Como ‘virar o jogo’ da pouca criatividade entre as crianças? 

Reverter a falta de estímulo e a redução das atividades lúdicas pode mudar os baixos índices de criatividade entre os estudantes brasileiros

Célia Fernanda Lima Publicado em 17.07.2024
imagem de capa para matéria sobre criatividade crianças mostra um menino branco, de cabelos longos segurando um ukulelê em uma aula de música
OUVIR

Resumo

Pesquisas afirmam que as crianças perdem o potencial criativo com o passar dos anos. Mas, o que há por trás dessa queda e o que fazer para reverter essa realidade?

Brincar de criar é um dos passatempos preferidos dos irmãos Leon, 11, e Enzo, 9. Eles inventam personagens para um jogo, escolhem os super-poderes, desenham as roupas e até escrevem histórias em quadrinhos. Tudo isso com o incentivo da mãe, a ilustradora e artista visual Cinthia Saty.

“Fico toda orgulhosa vendo eles imaginando e criando porque, desde que me entendo por gente, eu também desenhava e criava histórias. Sempre tive à disposição papel, canetas, assistia desenhos animados e ganhava de presente livros e quadrinhos. Isso era um baita exercício de imaginação”, lembra.

Autora da tirinha “Maternidade sincera”, ela sabe da importância da criatividade para o seu trabalho e tenta estimular os meninos. “Em casa não falta material para desenhar, mas também deixo massinha, telas, tintas e pecinhas de madeira, por exemplo, para que eles fiquem livres para brincar do que quiserem.”

É também em momentos de ócio que a engenheira Luciane Nogueira observa a criatividade dos filhos – João, 12, Joaquim, 11, e José, 6. “Mesmo eles achando que estão entediados por alguns minutos, logo procuram algo para fazer. Inventam brincadeiras, desenham, escrevem, pintam, constroem algo e se sujam ao ar livre”, conta. Mãe de três, a rotina precisa ser certeira: escola de manhã, atividades esportivas à tarde e, depois, o tempo livre para brincar em casa, equilibrando brinquedos, telas e o quintal. Aliás, a mãe faz questão que os meninos acessem todos os dias esse espaço da casa, onde podem ser apenas crianças, sem nenhum compromisso.

Segundo a pesquisadora Martina Leibovici-Mühlberger, responsável pelo estudo Buenos Días, Creatividad, as crianças nascem “com uma incrível capacidade de aprender, pensar e interagir com o mundo de forma criativa”. Porém, apenas 2% das pessoas demonstram a mesma capacidade na idade adulta. Em contrapartida, o Fórum Econômico Mundial reconheceu o pensamento criativo como a segunda habilidade mais demandada pelo mercado, em 2023. De acordo com a pesquisa, 60% das empresas consideram a criatividade uma habilidade essencial para o trabalho.

Diante disso, como formar adultos mais criativos se cada vez há menos espaço para a criatividade mesmo durante a infância? Cinthia tem uma pista. Ela revela que toda vez que precisa explorar sua criatividade no trabalho tenta “recorrer às memórias da infância”, quando vivia entre livros e quadrinhos, e recebia estímulo da família para ler mais.

O que há por trás dessa queda da criatividade?

Segundo Leibovici-Mühlberger, fatores como “a comparação entre as crianças, classificação de cada conquista, processos de avaliação, críticas e o sentimento de culpa” são responsáveis pela perda de até 70% das capacidades inatas da criatividade. Ela explica que o potencial criativo passa, então, a ficar “adormecido”.

Nesse sentido, família, escola e até o próprio Governo podem ser os principais responsáveis pela queda criativa das crianças. Isso porque os fatores apontados pela pesquisadora se relacionam diretamente com a vida social e escolar, principalmente se as crianças tiverem pouco acesso a políticas culturais e artísticas.

“As atividades lúdicas auxiliam na expressão dos sentimentos e das necessidades das crianças”

Por isso, segundo a pedagoga e orientadora Sthefany Rodrigues, “se a escola não tiver boas propostas educativas e faltar à criança estímulo e políticas públicas para as expressões artísticas, fica ainda mais difícil acessar o direito à arte e cultura”. Outras justificativas envolvem “o excesso de cobrança, a busca pela perfeição e pela produtividade constante, assim como a adultização precoce.”

