Especialistas afirmam: “Já existem leis eficazes de proteção, mas é urgente praticá-las”
Em uma reflexão sobre a situação das infâncias negras no país, especialistas em educação, segurança e saúde pública conversam com o Lunetas sobre o que falta para Estado e sociedade cuidarem de maneira eficaz dos direitos de crianças e adolescentes negros.
“Tivemos mais tempo de processo escravagista do que de pessoas negras vivendo livres em nosso país”, lembra Tainá Alvarenga, assistente social e coordenadora do eixo direito à segurança pública e acesso à justiça, da entidade Redes da Maré. Segundo ela, em um país com desigualdade racial como o Brasil, e que, ao mesmo tempo, possui uma legislação robusta sobre o tema, o que falta é melhorar as políticas públicas, sobretudo para as infâncias negras.
Isso porque, crianças negras não conseguem chegar aos 6 anos de idade da mesma forma do que crianças brancas. É o que explica Mônica Sacramento, pedagoga e coordenadora programática da organização Criola, que defende e promove os direitos das mulheres negras. Entre os obstáculos, estão a desnutrição, doenças evitáveis e falta de acompanhamento adequado no pré e no pós-parto, por exemplo.
Ou seja, há controvérsias na narrativa da democracia racial, como explica Ednéia Gonçalves, socióloga e coordenadora-executiva da organização Ação Educativa. Segundo ela, a ideia de que somos todos iguais, na prática, revela que pessoas negras têm os direitos básicos menos garantidos do que pessoas brancas.
Ao revelarem dados alarmantes sobre essa realidade, Tainá, Mônica e Ednéia contam o que a sociedade civil tem feito para cobrar o Estado, enquanto preenchem os vazios deixados pelos governos federal, estaduais e municipais.
“Um policial entra na casa de uma família, abre a geladeira, tira um iogurte de lá e o espalha todo pelo chão. Depois, ameaça a mãe de violência sexual. Enquanto isso, um cachorro enorme cheira a cama das crianças, que estão ali, observando tudo bem diante de seus olhos”. O relato é um dos muitos de violências cotidianas que a assistente social Tainá Alvarenga ouve trabalhando há anos em favelas da cidade do Rio de Janeiro.
Coordenadora do eixo Direito à segurança pública e acesso à justiça, da entidade Redes da Maré, ela afirma que, frequentemente, as crianças dessas histórias são negras. Por isso, pontua o quanto o fator classe social aprofunda o racismo em um país desigual como o Brasil. Sobretudo, segundo ela, em um contexto em que policiais – servindo ao Estado – deixam de cumprir a função de cuidar da população.
Nesse sentido, ela denuncia a conduta das ações da polícia. Para ela, falar de segurança pública é também falar das interações que os policiais têm com as pessoas, pois isso molda a forma como crianças e suas famílias vivem o dia a dia.
“A polícia aqui usa fuzil ao entrar nas favelas. Acho que é a única no mundo que faz isso. Não tem formação nem experiência para uma maior proximidade com a população, afetando completamente suas rotinas”, explica.
Para Tainá, esses dados poderiam ser menores se a ADPF das Favelas, que visa proteger a comunidade ao restringir os locais para as operações policiais, fosse seguida. Diante desse não cumprimento e da letalidade que não diminui, organizações do terceiro setor, como a Redes da Maré, por exemplo, criam outras estratégias. Uma delas é a Ação Civil Pública da Maré, articulação criada em 2017 para garantir que o direito e as lesões causadas aos moradores das favelas da Maré chegassem até o Poder Judiciário. Dentre as medidas estão:
Em 2020, o STF decidiu restringir as operações policiais nas comunidades periféricas do estado do Rio de Janeiro, permitindo-as apenas em situações excepcionais. Então, foram estabelecidas diretrizes para a atuação das forças de segurança, como a preservação de locais sensíveis (escolas e hospitais), o uso de câmeras corporais e a necessidade de planejamento prévio para minimizar danos à população.
