãe, que também aparece no filme interpretando a mesma personagem em outra época.

“Não havia espaço para choro ou autopiedade. Ela não tem tempo para ter pena de si mesma”

“O mais marcante na interpretação da Fernanda Torres foi a postura e a presença a partir de toda sua linguagem corporal. Ao mesmo tempo, Fernanda Montenegro sustenta toda a interpretação pelo olhar”, comenta Mariana Festucci. Com base em sua pesquisa sobre a personagem histórica, a psicóloga pôde identificar a qualidade das duas atuações em conseguir captar a determinação e as diferentes faces de Eunice Paiva.

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Foto: Alile Dara Onawale / Divulgação

Fernanda Torres e Selton Mello protagonizam a trama de uma das famílias que enfrentou a ditadura militar brasileira.

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Foto: Alile Dara Onawale / Divulgação

Fernanda Montenegro captura olhar de Eunice Paiva em sua participação icônica em ‘Ainda Estou Aqui’.

‘Ainda estou aqui’ também atravessa as memórias do país

Juliana Kohari, professora e membro da União de Mulheres de São Paulo, destaca a relevância da luta de Eunice pelo reconhecimento oficial da morte de Rubens Paiva. Isso porque a ditadura militar brasileira foi marcada por esforços sistemáticos para ocultar as violações, incluindo torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados. A família, então, só conseguiu um atestado de óbito em 2014, no final do trabalho da Comissão Nacional da Verdade.

“Conseguir o atestado de óbito anos depois teve um peso simbólico de reconhecimento do Estado sobre essas violações. Isso me fez pensar sobre o direito à memória e a luta das famílias que continuam, até hoje, buscando respostas sobre mortos e desaparecidos políticos”, comenta. Para Juliana, o documento oficial simboliza a urgência em resgatar a memória. Portanto, ela defende que “essa luta é um compromisso essencial com a democracia do nosso país.”

Marcelo Rubens Paiva revelou, em entrevista à Editora Objetiva, que a inspiração para escrever o livro surgiu ao ver a mãe enfrentar a doença de Alzheimer, que se manifesta com os lapsos de memória. O momento aconteceu enquanto a história de seu pai era resgatada pelos jornais e, paralelamente, seu filho recém-nascido começava a formar as primeiras lembranças. Essa interseção entre perda, resgate e construção da memória foi o ponto de partida para a obra.

“Ela [Eunice] ergueu o atestado de óbito para a imprensa como um troféu. Foi naquele momento que descobri: ali estava a verdadeira heroína da família; sobre ela que nós, escritores, deveríamos escrever”

“Ainda estou aqui” funciona como um alerta sobre os perigos dos regimes autoritários. Mas também entrelaça um momento histórico à importância da figura materna, como cuidadora que precisa estar visível à família e combativa à sociedade da época. A linguagem que encanta pelas imagens, trilha sonora e interpretações cativantes faz também refletir para como Eunice Paiva convivia com o “peso” e a “leveza” de uma mãe de muitos e senhora de memórias.

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