Conquistar espaço para falar e ser escutado é o primeiro passo para conseguir transformar seus mundos
Toda criança tem algo a dizer e precisa ser levada a sério! A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente, elas passaram a ter esse direito à participação garantido.
“Eu tenho direito de dar a minha opinião, principalmente em assuntos que me envolvem, em casa e na escola. O importante é não se calar e tentar manifestar a minha voz”, diz Simone, 16. Sim, Simone tem razão. Mas, há algumas décadas, adultos não consideravam o que meninos e meninas tinham a dizer. Isso porque crianças e adolescentes não se sentavam à mesa quando o assunto era entre adultos. Ou, então, eram silenciados.
Foi a partir de 1990, com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que eles passaram a poder se expressar de diferentes jeitos e ter o seu direito à participação garantido por lei. Aliás, um pouco antes já davam sinal de sua força.
Em 1985, mais de 20 mil crianças e adolescentes fizeram um cerco ao Congresso Nacional, em Brasília. Era, então, o dia da votação da Emenda Criança, que deu origem aos artigos 227 (sobre a absoluta prioridade dos direitos das crianças e adolescentes para a família, a sociedade e o Estado) e 228 (que determina a maioridade penal de 18 anos), da Constituição Federal de 1988. Esse evento foi um marco na mobilização social em defesa de seus direitos.
Primeiro, feche os olhos e lembre da criança que você foi. Depois, pense na criança mais próxima de você. Agora, reflita sobre a importância de proteger a infância dessas duas crianças. É para isso que o ECA existe, e é por isso que lutamos por ele.
Com esse exercício, é possível entender a abrangência da lei para todas as crianças e todos os adolescentes. Mas, principalmente, para os mais vulnerabilizados, afirma Lucas Lopes, secretário executivo da Coalizão pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes. Para ele, à medida que se considera suas vozes, o silêncio estrutural historicamente imposto a eles se rompe.
“Escutar crianças e adolescentes é reconhecer suas linguagens, narrativas e compreensões como legítimas e indispensáveis à produção de sentidos sobre si mesmas e sobre o mundo que as cerca”, diz. Portanto, quando consideramos e valorizamos os saberes, as percepções e as formas de expressão desses grupos, é possível criar políticas públicas mais eficazes para atendê-los.
“Quando a gente conhece os nossos direitos, a gente não aceita qualquer coisa”, afirma Emanuelly, 16. “Quanto mais a gente sabe sobre eles, mais força temos para pedir pelo respieto aos nossos direitos.”
Em São Luiz (MA), Simone e Emanuelly participam da Rede Meninas Líderes. O projeto, da Plan International Brasil, estimula suas habilidades de liderança e advocacy na luta pela igualdade de gênero. Lá, elas e outras meninas de diferentes estados brasileiros compartilham experiências e opiniões livremente.
“Quando a gente conhece os nossos direitos, a gente não aceita qualquer coisa. Quanto mais a gente sabe sobre eles, mais força temos para pedir que nossos direitos sejam respeitados”, diz Emanuelly.
Já o projeto “Arteiros legais” busca potencializar “o saber sensível das crianças e dos adolescentes” por meio de ações culturais. “Na última edição, eles tiveram a chance de aprender sobre algo muito sério (seus direitos), mas brincando e com estímulo à imaginação”, diz a produtora Lila Tenório. “Não importa quem eu sou. Aprendo que todas as crianças têm que ser protegidas”, conta Hellen, 11, que estuda em uma das escolas que recebeu o projeto, em Belo Jardim (PE).
É justamente para promover a conscientização dos alunos sobre seus direitos e deveres e garantir a proteção integral e o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes que a Câmara do Rio aprovou o PL 22/2025. Desse modo, o ensino do ECA passará a ser uma atividade extracurricular nas unidades de ensino da rede pública municipal. Assim, os estudantes poderão compreender melhor os mecanismos de proteção e participação social, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Outro exemplo que visa fortalecer a democracia participativa e o papel do controle social entre esses grupos é o projeto “Democracia, direitos: crianças e adolescentes”. Por meio dos Fóruns de Direitos da Criança e do Adolescente em todos os estados do Brasil, a ideia é viabilizar que crianças e adolescentes participem dos processos decisórios.
“Os adultos sempre querem decidir pelas crianças e adolescentes, mas eles são cidadãos e têm direito de falar e ter suas opiniões consideradas”, reforça Ricardo Melo, secretário nacional do FNDCA.
Para Emanuelly, além de participar de conselhos de crianças e adolescentes, outra forma de propagar sua voz pode ser a partir da criação de cartazes de protesto. Nesse sentido, Simone reforça o papel da internet, “para divulgar coisas e chamar a atenção de mais pessoas, em campanhas ou projetos que falam sobre os nossos direitos”. A adolescente também sugere conversar com adultos de confiança ou procurar o conselho tutelar, quando se tratar de algo mais grave.
Para Paula Alegria, assessora de Advocacy e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Plan International, oportunizar espaço de escuta verdadeira para crianças e adolescentes não só fomenta o protagonismo desse grupo na construção de soluções dos problemas que os atingem, mas também contribui para a promoção de ambientes seguros que auxiliam na prevenção de abusos.
Mas essa escuta não é a mesma para todas. Segundo Paula, meninas, especialmente negras, indígenas, com deficiência e de contextos mais vulnerabilizados socioeconomicamente, são frequentemente desacreditadas, silenciadas ou culpabilizadas ao relatarem situações de violência. Isso acontece porque, “consciente ou inconscientemente, profissionais associam sua aparência, sua origem ou seu comportamento à ideia de ‘falsa denúncia’ ou ‘exagero’”, diz. Portanto, isso “legitima o silêncio e a impunidade” ao colocar a responsabilidade sobre a vítima e proteger os agressores.
Lucas Lopes afirma que a escuta, embasada no ECA, ajuda a quebrar esse padrão. Isso por assegurar condições emocionais e comunicacionais para a participação de crianças e adolescentes, especialmente em contextos de violência.
A Lei nº 13.431/2017 trouxe a institucionalização da escuta especializada e do depoimento especial em diversos estados brasileiros. Com isso, ampliam-se as possibilidades de fala em contextos de violência e evita-se a revitimização.
Sem a escuta especializada, infâncias e adolescências LGBTQIA+ também ficam mais expostas à negligência institucional ou discriminação em delegacias, escolas e serviços de saúde. Paula Alegria afirma que podem estar também mais vulneráveis à expulsão de casa ou à violência corretiva.
No caso dos meninos, ela recomenda maior apoio para superar possíveis silenciamentos. “Essa ideia de que meninos devem ser fortes o tempo todo pode inibir a fala e, consequentemente, a escuta. Então, isso dificulta o acolhimento, tanto nas famílias quanto nas instituições.”
Por fim, é importante que adultos estejam atentos para assegurar a construção de espaços que valorizam a voz de cada um, levando em conta suas particularidades e quem são.
Na época, o grande mobilizador da ação “Ciranda da Constituinte” foi o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR). Foi então que surgiu o atual Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (FNDCA), organização que luta pelos direitos dessa população.