Entre o rio e a floresta, mulheres ribeirinhas do Pará transformam o cacau em fonte de renda, nutrição e direito das crianças de vivenciar o território
Para garantir a permanência no território, mulheres ribeirinhas do Pará investem na transformação do cacau em fonte de renda e nutrição. Por meio das Guardiãs do Cacau, elas trabalham sem precisar abdicar de sua rede de apoio e seu modo de vida.
Com os pés no trapiche, em frente à sua casa, na comunidade ribeirinha de Acará-açu, no Pará, Guilherme, 6 anos, se prepara para mais uma rodada de saltos no Rio Acará. O roteiro se mantém por 30 minutos: pegar impulso, correr na velocidade máxima, saltar, girar e mergulhar. A brincadeira é rotina para meninas e meninos ribeirinhos. Mas, para que essa infância permaneça à beira do rio, cada vez mais, a comunidade precisa lutar por sua permanência no território.
“Não gostaria que as crianças tivessem que sair daqui para vislumbrar um futuro”, afirma a assistente social Luciene Gemaque, tia de Guilherme e mãe de Helena, 2 anos. Ela é uma das fundadoras das “Guardiãs do Cacau”, um grupo de oito mulheres de Acará-açu, que busca fortalecer a economia da comunidade e manter a floresta em pé por meio da fabricação de chocolate.
“Guardiã é aquela que guarda. Não só tira, mas também ajuda a preservar a natureza”, diz Diana Gemaque, 34 anos, membro das Guardiãs.
Acará-açu está a cerca de 100 quilômetros de Belém do Pará e reúne 150 famílias que vivem da pesca e dos produtos da floresta, especialmente da mandioca, açaí e pimenta-do-reino, segundo dados da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater). Mas, com a alta demanda dos últimos anos, o cacau tem se mostrado uma opção relevante para os agricultores da região. “O mercado não quer mais aquele cacau impuro, hoje se busca um cacau mais saudável”, afirma Helenice Cesar, coordenadora da Emater de Acará.
A primeira experiência de venda do produto, no Festival Belém no Prato, em 2022, já mostrou o potencial do empreendimento. “Foi um sucesso e uma virada. Um dos incentivos foi a possibilidade da independência financeira”, completa Diana. Além de se sentirem mais valorizadas pelos maridos e pela família, como confessa Francine, mãe de Guilherme e de Gabriel, 2 anos, a fábrica evita que as mulheres tenham que sair da comunidade em busca de emprego. Elas sabem que na cidade estariam longe de suas mães e vizinhas, principal rede de apoio.
“Precisei de acompanhamento psicológico para viver na cidade. Isso porque o choque cultural é muito grande: toda a natureza ao meu redor se transformou em concreto”, recorda Luciene sobre sua vida universitária. Ela defende que as políticas públicas venham até as populações ribeirinhas, e não o contrário.
Para essas mulheres, permanecer na comunidade significa cuidar melhor de si, dos filhos e da floresta. Hoje, o cacau que dá origem às barras artesanais é fornecido por produtores da região, o que fortalece ainda mais a comunidade. Um deles é Zeno Gemaque, irmão de Francine, responsável pelo processo de fermentação, etapa decisiva para garantir o sabor e o aroma final do chocolate. “Antes, a gente fazia só o suco da polpa e jogava fora a semente”, relembra Valdenilda Rodrigues Pereira, membro das Guardiãs e mãe do Arthur, 5 anos, e do Nicolas, de 10. Hoje, nada mais é desperdiçado. A preocupação em aproveitar integralmente o fruto se estende até as embalagens, feitas das folhas do cacaueiro, em um processo minucioso de coleta, fervura, tintura e escovagem.
