Do TikTok à escola: quando o digital vira brincadeira com o corpo

Educadores sugerem jogos para se divertir fora das telas, mas usando referências das redes sociais. Atividades estimulam movimento e cooperação

Fernanda Martinez Publicado em 24.10.2025
Imagem mostra duas crianças rindo. Uma veste camiseta e boné brancos, shorts jeans e meia rosa. A outra veste camiseta e boné amarelos e usa um fone de ouvido preto. Elas parecem brincar fora das telas e se divertir com isso.
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Resumo

Brincar é essencial para o desenvolvimento das crianças, mas a cultura digital pode inspirar novas formas de movimento e convivência. Professores e especialistas mostram como transformar referências das redes sociais em jogos coletivos.

Imitar influenciadores, reproduzir danças e desafios que viralizam, copiar estilos de maquiagem e modos de se vestir. O que antes era faz de conta agora acontece diante de uma tela de celular. Algumas infâncias parecem ter trocado o pega-pega e a bola na rua pelos vídeos e tendências das redes sociais.

Mas será que esses dois mundos precisam viver em oposição? O Lunetas propôs para dois educadores atualizarem o brincar fora das telas incorporando elementos do universo digital. O resultado são ideias de jogos coletivos, com roteiros, coreografias e encenações, regras simples, materiais baratos e, principalmente, com o corpo em movimento.

Vamos brincar?

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Gabryel Gomes de Melo, professor de educação física do Colégio Divina Pastora, em São Paulo, sugere um jogo de mímicas, mas embalado pelo ritmo de músicas, que podem ser retiradas do universo digital — de alguma trend que tenha viralizado, ou de um desenho, série ou jogo que as crianças conheçam.

Desafio musical em movimento

Materiais: caixa de som ou rádio, papel para imprimir ou escrever os desafios.
Quantidade de pessoas: dois grupos de quatro a seis participantes (pode ser adaptado para turmas maiores).
Objetivo: usar músicas conhecidas para gerar movimento.
Benefícios: estimula a coordenação motora, a expressão corporal, a criatividade e o trabalho em grupo.
Como brincar:
1. As crianças devem ser divididas em dois grupos. Escolha uma música popular entre elas e coloque para tocar. Assim, quando a música parar, um grupo sorteia um desafio (confira as sugestões abaixo);
2. Metade desse grupo tem alguns minutos para criar e apresentar a atividade proposta, sempre no ritmo da música, que volta a ser tocada. A outra metade do grupo precisa adivinhar o que foi representado;
3. Agora, é a vez do segundo grupo fazer a mesma coisa;
4. Nas próximas rodadas, os grupos invertem as funções, ou seja, quem fez o desafio, agora vai adivinhar a partir da apresentação dos colegas;
5. Vence o grupo quem adivinhar mais desafios.
Sugestões de desafios: “imite um animal”, “crie um passo de dança”, “faça uma mímica com o corpo todo”, “ande como se estivesse na lua”, “crie uma coreografia só com os braços”, “finja que está com sono e tente dançar assim”, “invente uma dancinha de super-herói”.

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Larissa Fonseca, psicopedagoga e neuropsicóloga, traz duas versões de atividades lúdicas que propõem momentos de diversão usando referências do mundo digital.

Desafio das trends

Materiais: papel, lápis, tecido, adereços simples, instrumentos musicais.
Quantidade de pessoas: a partir de quatro.
Objetivo: transformar referências digitais em produções criativas.
Benefícios: desenvolve expressão corporal, o sentido de cooperação e a criatividade.
Como brincar:
1. O grupo escolhe uma trend, ou seja, uma tendência, algo que viralizou e se tornou popular nas redes sociais. Pode ser uma dança, uma dublagem, uma cena engraçada;
2. A partir dessa referência, o objetivo é criar uma nova versão, mudando o assunto, o propósito e o desfecho. A ideia é usar temas reais, que possam gerar reflexão no grupo (confira as sugestões abaixo);
3. Os temas são escritos em um pedaço de papel e colocados num saquinho para sorteio;
4. Com o tema sorteado, cada participante escolhe, então, uma função na criação dessa nova versão: intérprete, diretor, figurinista, narrador, sonoplasta, etc. O professor ou um adulto responsável pode apoiar no processo criativo;
5. A apresentação final pode ser ao vivo ou gravada, mas a ideia é não postar em nenhuma rede social o resultado, e sim valorizar a experiência da vida real, offline. No fim, todos comentem o que mais gostaram na atividade, transformando o conteúdo digital em convivência e afeto.
Sugestões de temas para sortear:
Coreografia das emoções: escolher uma emoção (alegria, medo, raiva, surpresa, coragem) e criar uma coreografia ou cena que a represente.
Desafio da gratidão: criar uma cena para agradecer alguém da turma, da família ou da comunidade.
Trend do cotidiano: transformar situações simples, como escovar os dentes, arrumar a mochila, esperar o ônibus, em coreografias cômicas.
Desafio do cuidado: transformar gestos de cuidado (com o outro, com o corpo, com o planeta) em uma performance.
Desafio dos superpoderes: criar poderes que representam uma qualidade (bondade, coragem, criatividade) e mostrar como usaria no mundo real.
Trend do futuro: imaginar como será o mundo daqui a 20 anos e criar uma encenação sobre isso.

