Eliminar termos capacitistas do vocabulário é o primeiro passo para acolher crianças e adolescentes com a saúde mental comprometida
O capacitismo está também na forma de falar e pode influenciar na saúde mental de crianças e adolescentes que vivem com alguma deficiência ou transtorno.
Entre quase 50 milhões de brasileiros que convivem com transtornos mentais, segundo estimativa da Associação Brasileira de Psiquiatria, é cada vez mais comum crianças e adolescentes com a saúde mental comprometida, com diagnósticos de ansiedade, depressão, déficit de atenção e transtornos de humor, por exemplo.
Para chegar a um diagnóstico, profissionais como psicólogos, neuropsicólogos e psiquiatras devem seguir protocolos rígidos ao analisar cada paciente. Por isso, a saúde mental das pessoas (assim como deficiências físicas e psicológicas) não deve ser motivo para piada, xingamento ou para estabelecer uma relação de inferioridade.
“Quando a gente usa termos relacionados a transtornos mentais com a intenção de desqualificar ou ferir alguém, reforça atitudes de um sistema extremamente capacitista que oprime pacientes atípicos e duvida do seu potencial, julgando-a inferior às demais crianças neurotípicas”, explica a neuropsicóloga Karina Medrado, especialista em Análise Comportamental Aplicada. “Para uma criança que tem um transtorno, isso afeta a autoestima e a autoconfiança. Ela pode acreditar que realmente é inferior e que não pode alcançar as mesmas capacidades e os mesmos sonhos que as outras crianças”, pontua Medrado.
Capacitismo é o termo usado para designar a discriminação social contra pessoas com deficiência ou limitações, ao julgar e subestimar suas capacidade e habilidades com base em suas condições físicas ou mentais. Quando se trata da discriminação específica contra pacientes com transtornos mentais, também é usado o termo “psicofobia”.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência orienta que as discriminações contra as pessoas com deficiência sejam consideradas violações de direitos. De acordo com o texto, “considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas”.
Quando uma criança vivencia alguma situação de discriminação por sua condição mental, é essencial que ela tenha acolhimento imediato de seus cuidadores, indica a neuropsicóloga. “Depois de ouvir como ela está se sentindo, é importante explicar que o erro não está nela, mas na pessoa que fez o comentário, para desfazer a sensação de que ela pode ser um problema”, complementa.
Falar de transtornos mentais requer cuidado e, antes de tudo, respeito, principalmente quando nos referimos às crianças. Isso porque a infância é uma fase de desenvolvimento emocional e físico determinante para a saúde de uma pessoa. Medrado recomenda o debate como caminho para mudar a cultura capacitista. “Temos que falar disso em nosso meio social, na mídia, internet e nos locais que frequentamos com amigos e família, para desconstruir a ideia de pensar que é um vitimismo, pois não é. Isso fere o outro e demonstra uma forma de não desenvolver a capacidade de empatia“, conclui.
A mudança começa na linguagem. Algumas iniciativas mostram caminhos para substituir expressões consideradas capacitistas em nosso dia a dia, como “fingir demência”, “está cego/surdo?”, “parece um hospício” ou “ele(a) está muito autista”, por exemplo, como o material do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) e o aplicativo Teclado Antipreconceito, que lista mais de 300 palavras e expressões consideradas preconceituosas por terem cunho capacitista, mas também racistas, sexistas e homofóbicas.
Com a proposta “Narre-se e cure-se”, o podcast “Desculpa o transtorno”, apresentado pela escritora Tati Bernardi e pelo psicanalista Christian Dunker, foi criticado por sua abordagem sobre transtornos mentais ao convidar os ouvintes a enviarem histórias de outras pessoas para um “exercício especulativo” de diagnóstico. “É uma atitude desrespeitosa que contribui para aumentar o estigma sobre esse tema”, opina a jornalista Luana Ibelli, que tem transtorno afetivo bipolar, déficit de atenção e hiperatividade.
Ao pontuar as falhas do programa, Ibelli ressalta a banalização do processo de diagnóstico e a falta de respeito com os pacientes. “O momento do diagnóstico é muito difícil para o paciente e para a família. Por isso, precisa acontecer em um contexto de confiança entre paciente e profissional. O diagnóstico não é um rótulo, é um método para que o tratamento seja assertivo. O que é engraçado para quem está de fora, pode ser um momento de muita vulnerabilidade para o paciente”, aponta.
Entre os mais de 300 transtornos catalogados pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), da Sociedade Americana de Pediatria, os mais comuns desenvolvidos na infância e na adolescência são a ansiedade, a depressão, os transtornos alimentares e do espectro autista. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) dividem esses diagnósticos em duas grandes categorias:
Transtornos do desenvolvimento psicológico: pode iniciar na primeira ou segunda infância comprometendo o desenvolvimento de funções biológicas do sistema nervoso central, com implicações cognitivas e intelectuais. Ex:
Transtornos de comportamentos e emocionais: inicia nos primeiros cinco anos de vida e pode implicar em déficit cognitivo ou atraso no desenvolvimento da linguagem e motricidade. Transtornos que implicam nas mudanças no comportamento social e emocional também entram nesta categoria. Ex:
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De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), quase 1 bilhão de pessoas vivem com algum transtorno mental, sendo 14% adolescentes. No Brasil, segundo o último censo do IBGE, de 2010, uma em cada quatro pessoas declarou ter alguma dificuldade física ou mental/intelectual. O Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) indicou que 36% dos jovens brasileiros desenvolveram quadros de ansiedade e depressão durante a pandemia da covid-19.