Mesmo com tantas etapas necessárias para produzir o chocolate, batizado de “Acaraçu”, o revezamento em turnos permite que todas trabalhem sem abdicar do convívio comunitário ou da maternidade, já que muitas estão ou passaram recentemente pelo período de amamentação. “Não se pode exigir que as mulheres trabalhem oito horas por dia, como na cidade. A maioria tem filhos”, ressalta Luciene. Além de uma fonte de diversificação de renda, ela acredita que a capacitação promovida em torno desse trabalho é uma esperança de permanência na comunidade e de preservação dos modos de vida ribeirinhos. Isso porque “nosso empreendimento traz uma compreensão de valor das cadeias da sociobiodiversidade”.
Nativo da Amazônia, o cacau pode ser colhido durante o ano todo, mas conta com uma safra principal, entre abril e agosto, e uma “safrinha” ou temporão, entre setembro e outubro. A produtora agroflorestal e Guardiã Izabela Campos, mãe de Heitor, 11 meses, explica que, em Acará-açu, o fruto é cultivado em áreas de várzeas ou agroflorestas, um modelo de manejo da terra que combina árvores nativas com culturas agrícolas ou animais, de forma simultânea. “O cacau é uma das plantas principais dos nossos sistemas agroflorestais. Ele dá matéria orgânica [para o solo] e do fruto se faz o chocolate, o suco, a geleia, o licor, uma série de produtos e de formas de se alimentar”, explica.
O Pará é referência no plantio de cacau no Sistema Agroflorestal (SAF). Além de ser o maior produtor mundial, também gera a maior média de produtividade por hectare, de acordo com o relatório anual de previsão de safra da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac) e a Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca (Sedap). A valorização da cultura cacaueira, “além de fortalecer a economia local, sendo uma opção para a entressafra do açaí”, como aponta Luciene, também produz mais diversidade alimentar para as famílias.
“Uma alimentação variada, diversa em quantidade e qualidade, somente a agrofloresta pode proporcionar. Seja ela de qualquer bioma”, dispara Islândia Bezerra, nutricionista, professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Este é também o aspecto principal para um desenvolvimento infantil saudável, segundo um estudo da Universidade da Califórnia, publicado na revista Nutrition Reviews, que acompanha crianças desde a gestação até os seis anos. A pesquisa revela que, nessa fase – que define as bases de aprendizado para toda a vida – nutrientes como ácido fólico e vitamina A são fundamentais para um desenvolvimento satisfatório.
É por isso que alimentos que fazem parte dos SAFs, como mamão, manga, buriti, macaúba, abóbora, ricos em vitamina A, são tão importantes para o cardápio amazônico, defende Islândia. “A agrofloresta, seja ela de qualquer bioma de que está fazendo parte, traz toda uma diversidade de cores, sabores e composição nutricional inimagináveis.”
“Só após entrar no grupo das Guardiãs do Cacau eu adquiri esse conhecimento da importância de comer alimentos naturais”, conta Valdenilda.
De acordo com o estudo da Universidade da Califórnia, é nos primeiros 1.000 dias de vida que o cérebro atinge 80% do seu tamanho adulto. Esse desenvolvimento acelerado exige nutrição abundante e diversa, principalmente para as mães, devido à relevância do aleitamento materno exclusivo durante os primeiros seis meses de vida do bebê.
Juntos, a gestação e o aleitamento exclusivo representam 45% da janela de 1.000 dias de nutrição infantil. Além de proteção nutricional, o leite materno oferece estímulo afetivo e interacional. Então, segundo o estudo, crianças que tiveram acesso ao aleitamento apresentaram melhor desempenho escolar aos 6,5 anos, demonstrando a capacidade da amamentação de também reduzir desigualdades cognitivas.
Em Acará, a troca de informações entre os serviços de Saúde e Assistência Social são fundamentais para assegurar o apoio integral do desenvolvimento infantil, desde o pré-natal, garante Karolayne Pires de Souza, nutricionista na secretaria de assistência social (CRAS) do município. Entre as iniciativas recentes está o “Papo de Mãe” que promove rodas de conversa sobre temas envolvendo a maternidade, além de fortalecer o empreendedorismo feminino.
