‘Meu filho não gosta de mim’: quando pais enfrentam a rejeição

Apesar de soar estranho, crianças podem rejeitar um dos pais ou mesmo ambos; especialistas explicam por que isso acontece e como lidar com essa situação

Cintia Ferreira Publicado em 05.12.2022
'Meu filho não gosta de mim': foto de uma mãe segurando seu filho, que chora em seu colo; enquanto outro bebê o olha.
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Resumo

A construção de vínculos nem sempre é bem-sucedida no ambiente familiar. Conheça histórias de pais que vivenciaram a “rejeição” dos filhos e saiba o que pode estar por trás desse sentimento.

“Parece um contrassenso acreditar que os filhos podem não gostar dos pais. Mas o fato é que, embora pouco falado, essa dúvida é mais comum do que parece e motiva inclusive inúmeras pesquisas na internet. No Google, a frase “meu filho não gosta de mim”, por exemplo, apresenta alto índice de buscas.

Por trás de uma sensação, que pode ser passageira ou constante, existem inúmeras camadas. Entre elas, a certeza de que sentimentos ou emoções considerados incômodos também vão aparecer na infância, inclusive uma aparente “rejeição” dos filhos para com os pais. 

O desamor no desenvolvimento da criança

“A criança ainda não tem a parte cognitiva totalmente constituída. Isso a impede de ter um julgamento da realidade de forma mais justa, de identificar o que é dela e o que é do outro. Logo, se o ambiente e seus cuidadores não transmitirem confiança, segurança e amor, ela poderá projetar todas as angústias e raivas nessas pessoas próximas”, explica a psicóloga Bruna Rodrigues.

Esse sentimento de desamor pode ser bem difícil de lidar e muito angustiante para os pais. Mas, o que será que está por trás dessa sensação? Essa rejeição fala mais sobre os adultos ou sobre as crianças? Para começar, é preciso entender o que pode motivar os filhos a nutrir esse sentimento de rejeição pelos pais.

Por que ‘meu filho não gosta de mim’?

Quando se trata de cuidado parental é importante sempre estar de olho em si mesmo. Pois muitas vezes a convivência com os filhos pode trazer à tona uma série de questões não trabalhadas pelos adultos da relação, como o sentimento de insegurança. Segundo Rodrigues, como os pais são as primeiras pessoas com quem as crianças se relacionam e aprendem sobre convivência, a forma como eles lidam com essas questões pode ser positiva ou negativa para o desenvolvimento infantil. 

“Os pais são o espelho, então, o medo que eles podem sentir nesse processo atrapalha a  constituição de segurança dos filhos”

Além da insegurança, a sensação de rejeição pode ser também uma manifestação de como foi a infância dos adultos que estão cuidando dessa criança, como ressalta a educadora parental Elisama Santos. “Para muitos adultos, o amor na infância era uma moeda de troca. Então, grande parte de nós aprendeu que pode ser abandonado a qualquer momento, pois quem a gente é não basta. Depois, chegam os filhos com toda sua intensidade emocional e nós, sem a consciência desses processos, jogamos neles as consequências disso tudo”, diz a especialista.

A psicóloga Adriane Severine complementa que a criança pode sentir falta de amor e abandono, fatores que levam à ideia de que gostar dessa pessoa é “perigoso”.

“Talvez não devamos pensar sobre a palavra rejeição e sim um mecanismo de defesa das próprias emoções”

Como lidar com esses sentimentos?

Samara Braga, mãe do João Gabriel, de 6 meses, e madrasta de Laura Pereira, de 2 anos, conta que a aparente “preferência” do filho pelo pai já a fez sentir raiva e ciúmes. Mas que, graças ao processo terapêutico, ela consegue entender de onde vêm essas emoções. “Faço terapia há anos e a maternidade me fez olhar para a relação com minha mãe. Vi que ela não tinha muita preferência por mim, o que gerou uma busca constante por aprovação, e a distância afetiva me causa dor.”