Jogo dos emojis

Materiais: desenhos ou impressões de emojis.
Quantidade de pessoas: a partir de duas.
Objetivo: explorar os sentimentos de forma lúdica, usando os emojis como ponto de partida.
Benefícios: estimular o reconhecimento das emoções, a expressão corporal e a empatia.
Como brincar:
1. Cada participante sorteia um emoji e deve imitar a expressão sorteada;
2. Depois, ele conta uma situação que tenha despertado aquele sentimento (raiva, alegria, sono, medo, amor, e assim por diante);
3. O adulto mediador pode propor desafios corporais ligados a cada emoção, como por exemplo, soco no travesseiro para a raiva, dança para a alegria, andar devagar para o sono ou um grito de surpresa.
Sugestões de emojis: 😀 😍 😡 😢 😱 🤔 🤪 😴 😤 🥶 🥰 😬 😜 🤗 😇 😭

Brincar é prioridade

O professor Gabryel Gomes de Melo percebe mudanças significativas no comportamento dos alunos nos últimos anos. “As brincadeiras espontâneas e de faz de conta, que eram comuns, deram lugar a atividades inspiradas em vídeos, jogos online e redes sociais”, relata. “Entáo, isso influencia diretamente a forma como as crianças se expressam corporalmente e como interagem com os colegas.”

Usar referências da internet nas brincadeiras não é um problema, mas é urgente que as crianças e os adolescentes voltem a experimentar com o corpo, com outras pessoas e com o espaço real, segundo a psicopedagoga e neuropsicóloga Larissa Fonseca. “É possível resgatar o caráter exploratório e afetivo do brincar, sem ignorar o tempo em que vivemos.”

Portanto, Larissa reforça que, a partir da brincadeira, a criança experimenta, cria hipóteses, testa soluções, desenvolve linguagem, raciocínio e competências socioemocionais. Assim, “brincar é uma das maneiras mais potentes de aprendizagem e a principal forma de expressão na infância.”

“O conhecimento se torna mais significativo durante as brincadeiras, porque a criança se envolve afetiva e cognitivamente, de uma forma natural e gostosa”, explica a psicopedagoga. “Brincando, a criança assimila o mundo, as regras e começa a entender a causa e a consequência das ações.”

Assim, quando falta brincadeira, o corpo da criança também deixa de aprender, porque ela se move pouco, sente e explora menos os espaços e a si mesma. Segundo a especialista, isso afeta o desenvolvimento motor e a integração social.

“Brincar é movimento, é ritmo, tom, som, toque. Quando essas experiências desaparecem nas brincadeiras através de uma tela, o desenvolvimento se torna mais mecânico e menos experimental” – Larissa Fonseca, psicopedagoga e neuropsicóloga.

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Arquivo pessoal

O professor Gabryel na sua sala de aula: a quadra

Em grupo é melhor ainda

Gabryel cresceu na periferia de São Paulo e leva referências da própria infância, totalmente desconectada, para seus alunos. “Eu apresento jogo de taco, brincadeiras de mímica e atividades com música”, conta. “Acredito no poder das atividades lúdicas e em grupo para o desenvolvimento dos meus alunos.”

“Correr, sentir, rir, ceder, ganhar e perder. Essas vivências ensinam sobre autocontrole, empatia, cooperação e ajudam a entender os sentimentos das outras pessoas”, explica Larissa. Portanto, se brincar é bom, brincar em grupo é melhor ainda.

Atividades coletivas criam um “espaço de convivência fantástico, pois proporciona aprendizagem social e amplia o repertório afetivo”, afirma a psicopedagoga. “Nessa experiência, a criança copia o colega de maneira saudável, se movimenta, pode tocar nas pessoas, sentir o espaço e a passagem do tempo.”

Gabryel entende que a escola é um bom local para ressignificar as referências digitais das crianças. Ou seja, é um ambiente de atividades que estimulam a cooperação e o contato direto entre os alunos. “O papel do professor é mediar esse processo. Dessa maneira, ajudamos as crianças a perceberem que o movimento e o brincar coletivo são formas ricas de expressão e convivência.”

A infância sob o filtro das redes sociais

Por outro lado, as crianças que brincam pouco por estarem hiperconectadas “estão imersas em um ambiente que valoriza a cultura da performance, muitas vezes acompanhando influenciadores que transformam suas vidas em espetáculo”, alerta Larissa. “Nesse contexto, a criança pode internalizar papéis sociais e modelos de corpos, de atuação e de consumo que não são ideais para sua idade.”

Para Larissa, essa invasão da cultura digital e do que acontece nas redes sociais faz com que “o brincar deixe de ser apenas uma linguagem da infância e passe, então, a reproduzir o que os adultos consomem e valorizam.”

Por isso, é tão importante valorizar as brincadeiras, o tempo livre do tédio e as interações sociais. “O brincar permite uma experimentação simbólica e a construção da própria linguagem sobre o mundo”, defende a psicopedagoga.

Para valorizar as brincadeiras

Quando educadores, famílias e cuidadores percebem um empobrecimento no brincar, “é preciso estimular o repertório lúdico da criança”, sugere Larissa. Dessa forma, as opções são: oferecer tempo, espaço e materiais não-estruturados. Além disso, ela cita que é importante “propor tempo livre de brincar, sem pressa, sem resultado, sem performance.”

Ao mesmo tempo, Gabryel defende que “as crianças preferem propostas dinâmicas e rápidas, que envolvem cooperação e desafios coletivos. Jogos com objetivos claros e que estimulem o trabalho em grupo costumam gerar bastante engajamento.”

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