No entanto, o agente comunitário Avelino Matos conta que o acompanhamento pré-natal das mães e as orientações relacionadas ao aleitamento exclusivo ainda são um desafio na comunidade de Acará-açu. “A maioria das mães tira do peito cedo para colocar outros alimentos”, lamenta.
Isso acontece, segundo ele, por questões culturais, baixa importância dada ao pré-natal e, possivelmente, dificuldades de acesso ao posto de saúde da comunidade. “Eu preferia ir até Belém do que depender da assistência daqui”, recorda a Guardiã Dilma Belém, 32 anos, mãe da Alanda, 7 anos, e Maitê, 2, sobre as diversas viagens de barco feitas em vão durante a primeira gravidez, que a fizeram desistir do atendimento pelo SUS.
Se até os seis meses o aleitamento materno é responsável por garantir componentes essenciais para o crescimento neural que não existem nas fórmulas industrializadas, a partir do sétimo mês, a alimentação complementar diversificada é decisiva. O estudo da Universidade da Califórnia aponta que frutas, castanhas, peixes, raízes e verduras são fundamentais para sustentar o ritmo acelerado de crescimento do cérebro, favorecer a formação de novas sinapses e prevenir deficiências que podem comprometer a memória, atenção e aprendizagem ao longo da vida.
“Temos pouco conhecimento sobre o aproveitamento de tudo que os alimentos têm para oferecer”, reconhece Avelino. Para ele, promover esse tipo de conhecimento também deve ser uma iniciativa do poder público. Com mais estudo e capacitação, talvez o desejo de Luciene se concretize: “A gente tem o objetivo de criar recheios com outras frutas para o nosso chocolate e agregar valor a outras cadeias produtivas de alimentos que estão aí na natureza e só a gente conhece.”
Rico em antioxidantes, o cacau faz parte da rotina alimentar de quem vive na floresta. Ainda que estudos comprovem que o consumo do cacau é benéfico para a saúde cardiovascular e cerebral dos adultos, segundo a nutricionista Flávia Lopes, ainda não existem confirmaçõessobre seus efeitos em crianças. Assim, a alta concentração de cafeína deve ser o principal norteador do consumo, já que o composto não é indicado para grávidas e desaconselhado para crianças antes dos 12 anos. “Em média, bebidas à base de cacau têm de 4 a 5 mg de cafeína por xícara. Já o chocolate amargo contém cerca de 0,7 a 0,9 mg de cafeína por grama, aumentando conforme a concentração de cacau”, detalha.
Especialista em Nutrição Clínica com ênfase em Obstetrícia, Pediatria e Adolescência (NUTMED/RJ), Flávia acompanha gestantes e mães no período dos primeiros 1.000 dias do bebê. Ela explica que até os dois anos essas substâncias podem “causar irritabilidade, aumentar o estresse e alterar o sono”.
Já no caso do suco de cacau, feito com a polpa da fruta – comum na mesa dos ribeirinhos -, o consumo é recomendado apenas após os dois anos, “no máximo 120 mL/dia para 2-3 anos, com preferência sempre para a fruta in natura”, complementa.
Por isso, caso as famílias optem por oferecer cacau às crianças, como alternativa saudável aos ultraprocessados, Flávia sugere moderação. “Algo como uma colher de chá por dia.” Ela detalha: “Quando a gente pensa a partir de dois anos, o consumo ideal é de forma ocasional e em pequenas quantidades, de preferência para compor receitas, como um bolo, um mingau, uma panqueca”.
Contudo, o cérebro não se alimenta só de nutrientes, mas também de experiências. Ainda de acordo com o estudo, enquanto a nutrição adequada fornece “matéria-prima” para o cérebro (ferro, proteínas, vitaminas), o uso eficiente desses recursos depende de ativação. Ou seja, interação, linguagem, afeto, toque, brincadeira são fundamentais para consolidar as conexões neurais.
