Construir relações de confiança com os filhos é o desafio compartilhado nos filmes “Aftersun”, “Red - Crescer é uma fera” e “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”
Nos filmes “Aftersun”, “Red - Crescer é uma fera” e “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”, a criação de vínculos entre pais e filhos pré-adolescentes é um fator comum entre as narrativas. Como essas relações encontram espelhos em histórias reais?
Relações familiares vão se fragmentando e os vãos geram distâncias cada vez maiores – às vezes intransponíveis – à medida que os filhos crescem e passam a descobrir o mundo lá fora. Como acertar esse descompasso e evitar desencontros entre pais e filhos? Três filmes recentes exploram conflitos intergeracionais e como o estranhamento de alguém tão próximo pode acabar determinando a história da família. “Aftersun”, de Charlotte Wells; “Red – Crescer é uma fera”, de Domee Shi; e “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”, de Daniel Kwan e Daniel Scheinert, trazem, cada um a seu modo, dinâmicas familiares nem sempre fáceis, marcadas pelas trocas entre pais e filhos adolescentes.
Embora não se restrinja à questão da relação com os pais, o gênero chamado de “coming of age” ou “histórias de crescimento” pode nos ajudar a refletir sobre o conceito de adolescência e do que é ser adolescente com o uso de metáforas, ficções e dramas, “e isso nos permite uma compreensão da questão a partir de um outro ponto de vista, ampliando o que entendemos pelo ‘nosso lugar’”, diz Cesar Castanha, crítico de cinema e doutor em comunicação.
Nestes três filmes, “a gente percebe que trocas culturais, diferenças de sexualidade e de gênero cumprem um papel importante para evidenciar essas questões”, continua Castanha. “Em ‘Red’ e ‘Tudo em todo lugar ao mesmo tempo’, conhecemos histórias de famílias de imigrantes chineses e do leste-asiático nos Estados Unidos, um ponto de vista que não aparecia com tanta frequência em grandes produções”, diz. “Já em ‘Aftersun’, apesar de também abordar a relação entre o pai e a filha pré-adolescente, o filme se aproxima mais da ficção autobiográfica”, explica o diretor.
Meilin, protagonista de “Red – Crescer é uma fera”, é uma jovem de 13 anos expansiva e confiante, mas só fora de casa. Sob o olhar da mãe, sente medo de mostrar quem é de verdade, escondendo seus gostos e sua personalidade. Enquanto Meilin se transforma em um panda vermelho ao sentir as fortes emoções da puberdade e busca trilhar seu caminho sem depender da aprovação materna, Ming, a mãe, repete o padrão aprendido com sua própria mãe, mostrando como os conflitos se repetem por gerações.
“Quando fica evidente que os filhos têm essa vida privada, os pais podem sentir receio de compartilhar demais e perder o poder. Isso gera um choque enorme”, diz Leonardo Piamonte, psicólogo e especialista em paternidade e relações familiares. Ele explica que “o pré-adolescente ou o adolescente é uma ‘pessoinha’ que costuma entender muito bem as dinâmicas de poder estabelecidas no seu lar, que passou os últimos 13 ou 15 anos observando meticulosamente o funcionamento da casa, quem é quem nas relações e o que ele pode ser nesse conjunto”, mas que, depois da fase de observação, “o desabrochar dessa ex-criança acontece fora de casa e a validação vem pelos pares, pelas influências externas”, diz. “O nosso trabalho é mais de fazer uma curadoria do que esse adolescente traz do que propriamente ensinar alguma coisa”, conclui.
“A adolescência não ocorre do nada, ela é a consequência de uma infância e seus aprendizados”
Muitas vezes, o medo nas trocas entre pais e filhos também rege a dinâmica da relação entre Lice Calixto e a filha caçula Manuella, 11. “Quando acontece algo e eu vou conversar, ela escuta, mas às vezes não fala comigo, diz que fica com medo de eu brigar, ou que eu não entenderia. Então argumento que, mesmo parecendo brava, estou ali para ouvi-la”, diz a mãe. Em outra situação, quando Manu foi acusada injustamente de ter falado mal de outra menina e disse não ter se defendido “porque a menina já tinha prints da conversa”, o aprendizado foi de que “ela não precisa concordar com tudo para ser aceita em qualquer lugar”, divide Calixto.
Ela, que também é mãe de Gustavo, 14, e Matheus, 22, relata que os maiores ensinamentos repassados aos filhos éque eles vão ter que lidar com as consequências de seus atos, “mas eu estarei ali junto com eles” e, “se alguém incomodar o coração deles por qualquer razão, isso pode ser sinal de que não é uma amizade de verdade”, diz. Apesar dessa proximidade, Calixto comenta que, “mesmo falando abertamente, dando espaço e deixando os filhos à vontade, parece tipo um efeito rebote, às vezes sinto que eles ficam com receio de algo e se fecham em me dizer alguns assuntos.”