Na conversa com a assistente social fica evidente o entendimento de que o racismo organiza o nosso país. Ela explica que determinados territórios são pensados para reunir maior agrupamento da população negra, colocando-a em situações mais vulneráveis.
“Nove favelas do Rio de Janeiro foram construídas a partir de um planejamento urbano. Ou seja, foi programado para ser como é. O que vemos é que, para o Estado brasileiro, esses territórios servem para receber intervenção policial, mas não para receber políticas públicas de atendimento à população.”
Nesse contexto, ela relata ainda que os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e delegacias especializadas ficam fora das favelas. Alguns são distantes até duas horas das comunidades. E mesmo equipamentos localizados no território podem se tornar inacessíveis de uma hora para outra.
“Às vezes, as pessoas esperam por um ano por uma consulta médica e o seu agendamento cai exatamente no dia de uma intervenção policial. Então ela fica sem essa consulta”, conta.
Dados de evasão escolar mostram que 71,6% dos adolescentes que não completam o ensino médio no Brasil são negros, como mostrou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), em 2023. Ednéia Gonçalves, socióloga e coordenadora-executiva da Ação Educativa, explica que esse número está diretamente associado ao racismo. “Ser negro em uma sociedade que é hostil ao seu corpo e ao que ele representa tem consequências.”
O mito da democracia racial, segundo ela, é o que dificulta a compreensão da gravidade do racismo. Além disso, distorce a percepção de que tal crime influencia a permanência de crianças negras na escola.
Assim, a socióloga nos faz pensar sobre as formas sutis com que o racismo opera. Uma delas, por exemplo, ao não se considerar os saberes africanos e afro-brasileiros na educação formal. Apesar da Lei 10.639/2003 tornar obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira há 22 anos, apenas 29% das secretarias possuem área específica para ajustar os currículos para a lei, conforme levantamento feito pelo Instituto Alana e Geledés.
“Quando a gente não conta a história brasileira falando do quanto a população negra contribuiu para o desenvolvimento econômico e social do país; ou ainda associando pessoas negras à inovação e futuro, o estudante negro — que o tempo inteiro sofre com a estigmatizaçao de seu corpo — terá dificuldade em se perceber como alguém que tem algo a dizer em sala de aula.”
Para Ednéia, a sociedade não pode aceitar migalhas quando se trata de uma mudança cultural — como é o caso da superação do racismo. Isto é, não se pode aceitar que escolas ofereçam uma oficina de capoeira no dia da consciência negra e que isso conte como cumprimento da lei. Assim, ela defende formação nas temáticas étnico-raciais para que toda a comunidade escolar entenda as leis capazes de combater o racismo de fato.
“O racismo também educa e nossa sociedade foi educada por ele para ser discriminatória. Precisamos aprender um outro jeito de existir, que seja antirracista. O antirracismo é uma ação e ela vem depois da tomada de consciência.”
A Ação Educativa idealizou o projeto de pesquisa “Indicadores da qualidade na educação – relações raciais na escola: antirracismo em movimento”. O objetivo é diagnosticar desafios e construir estratégias para enfrentar o racismo no ambiente escolar. O projeto vai aplicar uma metodologia de autoavaliação com a comunidade escolar sobre o quanto as práticas pedagógicas estão alinhadas à Lei nº 10.639. Para gerar futuras ações, convida estudantes, educadores, gestores e famílias a se reunirem em plenárias e grupos de trabalho.
O risco de desnutrição e de morte por causas infecciosas e parasitárias é significativamente maior para crianças negras. Conforme um estudo do Unicef, de 2010, crianças negras têm 25% mais chances de morrer antes de completar um ano do que uma criança branca.
A pedagoga Mônica Sacramento, coordenadora programática da organização Criola, reforça que essas crianças enfrentam condições desiguais de acesso às políticas públicas de saúde e bem-estar, a começar pelo período gestacional.
Mulheres negras representam pouco mais de dois terços das mortes que ocorrem durante a gravidez ou nos 42 dias seguintes ao fim da gestação. É o que aponta o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), de 2022. As informações são do relatório técnico “Saúde da população negra”, uma iniciativa de instituições de políticas de saúde junto ao SUS.