A sensação de rejeição pode ser uma confusão de sentimentos por parte dos pais, mas algumas fases do desenvolvimento infantil contribuem para isso, como é o caso da transição do bebê para criança, o momento de começar a escola, a vivência de uma situação difícil ou a entrada na adolescência.

“Nos primeiros anos de vida, já existem alguns conflitos relacionados aos pais. O Complexo de Édipo, teoria de Sigmund Freud, fala sobre essa relação de três pessoas, na qual uma sobra. Isso é comum acontecer entre os três e cinco anos da criança: uma aproximação maior da menina com o pai e do menino à mãe, excluindo o terceiro da relação”, explica Rodrigues.

A preferência entre mães e pais

Severine acrescenta que, no início da vida, os bebês tendem a preferir as mães, especialmente porque são elas que os nutrem, através da amamentação. Nessa fase, muitos pais se sentem rejeitados. À medida que a criança cresce e vai formando sua personalidade, ela pode demonstrar mais afeto por quem está mais próximo ou convivendo mais tempo com ela, como um cuidador, uma babá ou mesmo um dos pais. Nesse caso, como não se trata de falta de afeto por parte da criança, os pais devem investir em mais presença, carinho e atenção.

Depois desses primeiros anos, a criança já consegue enxergar melhor o mundo e ter outros interesses: amigos, estudos, gostos musicais, esportes. Tudo isso é natural e saudável, de segundo Rodrigues. “Na puberdade, o interesse nas interações sociais pode se intensificar e o desinteresse pelos pais fica muito mais visível”, emenda. “O adolescente tenta desconstruir tudo que está ao seu redor, para tentar se descobrir e se construir, estabelecendo o que é importante para ele. Uma forma de entender o quanto é amado e aceito é ‘testar’ o amor dos pais, chegando a alguns limites difíceis”, acrescenta Severine. Para passar por essa etapa, a psicóloga recomenda autoconhecimento e autoconfiança, transmitindo segurança, tranquilidade e limite aos filhos.

Severine lembra ainda que alguns momentos da vida da criança podem provocar um afastamento maior, como é o caso de situações como separação dos pais ou morte de alguém querido. “Na perda de entes queridos, ter pessoas que possam transmitir segurança à criança é fundamental. Além disso, ela pode criar uma resistência de se relacionar e se apegar a outras pessoas, pois quem ela confiava não está mais ali”, diz a psicóloga.

Distanciamento causado pela separação

Renata Cristina Silva Santos, mãe de Manuela, de 9 anos, e Bela, de 2 meses, temia que a separação do marido levasse a um sentimento de rejeição da filha por ela. “Quando a Manuela tinha 1 aninho, eu terminei meu relacionamento com o seu pai e tive medo de que ela, no futuro, optasse por morar com ele. Isso era mais uma neura minha do que realmente um fato. A rejeição aconteceu mesmo quando ela tinha 1 ano e 7 meses, e teve de ficar com minha mãe pois eu trabalhava fora. Quando chegava do trabalho, ela se negava a ir embora comigo e falava que preferia ficar com a vovó”, conta.

Além dessas situações, pode ocorrer um distanciamento na relação causada pelo comportamento dos cuidadores. “A criança pode realmente não gostar de um ou de ambos os pais, pois se sente abandonada, não amada. Normalmente, quando esse sentimento é real e não parte do desenvolvimento da sua personalidade, ele ocorre porque houve uma quebra no vínculo da criança com esses adultos”, explica Severine. De acordo com a psicóloga, nessas situações, acontece um “abandono”, seja físico (o pai ou a mãe fisicamente vão embora) ou emocional (quando a pessoa está presente, mas não está disponível emocionalmente) – e essa ausência faz com que a criança, aos poucos, vá se distanciando dos pais e deixando de amá-los. 

