Nem todo mundo guarda boas memórias da infância. Hoje, aos 24 anos, Louiz* se lembra de ficar a maior parte do tempo isolado, nas escolas por onde passou, em Campo Grande (MS). “Não era sempre que tinha amigos para estar junto”, diz o artista e estudante de arquitetura. Para se defender dos vários episódios de rejeição na escola, a saída era se afastar.
“Eu brincava olhando pro chão”, recorda Louiz.
As marcas de ter sido preterido pelos colegas ultrapassaram os portões da escola e duram até hoje. Como explica a neuropsicóloga e pedagoga, Claudiane Quaglia, vivenciar experiências negativas podem afetar o indivíduo em diversos aspectos, o que inclui “problemas acadêmicos, emocionais, sociais e impactos da saúde mental ao longo da vida”.
“A atenção é uma das necessidades vitais do ser humano. Quando não a encontramos, isso tem repercussão na nossa vida de uma forma muito difícil”, diz. Não por acaso, ela atende pacientes acima de 60 anos que ainda levam as experiências da escola às sessões de terapia.
Da escola para a vida
Uma pessoa passa, em média, 15 anos frequentando a educação formal. Ou seja, a maior parte da infância e adolescência. Por isso, as marcas da rejeição sofrida na escola têm um peso grande na construção da personalidade. “Às vezes, a pessoa tem cognições maravilhosas, mas não consegue ter êxito nas coisas que faz, porque carrega aquele medo de não ser escolhido ou [de ser] julgado”, comenta Quaglia.
A neuropsicóloga afirma que as memórias de longa data que o cérebro registra estão atreladas às emoções. “Situações que eu não tenho um envolvimento emocional, eu não guardo na memória. O dia que eu aprendi a fórmula de Bhaskara, por exemplo, não tem grande impacto. Mas a rejeição marca a memória, porque tem o sentimento de estar sendo excluído”, explica.
Para Louiz, definitivamente, escola era sinônimo de exclusão. “Chegou num ponto em que eu comecei a me distanciar de alguns ambientes sociais normativos e a me envolver com outras coisas”, relata. Diante disso, aos 14 anos, ele passou a usar drogas e a frequentar festas punks para extravasar os sentimentos.
Ele acredita que o fato de ser bissexual (quem se relaciona afetiva e sexualmente com ambos os sexos) tenha sido um dos motivos da rejeição dos colegas, influenciados pelas escolas de concepção católica. Além disso, seus traços indígenas e a cor da pele mais escura que a dos alunos ao redor frequentemente geravam comentários e piadinhas. “Mas essas coisas eu só fui interpretar depois de fazer terapia. Na época, não era claro para mim.” Os únicos momentos em que o estudante se sentia parte do grupo era nos trabalhos de artes. “Não porque eles gostavam de mim, mas porque eu sempre soube desenhar bem”, conta.
Hoje, como artista visual, Louiz usa as tirinhas para falar sobre o assunto, trabalhar a depressão e ressignificar os impactos deixados pela rejeição.
O reflexo no desempenho escolar
Dados do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) de 2023 mostram que o desempenho de estudantes que se sentem rejeitados é menor do que aqueles que nunca vivenciaram esse tipo de experiência.
A média na prova de português de alunos que declararam sempre se sentir “deixados de lado” foi de 145,3. Enquanto isso, os que responderam nunca terem se sentido preteridos foi de 178,5. Quaglia explica que, por ficar desmotivada, a pessoa que sofreu rejeição acaba não querendo participar dos processos escolares.
Foi justamente por conta das chacotas que faziam por ser estrábica que Ivie Macedo, 35, começou a ter problemas com as notas. A escola, então, precisou chamar sua família para entender o que estava acontecendo com ela. “Meu desempenho escolar estava diminuindo e tinha uma certa preocupação de entrosamento na sala, que era difícil”, relata.
Os colegas de classe evitavam escolhê-la para as atividades em grupo. “Como eu me sentia sozinha, eu também me isolava e esperava as pessoas virem me procurar. Eu tinha vergonha de fazer contato. E acho que até hoje isso rola um pouco”, confessa.