Os dados mais recentes do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) evidenciam o impacto desses fatores no potencial criativo dos adolescentes. De acordo com a avaliação, mais da metade (54%) dos alunos brasileiros de 15 anos possuem baixo nível de criatividade. Isso porque “apresentam ideias óbvias e têm dificuldades em propor mais de uma solução para um problema”.

Nos 81 países participantes do Pisa, os alunos com maior status socioeconômico tiveram melhor desempenho em pensamento criativo do que os menos favorecidos. Em média, a diferença foi de 9,5 pontos. As meninas tenderam a ser mais criativas que os meninos – 31% delas e 23% deles conseguiram atingir o nível 5 de proficiência (considerado alto).

A idade é outro fator que influencia. Ou seja, se por um lado as crianças são altamente criativas, por outro, os adolescentes apresentam uma queda drástica dessa habilidade. No livro “How Creativity Works”, o neurocientista americano Jonah Lehrer mostra que, enquanto 95% dos alunos no segundo ano são criativos desenhando, pintando e criando histórias, o índice entre os alunos do quinto ano cai para 50%. Já no ensino médio apenas 10% são considerados alunos criativos.

“Os alunos mais novos, geralmente, são mais espontâneos. Eles têm uma imaginação vívida, menor autocrítica e timidez. No entanto, os alunos mais velhos tendem a ser mais críticos e tímidos, o que acaba limitando a criatividade”, observa a professora de redação Betânia Neves. Ela diariamente está em contato com a escrita criativa de estudantes do ensino fundamental e médio.

Assim, apesar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) incluir o “pensamento científico, crítico e criativo” como uma das competências para o ensino básico, nem sempre a realidade permite desenvolver o que o documento propõe. “Vejo que a principal dificuldade dos alunos no ensino médio tem a ver com a gestão do tempo e a carga de estudos. Afinal, eles enfrentam a pressão de se preparar para vestibulares e exames finais, equilibram atividades extracurriculares, trabalhos escolares e, muitas vezes, responsabilidades pessoais ou profissionais”, enumera a professora.

Image

reprodução Pisa 2023

Questões do Pisa avaliaram a capacidade criativa dos estudantes em criar desenhos temáticos, diálogos entre personagens, títulos para obras de arte e solução de problemas cotidianos.

Image

reprodução Pisa 2023

Uma das questões propõe a criação de um diálogo entre o sol e a lua.

Image

reprodução Pisa 2023

Estudantes que deram títulos simples ou óbvios demais para a imagem desta questão tiveram menor nota.

Como trabalhar a criatividade de forma contínua?

Os resultados do Pisa levantaram a questão de como estimular crianças e adolescentes a serem mais criativos. Além disso, fez especialistas observarem o percurso que leva os estudantes a baixarem seus índices de criatividade. Segundo Patrícia Mota Guedes, superintendente do Itaú Social, que desenvolve projetos para fortalecer a educação brasileira, os anos finais do ensino básico praticamente apagam as atividades lúdicas. Em nota, ela cita como “uma maior fragmentação das aulas com disciplinas específicas” pode trazer um desafio para “a oferta de atividades e projetos que exigem mais tempo e maior exercício de criatividade do estudante”.

As famílias também notam essa diferença. Para Luciane, que precisa acompanhar a rotina escolar em três etapas diferentes, “parece que existe uma parede enorme que separa a educação infantil do ensino fundamental”. Ela percebe que as tarefas criativas e artísticas diminuem bastante a cada ano. “É como se, de uma hora pra outra, a criança tivesse que amadurecer. Isso pesa principalmente em relação à cobrança com o dever de casa e provas.”

Já a percepção de Cinthia ainda é otimista. Na escola de tempo integral onde Leon e Enzo estudam há “pelo menos duas aulas de artes por semana e eles exercitam muito com desenhos. Mas, ano que vem, o Leon vai para o sexto ano e precisará mudar de escola. O ritmo pode mudar um pouco por isso”, conta.

A pedagoga Sthefany Rodrigues também defende que “a escola mantenha, após a educação infantil, o olhar integral para a criança, e planeje atividades que promovam a curiosidade e liberdade de exploração”.

Image

Aquivo pessoal

Para estimular a criatividade dos filhos Leon, 11, e Enzo, 9, a ilustradora Cinthia Saty deixa sempre disponível materiais de pintura e desenho. Os meninos adoram criar personagens e fazer histórias em quadrinhos.

Image

Arquivo pessoal

A engenheira Luciane Nogueira sentiu a diferença da capacidade criativa entre os filhos João, 12, Joaquim, 11, e José, 6, com a transição do ensino infantil para o ensino fundamental.