Família e amor não são sinônimos

Vale lembrar que ter filhos não absolve ninguém de suas próprias dores. Então, pais podem assumir comportamentos desrespeitosos com as crianças, como cobrar demais, criticar a personalidade e os gostos, tentar decidir tudo pelo filho, invadir a privacidade, colocar-se como prioridade, exceder-se no controle de tudo que envolve a criança ou mesmo adotar posturas egoístas na relação. “Tudo isso enfraquece a teia que configura o vínculo afetivo, podendo até mesmo destruí-la, em alguns casos”, alerta Severine.

Parece estranho que os filhos possam não gostar dos pais, mas os laços consanguíneos e a convivência não são suficientes para que o amor aconteça. “O que faz o amor nascer são as coisas em comum que compartilhamos, é poder confiar um no outro”, afirma a psicóloga. 

“Não basta ‘ter um filho’ para se tornar mãe ou pai, é preciso querer ser mãe ou pai, e desenvolver esse vínculo”

Caso esses fatores não existam, o amor também não vai existir. Por isso, nunca se deve obrigar uma criança a amar os pais ou uma avó com quem pouco convive, apenas por causa do laço sanguíneo. “Amor é construído, seja ele por quem for”, reforça Severine. 

A culpa que pais e filhos podem sentir por não amarem alguém tão importante da família e a falsa convicção de que é obrigatório amar os pais devem ser cuidadas com ajuda especializada. “É muito importante fazer terapia para entender e aceitar esses sentimentos em nós mesmos. Existem vários casos assim, e é possível viver bem sabendo disso”, recomenda a psicóloga.

“Pode acontecer do afeto não estar presente dentro de casa e os membros da mesma família se distanciarem. Em alguns casos, pode ser a melhor saída, mesmo que soe dolorido demais”

Para entender a rejeição, é preciso olhar para dentro

Não é nada fácil lidar com a rejeição dos filhos. Seja porque eles estão em alguma fase de desenvolvimento ou passando por momentos difíceis, ou mesmo por pura insegurança ou questões internas dos pais, o fato é que não receber o afeto que se espera das crianças pode ser algo bem complexo de assimilar. 

O mais importante, segundo Rodrigues, é que os pais saibam fazer essa avaliação interna, pois, geralmente, as respostas estão muito mais dentro do que fora da gente. “A insegurança, por exemplo, fala muito sobre nossa constituição como pessoas, os exemplos que tivemos, a forma com a qual fomos expostos às situações e traumas da vida, necessidade de ser amado a todo custo”, explica a psicóloga. 

“Temos que nos conhecer melhor, lidar com a criança interior que existe em cada um de nós para poder trabalhar nossas dores e conflito”

O diálogo como caminho para a compreensão

No caso de Samara Braga, o processo de autoconhecimento tem ajudado muito nesse entendimento. “Nessas situações, nas quais sinto raiva ou ciúme por essa ‘preferência’ do meu filho, eu identifico esses sentimentos em mim e me afasto. Com mais calma, tento mudá-los, preenchendo com a satisfação de ver a felicidade do meu filho, sendo ele um outro ser humano e que tem direito a ter a sua própria preferência”, diz. Segundo ela, um dos grandes desafios da sua maternidade é justamente identificar como pode oferecer apoio emocional que os filhos precisam, ao mesmo tempo que olha para as próprias necessidades.

Já Renata Santos viu no diálogo uma forma de lidar com o que estava sentindo. “Eu me posicionei como mãe, ensinando minha filha, explicando que tinha o momento de ficar com a vovó para a mamãe trabalhar e o momento de ir para a casa com a mamãe”, conta.

Todo processo de criação de filhos envolve também saber que as crianças convidam os pais a olharem mais para dentro de si – e esse processo é fundamental. Essa troca tem muito a ensinar, inclusive sobre a humanidade de cada um. “Vivemos tempos em que a cobrança pela perfeição e o não poder errar estão muito intrínsecos; ser pais e ou responsável por uma criança é uma tarefa desafiadora e falhar é extremamente necessário para o desenvolvimento de qualquer indivíduo. Pais que não falham criam filhos vulneráveis. Tudo que é demais é ruim e a busca pelo equilíbrio é uma utopia, mas precisamos continuar a insistir”, afirma Bruna Rodrigues.

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