Os Jogos Olímpicos resgataram o sentimento de patriotismo. Como explicar às crianças a diferença entre torcer com respeito e não estimular discursos de ódio?
Torcer e vibrar com as conquistas no esporte fortalece o "orgulho de ser brasileiro". Mas até que ponto o patriotismo exagerado pode ser benéfico para as crianças?
Foi a primeira vez que Heitor, 4, acompanhou os Jogos Olímpicos. A curiosidade se dividiu entre as modalidades esportivas, os atletas e os outros países participantes. Afinal, do futebol ao tênis de mesa, do vôlei à ginástica artística, a disputa por medalhas faz o “orgulho de ser brasileiro” contagiar também as crianças.
Torcendo junto do filho em casa, Sabrina Adão, que é também psicóloga, o apoiou inclusive se ele escolhia torcer para outros países “por causa da cor do uniforme do atleta”, diz. “Ele esteve muito livre porque é criança e a gente se divertia com essas escolhas. Foi muito gostoso porque ele ficou curioso e pedia para ver os países no mapa.”
Ao mesmo tempo, ela tentou equilibrar a empolgação aproveitando para começar algumas conversas sobre frustração e respeito aos adversários. “A gente torce, mas sempre observando para não passar do ponto, pois somos exemplos para ele. Então, se ganhamos, vibramos. Mas, se perdemos, mostramos compreensão.”
Isso porque “torcer nas Olimpíadas ou em outros eventos esportivos desperta um orgulho principalmente nas vitórias”, afirma Marco Antonio Bettine, pós-doutor em Sociologia do Esporte e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Mas, conforme questiona, “e quando os atletas ficam em quarto lugar ou não vencem?”
Nesse momento, Bettine recomenda “tomar cuidado com a palavra orgulho”. Para ele, na maioria das vezes, esse sentimento acaba “comprado” segundo os interesses de grupos poderosos. “O orgulho de ser brasileiro não deveria ser explorado pelas mídias nem potencializado pelas indústrias do comércio esportivo”, defende, porque “esse valor não reflete a realidade de todos”.
“Um orgulho pontual não constrói, a longo prazo, um benefício direto para a população”
Ufanismo diz respeito “a atitudes de quem se orgulha de algo com exagero”, define o professor Marco Antonio Bettine. De acordo com ele, isso geralmente evidencia um patriotismo excessivo em época de Jogos Olímpicos, por exemplo. Desse modo, quando alguém é contagiado por esse sentimento, falta senso crítico a respeito de outras questões sociais, diz.
Para formar torcedores conscientes desde a infância, a sugestão dele é apontar para crianças e adolescentes de maneira simples, em casa ou nas escolas, as consequências do ufanismo. “É importante dizer que podemos exaltar os feitos da nação, um atleta ou um time. Mas, ao mesmo tempo, exaltar e respeitar os atletas de outros países. Isso porque, no esporte, não há um antagonista, mas agonistas, que são aqueles que disputam junto, que dialogam e inspiram.”
Quer melhor exemplo do que a relação entre as atletas Rebeca Andrade e Simone Biles? Enquanto insistem em colocá-las como rivais na ginástica artística, elas se mostram adversárias que se respeitam e se aplaudem a cada conquista, comenta o professor.
“É positivo celebrar também as outras vitórias e não cair nos discursos de ódio”
Embora vibrar pelo país possa inspirar um sentimento de representatividade, o exagero costuma trazer o risco de um pensamento rígido de que há apenas uma identidade nacional exemplar. Portanto, quem não se encaixar nesse perfil, pode ser considerado um “invasor”, o que fomenta a xenofobia. “Um dos problemas do ufanismo é que ele vive de extremos.”
Nesse sentido, na realidade dos estudantes, estimular o ufanismo, “é preocupante porque a criança pode achar que, se ela tiver boas notas é a melhor da turma, mas quando tira alguma nota ruim, pode se achar a pior”. Portanto, o pesquisador defende exaltar o país fora do eixo das competições esportivas, mas também quando nossos cientistas ou nossas escolas ganham prêmios, por exemplo.
A slammer Jéssica Costa fala sobre o sentimento de ser brasileiro durante as Olimpíadas. No poema, ela ressalta que tem é dó “de quem nunca vibrou com fadinha nas pistas, não comemorou com Rebeca Andrade no pódio, não sorriu junto com Flávia na trave, não discordou que Medina era pódio desde a primeira foto, quem não sorria com Bia e a família e Rafa com sangue nos olhos”. Por outro lado, os aplausos não devem ficar restritos ao pódio. “Achar que somos os melhores do mundo pode passar a ideia de que, quando o atleta perder, ele pode se achar o pior do mundo, quando na verdade não é”, afirma Bettine.
Sem ainda conhecer a competitividade, Sabrina Adão sabe que é a reação dela e do marido que servirá de exemplo para Heitor aprender a lidar com essas situações. Por isso, quando ele viu um atleta brasileiro errar, “mesmo aflitos, dissemos que estava tudo bem e que todo mundo erra”, conta.
Para a psicóloga, também é importante ensinar às crianças o valor de fazer parte de uma torcida respeitosa. Isto é, que torce para a vitória ao invés de torcer para a derrota do outro. Assim, para combater o ufanismo, Sabrina enfatiza que uma das formas é “refletir junto das crianças que ninguém é bom em tudo. É possível destacar “que existem países que são melhores em determinados esportes, que todos os atletas se dedicaram muito para estar ali e já são vitoriosos de alguma forma”.
Segundo ela, eventos competitivos também são uma boa oportunidade de explorar com as crianças conceitos como respeito a outras culturas, empatia e justiça. Então, a psicóloga propõe três exercícios:
“Na minha casa não tinha esportistas, mas a gente torcia muito. Nos reuníamos entre primos, tios, vizinhos, usávamos camisetas do Brasil… A memória que tenho são de momentos felizes, de admiração pelos atletas e de comemoração”, finaliza Sabrina.
Desse modo, é preciso pensar também quais memórias as crianças levarão dessa experiência. A medalha de ouro certamente vai para quem torce pelo próprio país de forma saudável, sem desrespeitar nenhum atleta ou torcida adversária, prevalecendo o espírito esportivo sempre no pódio.
A palavra “ufanismo” deriva da expressão do livro “Porque me ufano do meu país”, de Afonso Celso, que escreveu sobre a superioridade brasileira, em 1990. A partir disso, pesquisadores começaram a usar o termo para descrever a exaltação exagerada da pátria por um grupo social ou por um indivíduo. Nesse sentido, o patriotismo ufanista está ligado a regimes totalitários, que incentivam a xenofobia.