Até então, o estrabismo, que é um desequilíbrio na função dos músculos dos olhos, não tinha relevância na vida dela. “Uma das principais marcas foi, durante muito tempo, não ter coragem de olhar as pessoas nos olhos. Eu sentia que as pessoas iam ficar reparando, então eu olhava para baixo. Tentei esconder isso boa parte da vida.”
A situação também afetou sua autoestima como mulher. Ela abandonou o sonho de ser bailarina, por achar que “seria zoada” com a exposição. “Fui fazendo escolhas para que ninguém pudesse me ver”, conta. Como profissional, ela demorou para alcançar um cargo de liderança, porque não se sentia confiante de estar à frente de grupos.
“Eu sempre achei que gostava mais de estar nos bastidores, mas na verdade tinha medo”, diz Ivie.
Foi só a partir dos 28 anos, diz, que começou a conseguir resolver isso. Um dos passos importantes neste processo foi escolher cursar gestão de políticas públicas. “Me envolvi com o setor social, onde eu poderia acolher outras pessoas.”
Diferença entre rejeição e bullying
“O bullying é pesado, porque todo o comportamento de um único indivíduo é motivo de agressão. E isso vira um gatilho. Muitos adolescentes trazem a ideia de não frequentar a escola ou até de suicídio, porque pensam ‘tudo que eu faço vira chacota, dão risada’, explica Quaglia.
Situações como essa contra crianças e adolescentes passaram a ser consideradas crimes no Brasil, em janeiro de 2024. O chamado bullying e o cyberbullying é toda “intimidação, humilhação ou discriminação” feita “sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica”. Assim, por se tratar de um crime hediondo, não há possibilidade de fiança ou anistia, com até quatro anos de prisão como punição.
Já a pessoa preterida, que sofre algum tipo de rejeição, geralmente não é escolhida ou envolvida em atividades de grupos. “Ficam sentimentos como ‘sou deixado de lado, sou ignorado, estou em segundo lugar, não sou escolhido para nada’. Então, a pessoa nunca se sente valorizada ou competente para nada”, pondera a psicóloga.
Promovendo ambientes mais gentis
Quaglia, que já foi professora e hoje faz atendimentos individuais, acredita que o educador pode contribuir para evitar situações de rejeição na escola, pois é uma figura importante para identificar sinais e comportamentos dos alunos. “Quando toma atitudes para trabalhar questões como a empatia, de se colocar no lugar do outro, de trocar de papel, os alunos tendem a confiar e dizer quando estão sendo excluídos. Sei que não resolve tudo, mas eu vou mostrar que estou aberta a escutar e dar a chance de receber o pedido de ajuda.”
Promover vivências e dinâmicas nesse sentido, como feiras culturais e a integração das turmas, também pode ajudar a diminuir episódios de preterimento. “Acho que o papel social da escola é sempre promover projetos que priorizem a integração”, aconselha.
As marcas deixadas por episódios como os que Louiz e Ivie vivenciaram dificilmente são esquecidas. Mas ambos têm buscado caminhos para ressignificá-los. Além do apoio familiar e dos amigos, a terapia pode ajudar a superar essas experiências e conviver com elas de maneiras mais gentis. “Nas sessões, a gente consegue ampliar a visão dessa pessoa. Mas prevenir é sempre melhor que remediar. Então, a atenção é cuidar disso ainda na fase da escola”, finaliza a psicóloga.
* A pedido da fonte, o Lunetas utilizou apenas o seu nome artístico.
Redes sociais
Atualmente, a rejeição na escola pode repercutir no mundo virtual, afirma Quaglia. “A gente pode criar grupos e adicionar pessoas, pode bloquear… Então, ficou um pouco mais sofrido esse processo.” Segundo a psicóloga, não se identificar ou não se ver representado nas publicações de um determinado grupo pode levar os jovens ao isolamento. Para ela, a fase mais crítica e que merece maior atenção é entre 10 e 13 anos, quando “eles não conseguem se posicionar e se fecham”. Consequentemente, mais vulneráveis, podem ser alvo de pessoas mal intencionadas, que estimulam a violência contra si e outros.