Menos telas, mais arte, cultura e educação

O acesso à leitura e a qualquer outro tipo de expressão artística e cultural fazem diferença para um bom desempenho escolar. Conforme mostrou o Pisa, estudantes que participam, ao menos uma vez por semana, de atividades relacionadas às artes, ao teatro ou à escrita se saíram melhor na avaliação.

Ao mesmo tempo, a professora Betânia Neves percebe entre seus alunos que “a falta de leitura e de atividades ligadas às artes influenciam de maneira significativa no bloqueio criativo”. Para ela, essas atividades “ampliam os horizontes, pois estimulam a imaginação, expandem o vocabulário, e melhoram a capacidade de pensar e criar novas conexões”.

No entanto, manter o interesse pela leitura ainda é um desafio, conforme diz a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro. As pessoas entre os 5 e 13 anos são as que mais lêem, sendo que os pré-adolescentes atingem o topo do ranking. Além disso, a pesquisa mostrou que 48% das crianças disseram que a motivação é porque “gostam de ler”. Porém, dos 18 aos 24 anos, o hábito de leitura cai e o motivo mais frequente é “a falta de tempo”.

Luciane assinou para os filhos um clube de livros e lê para eles desde bebês. “Certamente isso ajuda muito na hora de criar”, diz. Mas, enquanto seus filhos mais velhos, que tiveram a primeira infância longe das telas, gostam de criar jogos de tabuleiros e desafios de cartas de baralho, o menor, que teve acesso ao celular mais cedo, precisa sempre de um “empurrãozinho” para exercitar a criatividade. “Apesar de eu controlar o tempo, sinto que preciso de mais esforço para ativar o modo criativo do José. Mesmo ele sendo o menor, percebo que o mundo da imaginação dele é mais limitado em relação aos dos irmãos.”

Nesse sentido, a pedagoga Sthefany Rodrigues reforça que “o uso excessivo da tecnologia dificulta as relações sociais e gera o desinteresse por ambientes livres”. Por isso, ela sugere que as crianças tenham tempo para atividades que despertem suas curiosidades. “Isso envolve a relação com elementos da natureza, materiais desestruturados, tempo de qualidade de convivência com os adultos de referência e seus pares, assim como passeios em parques, museus e cinema”.

Além disso, a criatividade:

  • Diminui o estresse e a ansiedade
  • Facilita a resolução de problemas
  • Aumenta a autoestima 
  • Estimula o aprendizado constante

Fonte: Talentos Instituto da Criança

Como exercitar a criatividade na infância?

Conforme mostrou o questionário aplicado pelo Pisa, os próprios alunos afirmaram ser importante o incentivo dos professores e a valorização da criatividade em projetos escolares. Em casa, mesmo que de maneira menos estruturada, é possível incentivar a criatividade com pequenos gestos. Isso envolve principalmente o tempo de qualidade que os adultos passam com as crianças. No mesmo caminho, é possível estimular que tenham oportunidades de exercitar a imaginação sozinhos.

Outras estratégias:

  • Mantenha o diálogo: conversar com a criança é o momento de responder os porquês e fazer novas perguntas para estimular seu raciocínio e pensamento crítico e lúdico
  • Incentive a leitura: leia historinhas, mostre as figuras nos livros, conte curiosidades sobre o autor ou personagens conhecidos e seja exemplo, isto é, leia também o que te interessa
  • Promova o acesso a diferentes expressões artísticas: disponibilize material para pintar, desenhar, ouvir música, dançar e brincar com instrumentos, ou até ajude-os a promover saraus e exposições de pinturas
  • Faça passeios que estimulem os sentidos: visite bibliotecas, museus, teatro, circo, cinema e locais com programações infantis e ocupe espaços como jardins e praças públicas
  • Aumente o contato com a natureza: deixe a criança explorar cheiros, texturas, cores, conhecer paisagens e brincar com os animais de maneira segura
  • Ofereça uma atividade física: seja um esporte ou uma simples caminhada ou pedalada ao ar livre
  • Brinque de maneira analógica: use materiais visuais e palpáveis, como filmes, sólidos geométricos, dê exemplos com brinquedos, mas vale também mímica, desenhar com papel e caneta, jogos de tabuleiro, esconde-esconde
  • Reduza o tempo de telas: isso diminui a ansiedade, o alto estímulo e a repetição de respostas imediatas

Leia mais

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS