As crianças que carregam um alvo pela cor da pele

Emilly, Rebeca, Ágatha, João, Kauê, Miguel e tantas crianças e jovens negros que são mortos todos os dias pelo racismo estrutural entranhado em nosso país

Da redação Publicado em 07.12.2020
Foto em preto e branco de uma menina negra, de costas, olhando pela vidraça de uma janela
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Resumo

Emilly e Rebeca foram mortas por uma bala “perdida”, enquanto brincavam na frente de casa. São crianças negras, vítimas da violência gerada pelo racismo estrutural, mais uma vez. A pergunta que fazemos é: até quando?

“É isso aí que a gente leva, ó. Duas crianças, minha filha, minha sobrinha. Tô acabando de enterrar, isso fica aí pra comunidade, pros governador”. Estas são as palavras de Alexsandro dos Santos, pai de Emilly, 4, e tio de Rebeca, 7, após enterrar o corpo das duas meninas, mortas a tiros enquanto brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias (RJ). Um enredo que se repete e tem como alvo crianças e adolescentes negros alvejados por balas “perdidas”. 

Um enredo que pôs fim à vida de João Pedro, 14, em maio deste ano, morto dentro de casa enquanto brincava com seus primos. Que pôs fim à vida de Ágatha Felix, 8, morta enquanto passeava com a família, em setembro do ano passado. “Ele não viu que estava com roupa de escola, mãe?”, foram as últimas palavras de Marcos Vinícius, 14, morto a caminho da escola. Que pôs fim à história de Kauê, Kauã e tantas outras crianças e adolescentes mortos de maneira violenta, com tiros que interromperam suas breves trajetórias. Ou crianças que presenciaram cenas violentas precocemente, como o menino Davi, que assistiu, aos 7, à morte do pai, alvo de 80 tiros dentro do carro da família, uma violência reforçada no refrão do poema “Excludente de ilicitude”, de Germana Zanettini:

“oitenta tiros
na frente da esposa
na frente do filho
oitenta tiros
família negra
dava pra ver
os vidros
sem filtro fumê
oitenta tiros
na frente da esposa
na frente do filho
oitenta tiros”

São crianças e adolescentes que carregam um alvo pela cor da pele.

A psicóloga Juliana Prates, em sua coluna no Lunetas, cravou: há um conjunto de “crianças matáveis” no Brasil. “Há em nosso país um conjunto de crianças cujos corpos são sempre os alvos das balas perdidas, das ações fracassadas do Estado. A violência que mata meninas e meninos pretos e pobres no Brasil não é um acidente, é um ‘projeto de Estado’.”

No Brasil, está em curso um genocídio de crianças e jovens negros.

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, só no ano passado, das quase 5 mil mortes violentas de crianças e adolescentes, 75% eram negros. Isso dá uma média de 10 crianças e adolescentes negros mortos por dia de forma violenta. É um genocídio de corpos negros sustentado por um Estado e uma sociedade que têm no cerne o racismo estrutural.

Nós, do Lunetas, temos como lema o provérbio africano de que é preciso uma aldeia para cuidar de uma criança. Por isso, trazemos reflexões não só para pais e mães, mas também educadores, cuidadores e toda a sociedade. Porque acreditamos que todos nós devemos zelar pelas nossas infâncias, por todas elas: crianças de diferentes etnias e classes sociais que compõem as múltiplas infâncias brasileiras. Publicamos reportagens sobre educação antirracista ou escolas que têm na sua gestão a diversidade, sobre a importância da representatividade negra nas infâncias, conteúdos para discutir o racismo entre as crianças, e tantos outros. 

Confessamos que neste ano de 2020 foi muito desafiador fazer jornalismo para as infâncias. Não somente pela pandemia que nos revirou – as angústias compartilhadas com famílias, os desafios do ensino remoto, o alto número de crianças e gestantes vítimas da Covid-19 –, mas também por precisar sistematicamente noticiar e refletir sobre mortes de crianças negras e pobres do nosso país. Mortes que vieram pela pandemia – que escancarou as desigualdades sociais e raciais do Brasil –, pelos assassinatos de crianças negras ou até mesmo devido à negligência de uma patroa branca.

Não há um futuro possível para todas as crianças sem colocarmos a questão racial no centro de qualquer debate.

Porque nós, como uma “aldeia”, temos a responsabilidade de construir um mundo em que todas as infâncias possam viver e conviver de maneira segura, saudável, inclusiva, diversa e plena.

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