A pressão pelo cancelamento de um texto literário leva ao risco de apagar o que não desejamos mais ver, negando assim sua existência em nossa história
O livro infantil tem sido alvo de cancelamento e alguns autores já sofreram linchamentos virtuais. Quando a censura recai sobre obras clássicas, há o risco de apagar o que não desejamos mais ver, mas que reflete uma época.
A produção editorial para crianças tem se tornado um alvo constante de cancelamento nas redes sociais e em grupos de WhatsApp. Clássicos da literatura infantil, como “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, ou livros como “Aparelho sexual e cia.“, do suíço Zep, por exemplo, foram criticados por defensores de diferentes pautas morais.
Trata-se de um tipo de censura diferente da sofrida na ditadura política, quando havia um órgão formal responsável pelo controle de conteúdos veiculados por livros e outras mídias. Naquele tempo, livros infantis costumavam receber pouca atenção, permitindo a autores como Ruth Rocha driblar os censores. Agora, as motivações estão associadas tanto a visões políticas que desejam manter a norma quanto àquelas que desejam estabelecer uma nova norma.
Com a intensificação desse policiamento dos clássicos da literatura infantil por adultos, que se assemelha a um movimento de cancelamento da obra e linchamento dos autores, omercado editorial é pressionado a se posicionar. Mas, em vez de propor uma reflexão acerca do contexto sócio-histórico dessas obras, a resposta de quem vende livros infantis na cultura do consumo está alinhada a manter um bom histórico de vendas. Ou seja, alinhada a quem tem o poder de decisão de compra, que são pais ou cuidadores, não as crianças.
Pepe Mujica, ícone da esquerda latino-americana, nos alerta sobre como nossa sociedade caminhou não para a emancipação de cidadãos críticos, mas para a formação de consumidores.
Para atender ao desejo de uma parcela significativa de mercado por uma nova norma, esse movimento vem acontecendo com força em dois tipos de narrativas: aquelas que atendem a um público de massa, como os livros de Agatha Christie ou os filmes da franquia 007, ou em produções direcionadas à infância, como obras clássicas de Monteiro Lobato que são revisadas para suprimir trechos racistas, e livros estrangeiros, como os de Roald Dahl, para suprimir trechos hoje considerados gordofóbicos e machistas.
Não há um movimento revisionista na obra de Machado de Assis. Ou na produção literária de Nelson Rodrigues. E isso não apenas pela impossibilidade de se alterar o texto de uma obra sem corromper a sua própria matéria-prima, a linguagem, mas porque pressupõe-se que os leitores desses livros sejam idealmente críticos o suficiente e teriam condições de compreender passagens racistas, machistas ou homofóbicas dentro do contexto sociocultural da época em que essas obras foram publicadas. Inclusive para se conhecer a realidade de determinado período, em vez de apagá-la.
Ao apagar um trecho de uma obra literária, há o perigo de negar parte da nossa história.
Por um lado, é extremamente significativo e importante que o racismo presente em obras como as de Lobato seja hoje considerado ofensivo e perigoso. Foi uma longa jornada até tal conscientização. Porém, seria o caso de censurar trechos da obra, apagando uma realidade cruel que não desejamos mais ver? Ou o melhor seria lê-la com a mediação de um adulto, para auxiliar as crianças a compreenderem o contexto em que foram escritas?
Em um país onde 30% da população é analfabeta funcional, há mediadores suficientes com competência para realizar essa contextualização?
Talvez os editores precisassem reconhecer que o mundo está em constante transformação, que alguns livros infantis podem envelhecer mais rapidamente e que a solução seria, como propõe Philip Pullman, simplesmente parar de publicá-los – como se fosse factível o mercado ignorar as vendas dessas obras.
Pesquisadores como Jack Zipes demonstram como versões de um mesmo conto, ao serem reescritos e republicados, podem validar ou questionar as visões vigentes daquela sociedade. É por isso que vemos contos de fadas serem considerados “perigosos” e subversivos para crianças, de acordo com alguns grupos políticos e religiosos, ou alinhados à promoção de suas normas e convenções, em outros momentos.
O revisionismo na literatura pode parecer uma grande novidade, uma vez que se trata de reescrever textos clássicos, e clássicos seriam intocáveis. Mas, na literatura infantil, a censura e essa reescrita sempre estiveram presentes, com duas diferenças importantes: elas em geral buscam manter normas e acontecem antes de a obra ser publicada.
Enquanto hoje há o leitor sensível, que revisa trechos ofensivos a determinados grupos historicamente oprimidos, o movimento censor dos livros infantis sempre aconteceu nos bastidores, junto ao poder econômico do próprio mercado, sugerindo ou mesmo impondo cortes aos autores do texto, negando-se a publicar obras que abordassem temas considerados mais delicados ou ousados para as pessoas daquela época.
Não à toa há tão poucos livros infantis com ilustrações que representem determinados povos indígenas nus – que nunca usaram tanguinha vermelha para cobrir a virilha. Ou tão poucas obras, num país de maioria negra e parda, em que orixás são protagonistas – apesar de “A arca de Noé”, de Vinicius de Moraes, ser um sucesso editorial. Ou livros infantis que apresentem explicitamente casais homoafetivos – mesmo que seja comum vê-los caminhando de mãos dadas na Avenida Paulista.
A infância, historicamente, costuma ser censurada por um ponto de vista conservador, para restabelecer a norma vigente. Aparentemente, está agora sofrendo censura também por um olhar progressista, em busca de uma nova norma.
Somos todos censores, diz Perry Nodelman, professor emérito na Universidade de Winnipeg, no Canadá. A censura acontece na própria curadoria, a partir do momento em que se decide publicar um texto em detrimento do outro. Ela acontece no processo de edição, ao se propor determinadas mudanças em um texto. Ela acontece ao decidir qual livro a criança irá ler.
A censura sempre, sempre, acontece quando a obra passa a ser considerada “perigosa” para a infância.
* Renata Nakano é idealizadora e diretora geral do Clube de Leitura Quindim. É mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, possui MBA em Gestão de Negócios pelo IBMEC, e é bacharel em Comunicação Social pela UAM. Há 20 anos no mercado editorial, seu foco é em literatura infantil. Como pesquisadora, foi premiada com bolsa da International Youth Library em Munique, biblioteca de maior acervo de LIJ do mundo, além de editar relevantes obras teóricas da crítica internacional no Brasil.
** Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
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