E quem vive na floresta sabe muito bem que a decisão de consumo transcende as tabelas nutricionais. A alimentação resgata saberes ancestrais e aprofunda vínculos, indispensáveis para o desenvolvimento das crianças:
“Eu lembro que nosso avô beneficiava o cacau manualmente, e era um momento importante em família, especialmente quando ele chamava todo mundo para beber chocolate quente”, relembra Luciene.
Hoje, as Guardiãs buscam reviver essas experiências com os filhos. “Se a gente encontrar uma forma de manter essa tradição, a gente vai ficar comendo peixe e fruta para sempre”, defende a assistente social.
“Hoje, nós sabemos que o industrializado faz mal”, confessa Wanor Elvis Cardoso, presidente da associação de moradores e agricultores Padre Alberto Pirabon, de Acará-açu. Após 29 anos parado, o grupo retomou suas atividades em 2020 para investir nos SAFs.
Contudo, garantir que as crianças ribeirinhas tenham acesso ao alimento produzido na comunidade não tem sido um caminho tão simples. O cacau utilizado para produção do chocolate Acaraçu, por exemplo, é conhecido como “cacau fino”, resultado de um processo denominado tree to bar (árvore à barra, em português), em que uma mesma marca é responsável por todas as etapas de produção, do plantio ao produto final para consumo.
Luciene explica que esse processo difere do modelo industrial, garantindo maior sustentabilidade, qualidade e valorização do chocolate no mercado. “As etapas de fermentação e secagem, por exemplo, são fundamentais para o desenvolvimento de sabor e aroma no cacau e controle preciso da produção artesanal e diferenciam o ‘cacau fino’ do ‘cacau bulk’, comumente usado pela indústria, resultado de um processamento mais simples e rápido de fermentação”, diz. Ou seja, o cacau se torna um chocolate mais caro, inclusive para consumo das próprias produtoras.
Para a associação, uma solução pode ser a inserção do produto na alimentação escolar por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que exige que 30% do cardápio venha da agricultura familiar da região.
“Seria lindo oferecer nosso próprio alimento para as crianças, mas a escola nunca teve produtos da comunidade”, afirma Wanor.
Helenice Cesar explica que para isso acontecer é preciso que as famílias registradas no programa da agricultura familiar participem de uma chamada pública, um procedimento com regras e prazos que dependem do município. “O cardápio é feito a partir do que se produz, do que nós temos em safra e da aceitabilidade”, diz a nutricionista da prefeitura de Acará, Claudia Albuquerque. “A farinha de mandioca, sinceramente, não representa muito valor nutricional, mas ela vai [no cardápio] pelo costume local”, complementa.
Recentemente, para estimular essa aproximação com um produto que pode ser encontrado no quintal das crianças, as Guardiãs do Cacau começaram a receber alunos da região na fábrica para explicar passo a passo do empreendimento local. Para Luciene, ver o cacau chegar à alimentação escolar é mais do que diversificar o cardápio, é resgatar memórias. Isso porque Acará é o berço da Cabanagem, revolta popular do Grão-Pará (1835-1840), sustentada nas margens dos rios amazônicos por indígenas, negros libertos, mestiços e ribeirinhos que viviam em cabanas de palha.
Ao mencionar uma das antigas fazendas que acolheram os cabanos às margens do rio Acará, a alguns minutos de barco do trapiche em que Guilherme brinca, Luciene liga as pontas do passado e do presente: ontem, a luta pelo direito de existir; hoje, a luta pela proteção do modo de vida ribeirinho. “A cabanagem não acabou. Para mim, o que estamos fazendo é uma resistência”, diz emocionada.
* Esta reportagem recebeu apoio do programa Early Childhood Reporting Fellowship, do Global Center for Journalism and Trauma.
** Edição e colaboração na apuração: Camilla Hoshino