Crianças viram alvo de discursos patriotas da extrema direita

Conteúdos com temáticas patriotas que estimulam os discursos de ódio e até o revisionismo histórico estão cada vez mais perto das crianças; saiba quais os risco

Célia Fernanda Lima Publicado em 06.09.2024
Imagem mostra um adolescente branco de aceblos cacheados em um fundo escuro e usando celular
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Resumo

Crianças e adolescentes estão cada vez mais próximos de conteúdos que estimulam o racismo, a xenofobia e discursos de ódio na internet. Quais os riscos dessas estratégias políticas e ideológicas que muitas vezes vêm disfarçadas de patriotismo?

Conteúdos direcionados a crianças e adolescentes que exaltam o patriotismo, a religião e o conceito de família tradicional não são apenas estratégia política em época de eleições. Como ainda estão em fase de desenvolvimento e não têm senso crítico suficiente para julgar o que recebem na internet, esse primeiro contato com discursos de ódio pode afetar diretamente o comportamento de meninos e meninas.

Segundo Fernanda Bouzan, socióloga e analista da Quid, laboratório de comunicação que pesquisa dados e audiência da cultura digital, essas narrativas têm sempre um ponto em comum: a ideia de pânico moral. Dessa forma, comunica-se que crianças e adolescentes estão em perigo e que, portanto, é preciso protegê-los.

Em artigo do Jornal da USP, Heloísa Buarque de Almeida, professora de antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade do Estado de São Paulo (USP), afirma que, por trás do discurso moral, “dá-se a crescente destruição de direitos e de políticas públicas para as minorias”. Ou seja, a defesa da família tradicional com pai, mãe e filhos restringe vários direitos sociais da população. Isso tudo em um país onde há 11 milhões de mães solo e mais da metade dos domicílios tem as mulheres como principais provedoras (a maioria mulheres negras e da periferia).

Na mesma linha, Bouzan explica que “os discursos que valorizam a diversidade e visões positivas sobre identidades de gênero e sexualidade são vistos como ameaças pela extrema direita”. Já para Edson Kayapó, historiador indígena e doutor em educação, o contato precoce com o conservadorismo presente nas redes sociais e outras plataformas digitais estimulam a xenofobia e até atos violentos contra grupos sociais, como os povos originários, afro-descendentes, LGBTQIA+, pessoas pobres e imigrantes, por exemplo. “No final das contas, crianças e adolescentes aprendem a ser intolerantes. Aprendem também a ter ódio e se acostumam a não tratar quem é diferente como humano. E essa postura não é natural; é ensinada.”

Discursos patriotas também se infiltram em conteúdos infantis

Com “a missão de resgatar os bons valores, ideias e sentimentos no coração de todos os brasileiros”, a série de animação “Pindorama” é um exemplo de como os discursos patriotas chegam às crianças. Apesar de se propor a “contar a história do Brasil” para esse público, segue destacando principalmente os portugueses como “grandes heróis”.

Para Edson Kayapó, esse tipo de conteúdo “mantém um discurso retrógrado e autoritário de que há uma ‘descoberta’ do Brasil pelos europeus, responsáveis pela civilização”. Ou seja, “existe um processo de apagamento porque se reforça a ideia de descobrimento para o que foi uma invasão portuguesa. E também da chegada dos europeus como a chegada da civilização”. Apagar os contextos de violência contra os povos originários seria, portanto, “mais uma forma de justificar os projetos de genocídio de povos indígenas que sofrem violências desde 1500″.

Da mesma forma, além de esconder o genocídio, o racismo e legitimar as diversas violências históricas, ele alerta para a questão do revisionismo histórico. “Essa ação coloca a todo o momento homens brancos, cristãos e patriarcalistas como heróis”. Isso é, então, um desfavor aos povos originários e à própria história, explica. “É preciso contar que também houve processos de independências alternativas, como as revoluções no nordeste e a Cabanagem no Pará, por exemplo. Assim, se pode trabalhar outras visões sobre a construção social do país, em especial aquelas movidas por forças populares.”

De acordo com Fernanda Bouzan, “a ideia é disseminar a visão conservadora sobre a história do país desde a mais tenra idade”. Assim, “ao não problematizar as marcas da colonização e o legado da formação social brasileira, como o racismo”, o principal risco é afetar “o entendimento das crianças e dos adolescentes sobre a história de seu país”. Conforme explica, “atualmente, um dos carros-chefes da comunicação conservadora do país é uma produtora de conteúdo que gasta milhões por mês em mídia paga”. Foram investidos mais de R$ 300 mil em junho para impulsionar seus conteúdos, conforme consta na biblioteca de anúncios da Meta.

Como famílias e escolas podem combater esses discursos?

“Volta para a tua terra” foi a frase que um aluno português falou para um colega brasileiro, conforme reportou a organização “Aos Fatos”. Ao ser questionado onde aprendeu aquilo, o estudante mostrou o celular ao professor e contou que foi no Tik Tok. Também em Portugal, vídeos que criticavam a presença de imigrantes asiáticos apareciam como a quinta sugestão de conteúdo na conta de uma adolescente.

Aliás, na Europa, personalidades políticas da extrema direita produzem vídeos curtos com a intenção de atrair os mais novos. As temáticas vão desde imigração em seus países até questões de gênero e guerra na Ucrânia. O resultado mais recente do parlamento da França comprovou o avanço dessas estratégias. A campanha massiva de Jordan Bardella, de 28 anos e quase dois milhões de seguidores no Tik Tok quase o tornou primeiro-ministro do país.

Além de conteúdos políticos com teor racista e xenófobo, Fernanda Bouzan comenta como a criação de canais em aplicativos de mensagens (Telegram, WhatsApp, Discord) escapa de mecanismos de moderação e filtragem. “Assim, representantes de grupos extremistas veiculam propaganda de ódio para jovens. Inclusive ensinando a produzir explosivos e manifestos terroristas.” Portanto, ela recomenda prestar atenção ao que crianças e adolescentes estão consumindo na internet. Outra questão é responsabilizar as plataformas pelos conteúdos veiculados.

Contra essa onda conservadora, a socióloga sugere ainda apresentar “narrativas que ampliem o pensamento crítico e estimulem o respeito pelas diferenças”. Além disso, leis como as 10.639 e 10.645, que tornam obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, são outros caminhos. “Isso valorizar os saberes e as perspectivas dos diversos grupos que compõem nossa sociedade”. Segundo ela, ao oferecer uma visão unilateral do mundo e tratar a diversidade como uma ameaça, a extrema direita silencia o debate e o encontro de opiniões distintas. Essas ações poderiam ajudar a reduzir preconceitos.

Outro ponto para aplacar conteúdos conservadores na internet é a “educação cibernética”. Presente em escolas de Pernambuco, Bahia e Distrito Federal, a disciplina eletiva “Cidadania digital”, por exemplo, desenvolvida pela SaferNet em colaboração entre os governos do Brasil e do Reino Unido, traz aulas sobre direitos e deveres nos ambientes digitais, fake news e segurança digital contra crimes virtuais, além de cursos on-line para educadores.
A educação cibernética pode também ajudar a identificar o chamado “racismo algorítmico”. Uma ação digital que contamina o que é entregue para crianças e adolescentes, e associa conteúdos sobre diversidade a temas negativos. Esta semana, ao pesquisarem a palavra “negra” ou “beleza negra” no Instagram e na Threads, influenciadores negros denunciaram que as plataformas disparavam um aviso associando as palavras a conteúdos sobre drogas ilícitas. Responsável pelas redes sociais, a Meta se desculpou afirmando ter sido um “problema técnico” já resolvido. No entanto, organizações de luta antirracista afirmam que o ocorrido reforça a existência do racismo algorítmico.

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