“Durante milênios, a parentalidade foi entendida como uma relação de propriedade e poder. Os pais sabem cada passo do filho, enquanto os filhos não podem, nem devem, questionar seus pais, mesmo que estes sejam, em ocasiões, violentos, arbitrários e claramente imaturos”, comenta Piamonte. Para o psicólogo, decidir as coisas para os filhos, por exemplo, é um poder que pertence ao adulto, “mas nem por isso, ele deve se mostrar como uma autoridade distante que não possa dizer ‘não sei’ ou ‘perdão por ontem, me excedi”, explica.
No cinema, essa dificuldade de comunicação fica cada vez mais evidente à medida que Sophie, a pré-adolescente de 11 anos do filme “Aftersun”, cresce e vai se distanciando do pai, Calum, um homem enigmático e inacessível, durante uma viagem de férias. O pouco que ela conhece dele, na vida adulta, se deve aos registros das férias guardados em uma máquina de filmar.
Ao contrário de Sophie e Calum, comunicação nunca foi um problema para Ivone, mãe de Rafaela, 13, Fabrício, 20, e Gustavo, 24. Ela relata que os filhos sempre compartilharam quase tudo com ela, que também se sente confortável em compartilhar sua vida com eles, principalmente com a caçula: “Desde a primeira infância falo que eles podem confiar em mim e, se as coisas estão erradas, eles sabem que podem vir até mim e conversar”, diz.
“Semana passada três meninas ofereceram um vape [cigarro eletrônico] à Rafaela no banheiro da escola. Quando ela entrou no carro, falou ‘mãe preciso te contar uma coisa’. Disse que não aceitou o vape, que não gostava, que não queria usar. Ela contou pra mim em vez de contar pras outras amigas porque sabia que eu não ia ficar brava ou julgá-la”, comenta. “Como mãe, meu dever é ser amiga, mas saber dar limites.”
Já a estratégia de Luci Silveira, mãe de Maria Luiza, 14, e Marina, 23, é respeitar o espaço da caçula, porque nos dias em que ela não quer conversar, fica quieta no canto dela. “Sei que quando estiver pronta, ela sabe que eu sempre estarei aqui”, diz. “Em primeiro lugar, devemos respeitar as opiniões do filho, saber ouvir, acredito muito no diálogo, sempre funciona.”
Para Piamonte, a intimidade emocional é um dos ingredientes “mais raros e deliciosos em uma família”, mas é o que falta na relação de Evelyn com a filha Joy, em “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”. Evelyn, imigrante chinesa nos Estados Unidos, foi criada de forma rígida e busca aprovação dos familiares, distanciando a filha a partir do momento que descobre sua homossexualidade. Joy, por sua vez, não tem ideia que a mãe também coleciona sonhos, desejos e vontades, dos quais abriu mão para administrar uma lavanderia. O desconhecimento afetivo entre mãe e filha desencadeia uma série de realidades alternativas em que Joy procura pelo cuidado, afeto, respeito e amor materno, mas é negligenciada em todas elas.
No papel inverso, na casa de Michelli Oliveira, a filha mais velha Isabella, 12, sabe que a mãe é bissexual e as duas têm conversas muito francas. “Tem coisas que falo de maneira mais genérica por causa da idade, mas ela sabe praticamente tudo sobre minha vida. Falar tudo abertamente é saber que minha filha tem esse porto seguro em casa e pode falar sobre tudo pra mim”, diz Oliveira.
Mãe também de Odara, 3, e Martin, 5, ela se diz adepta da “filosofia de que tudo se resolve na conversa e que “a confiança começa a partir do momento que eu sou aberta e eles vêem que têm essa permissão de serem abertos comigo também. Então, se eu não falar sobre mim, não vai adiantar eu tentar conversar com a Isabella quando algo acontece.”,
Estevão, pai de Alice, 11, também acredita ser importante que a filha o veja “o mais humano possível, com falhas, dúvidas e incertezas e tudo mais que nos atravessa nessa vida. Dessa forma, nos aproximamos como iguais, sem a necessidade de uma hierarquia ou dinâmica de poder nos bastidores.”
“Saber que o papai está um pouco triste esses dias, que a mamãe passou por uma dificuldade, que o meu irmão está enfrentando uma barra, que eu posso estar fragilizado e minha família tem a capacidade de me ouvir, de me acolher, é um presente em tempos atuais”, diz o psicólogo Piamonte. “Isso não limita uma relação, isso a amplia. Saber que você não é infalível, inequívoco, que não é perfeito e que leva uma vida emocional com seus altos e baixos, te torna humano. Te torna real”.
Reconhecer que os adultos “não são seres inatingíveis e donos absolutos da verdade e do poder” e saber filtrar o que contar para a criança pequena, o que levar para o adolescente e o que ensinar para o jovem adulto é onde mora “a magia do cuidado”, segundo Piamonte. “A autoridade e o respeito podem ser ainda maiores quando sei que meus cuidadores são pessoas normais, como eu. Na hierarquia não há espaço para a vulnerabilidade.”
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