“Crianças negras enfrentam, desde o nascimento até o fim da primeira infância, os mais variados obstáculos para se manterem saudáveis e construírem seus futuros. Já para as pessoas negras, a gestação e o nascimento de seus filhos tornam-se eventos repletos de inseguranças e angústias. Além disso, há exposição desnecessária a riscos de efeitos adversos no parto.”
Assim como os altos índices de mortalidade infantil e no parto, dados sobre saúde mental de pessoas negras também são alarmantes. Em 2016, o risco de suicídio entre adolescentes e jovens negros foi 45% maior comparado aos brancos, conforme o relatório técnico da agenda Mais SUS. O documento informa que, no mesmo ano, a cada dez suicídios cometidos, seis eram por jovens negros.
Mônica aponta que crianças negras, frequentemente, vivenciam situações discriminatórias e violências que abalam sua autoestima e influenciam seu desenvolvimento emocional e social. “O racismo representa uma violência com severos impactos no pleno desenvolvimento das crianças negras, especialmente nos espaços de socialização primária, como a família e a escola”, destaca.
Portanto, para enfrentar o racismo estrutural na saúde integral das crianças negras, ela enfatiza que é essencial “adotar medidas de enfrentamento às desigualdades raciais, garantindo creches em período integral. Isso oportuniza melhores condições para mulheres negras e um desenvolvimento adequado para as crianças.”
A organização Criola leva à frente a campanha “Crescer com cuidado – mobilizar por mais creches”, no Rio de Janeiro. O intuito é conseguir ampliar o número de vagas em creches públicas para que, ao mesmo tempo em que as crianças tenham uma primeira infância saudável e segura, as mães possam conseguir trabalhar, gerar renda e ter mais qualidade de vida.
Mônica lembra que para crianças negras quilombolas ou de terreiro, por exemplo, a situação é ainda mais desafiadora. Muitos lugares sofrem com a falta de unidades de saúde básica, profissionais qualificados e acesso a serviços especializados. Desse modo, ela reforça que “é fundamental a ampliação de espaços de participação popular e controle social, ouvindo os diferentes territórios e incentivando a presença de mulheres negras cis e trans em espaços de decisão”.
“Investir na primeira infância representa ampliar os direitos, a democracia, a justiça e o bem viver, garantindo impactos positivos para toda a sociedade, em especial para as meninas e mulheres negras.”
Entre os compromissos sociais em prol das infâncias negras que devemos assumir, Ednéia, Tainá e Mônica apontam:
– Participar das eleições para Conselhos Tutelares: são as conselheiras e conselheiros tutelares que estarão mais próximas do dia a dia das crianças, executando políticas públicas para proteger as infâncias. É fundamental que essas pessoas ajam de forma antirracista.
– Monitorar orçamentos públicos: acompanhar como os recursos destinados às políticas para as infâncias negras são aplicados garante transparência e fiscalização.
– Romper com o silêncio: diante das múltiplas violências sofridas pela população negra, todas as pessoas devem se manifestar, pressionando o governo e exigindo dele um plano de ação eficaz.
– Mobilizar lideranças comunitárias: com o intuito de garantir representação em debates públicos, a presença de vozes da comunidade em espaços de decisão é crucial.
– Exigir que todos convivam em harmonia: diferentes grupos étnico-raciais no Brasil devem poder conviver em paz, sendo incluídos e respeitados. Portanto, cabe a cada um e a todos nós não compactuar com qualquer manifestação ou política segregatória.
O último boletim “Direito à segurança pública na Maré”, elaborado pelas Redes da Maré com dados de 2023, mostra as consequências das 34 operações policiais ocorridas nas favelas do complexo. Foram 20 a mais do que no ano de 2022.
– 31 registros de tiro (1 confronto entre grupos armados)
– 26 dias sem atendimentos nas unidades de saúde (cerca de 9.500 atendimentos deixaram de ser realizados)
– 25 dias sem aulas em escolas em decorrência da violência armada (em média, são 20 escolas fechadas e cerca de 8.100 estudantes sem aulas por operação policial)