“Cada vez que um pai escolhe fazer diferente do que viu em casa, ele se transforma”, diz Ismael dos Anjos, da Coalizão Licença-Paternidade (CoPai). Embaixador da organização que defende mais tempo dos pais com as crianças, de forma remunerada e obrigatória, ele acredita que estar presente desde o início da vida dos filhos pode mudar não só a dinâmica das famílias, mas a cultura do cuidado.
Embora 92% dos brasileiros economicamente ativos apoiem o aumento da licença-paternidade e reconheça a importância paterna no puerpério, mais da metade dos lares é chefiado por mulheres, segundo o IBGE. Em 2024, mais de 91 mil crianças foram registradas apenas com o nome da mãe. A CoPai atua então para ampliar a licença em até 60 dias, considerando que criar filhos deve ser uma responsabilidade compartilhada.
Apesar de estar na linha de frente dessa luta, Ismael não teve direito sequer aos cinco dias de licença previstos em lei. Isso porque estava no início do relacionamento com Juliana Costa e não formalizou o processo de adoção de Francisco, hoje com 11 anos. “Teria sido essencial parar, nem que fosse por alguns dias, para entender o que estava começando a acontecer entre nós”, diz.
Para ele, o puerpério significou a combinação entre o pai que estava se tornando e a criança que chegava em sua vida. Nesse período, apesar de não ser o protagonista, Ismael fez do cuidado uma palavra-chave. Assim, conseguiu superar o desafio de não ter repertório diante de tantas mudanças vividas por Juliana, mesmo sem a gravidez e o pós-parto.
“A paternidade também é uma chance única de humanizar homens negros, porque cuidar ainda é o oposto do que esperam de nós: que a gente morra mais cedo, que aguente mais dor, que não chore”, diz. “Como pai, a gente passa a viver as emoções e pode abrir a possibilidade de que as próximas gerações experimentem essa conexão de maneira mais íntegra, com espaço para o sonho.”
Todos os dias depois de hoje
Para o filósofo e professor Rodrigo Araújo, o puerpério é uma travessia difícil, mas compartilhada. “Sempre entendi que esse era o nosso tempo e o viveríamos juntos”, afirma. Mesmo sem saber exatamente o que fazer, ele estava lá, defendendo que o puerpério não fosse um tempo exclusivo da mãe, mas de toda a família.
As anotações sobre descobertas, medos e aprendizados diante do puerpério da companheira Nani Coimbra deram origem ao livro “Todos os dias depois de hoje”. Foi assim que ele começou a contar o tempo a partir da notícia de uma gravidez inesperada e da experiência com a paternidade.
Com 35 reflexões e ilustrações da filha Malu, que tinha 7 anos, “esse diário é o testemunho do que a gente viveu e eu me esquivo de dar conselhos. O que tenho a oferecer é a expressão de uma experiência cheia de fraturas, dúvidas, falhas, mas também um lugar para nos lembrar que temos um ao outro, por mais que em alguns momentos nos sentíssemos sozinhos e impotentes diante de uma tarefa tão imensa”.
Criado por mulheres e sem referência paterna, por fim, ele aprendeu a partir do improviso e do desejo genuíno de estar junto. Hoje, com Malu aos 11 anos, Rodrigo diz que a relação construída naquele início segue sendo aprimorada.
A licença acaba, o puerpério continua
A licença-paternidade de cinco dias obrigou Rodrigo a montar, junto com Nani, uma rede de apoio com as avós. Isso, segundo ele, foi essencial para garantir cuidado nos primeiros banhos, amamentação, vacinas, cólicas, além de todas as descobertas do bebê.
Porém o puerpério não termina com o fim da licença. Aliás, pode se tornar ainda mais desafiador quando vivido de forma solitária. Para a doula Maiana Kokila, a atitude do pai nesse período é crucial e vai muito além de “ajudar”. “O pai precisa ampliar o olhar e isso exige disponibilidade, proatividade e consciência do que é necessário, sem esperar ser solicitado”, afirma.
Maiana explica que um pai presente desde a gestação tende a criar vínculos mais profundos com o filho e a oferecer uma base emocional mais segura à parceira. “Quando a mulher olha para o lado e vê uma necessidade já suprida, entende que não está sozinha. Isso muda tudo.”
“O envolvimento cotidiano transforma a paternidade em vínculo real e fortalece toda a família.”
Por outro lado, atravessar o puerpério de Vicente e chegar até os 11 anos do filho sem a presença do pai levou a designer Thaiz Leão a refletir sobre a necessidade de “refazer todos os acordos sobre o que é vida, família e sociedade”. Ela, que teve uma gravidez não planejada aos 23 anos, passou então a se sentir profundamente incomodada com a função social das mães.
“Como uma experiência de poder se tornou armamento da submissão e da repressão?”
Para ela, pensar sobre puerpério e paternidade é uma chance de projetar outros futuros. “A melhor jogada é tornar o cuidado pedra fundamental das políticas públicas, ou seja, uma política de Estado, um direito constitucional. Afinal, o estado foi e é o legítimo primeiro pai ausente.”
Mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado – uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global. Fonte: Think Olga
A briga não é entre mães e pais
Autora do perfil “A mãe solo”, Thaiz se esquivou de rótulos como “pãe” – como são chamadas as mães que precisam assumir sozinhas o cuidado dos filhos – e expôs a maternidade real, mostrando que “toda mãe guerreira esconde um pai ausente”.
Mexer nas estruturas e repensar o significado de maternidade e paternidade, colocando as infâncias no centro, é revolucionário, aposta a mãe de Vicente. “O que a gente está discutindo é a vida. Se a gente tiver um bom projeto de vida, os papéis vão se encaixar.”
“Para isso, também vamos ter que fugir de armadilhas. A primeira é de que a grande briga é entre pais e mães. Não é! Se a gente tem que brigar com alguém para que a mãe não tenha uma terceira ou quarta jornada para criar a criança, se a gente está mirando o futuro, a briga é com a cultura. Briga com sua mãe que fala para não ligar. Briga com quem diz que pai não sabe fazer, que a gente tem que aceitar qualquer coisa.”
Outras construções familiares
Foi com presença e parceria que Angelo e André Nunes construíram o vínculo com os filhos Jonathan, 16, e Valentina, 14, irmãos adotados em 2010. Na época, Angelo conseguiu se afastar por um mês, com apoio dos sócios da agência de modelos que ajudou a fundar. Já André, produtor de cinema, pediu demissão para se dedicar integralmente ao cuidado dos filhos.
Nesse começo, os pais decidiram não receber visitas, para que a adaptação acontecesse apenas entre eles e respeitando o tempo das crianças. “É fundamental para mostrar a elas que estão seguras, que existe um lar”, diz Angelo. Para ele, a experiência o fez revisitar a própria infância. “Ser pai é regenerador. Você se torna uma pessoa melhor”.
Já Natália Lagrota e a companheira Marília Araújo são mães de Elis, 5. Foi Marília quem gestou e pariu Elis, mas Natália vivenciou todo o processo e seus desafios: a gravidez na pandemia, a vida em um país diferente e sem rede de apoio. No entanto, o puerpério fora do Brasil mostrou para elas uma realidade mais inclusiva. “Aqui no Canadá, o Estado reconhece as diferentes formas de família e a licença é para as duas.”
No Brasil, a licença parental segue regras feitas para casais heterossexuais: em famílias com duas mães, só a gestante tem direito aos 120 dias previstos por lei. A outra tem a licença equivalente ao tempo de um pai. “É lamentável e revoltante que, em 2025, ainda pensem que uma das mães faz o papel materno e a outra, paterno. Não existe pai nessa relação. Ou seja, são duas mães e as duas são cuidadoras desde o primeiro dia”, diz Natália.
“Estávamos sozinhas, mas a gente investiu tanto amor que parecia que só existia a gente ali. Eu cantava, conversava com Elis na barriga. Mesmo sem ter sido eu a gestar, senti tudo com muita presença”, conta Natália.
A dupla maternidade lhe ensinou que o mais especial para o começo da vida de uma criança é ter adultos presentes. “A nossa filha tem duas mães que dividiram igualmente o puerpério, o sono, as descobertas, tudo. O vínculo vem da presença, e não do parto.”
5 pontos por que a licença-paternidade importa para toda a família
Por fim, para entender os desafios e avanços da licença-paternidade, conversamos com as advogadas Larissa Muhana, especialista em Direito de Família, e Catarina Dias, especialista em Direito do Trabalho.
1. O direito e as novas possíveis formas de ver o puerpério
Algumas leis no Brasil indicam que o cuidado das crianças no começo da vida não é responsabilidade exclusiva das mães. Nesse sentido, a Lei do Acompanhante, o direito à pensão para gestantes e o aumento da licença-paternidade são alguns exemplos. “Assim o genitor pode entender que ele é corresponsável por aquela vida e pelos cuidados do bebê no pós-parto e em toda a sua existência”, afirma Larissa.
2. Ampliar a licença para ter mais tempo com o bebê
A extensão da licença-paternidade pode consolidar a importância da figura paterna no puerpério, ideias presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Marco Legal da Primeira Infância. “A legislação brasileira vem caminhando para uma corresponsabilidade parental”, conta Larissa. De acordo com ela, o reconhecimento do trabalho invisível de mães na definição da pensão alimentícia é um sinal desse progresso.
3. A lei trata o cuidado como obrigação da mulher
Para Catarina Dias, a forma como a licença é pensada reforça estereótipos de gênero como a ideia de que só a mãe cuida. “A legislação possui características extremamente machistas e enxerga a mãe parturiente como a única responsável pela criação da criança.”
4. Casais com duas mães ainda enfrentam obstáculos legais
Quando duas mulheres têm um filho, o direito à licença muitas vezes não é reconhecido para ambas. Catarina destaca que, em 2024, o Supremo Tribunal Federal decidiu que mães em relações homoafetivas tivessem direito à licença-maternidade, independentemente de quem gestou. “A decisão abriu um precedente importante, mas ainda não garante o mesmo direito em todos os casos”, explica.
5. Licença parental precisa incluir o cuidado
Modelos adotados por países como Suécia, Islândia e Canadá tratam o puerpério como uma fase da família, não apenas da mulher. No Brasil, porém, ainda falta esse olhar. Catarina defende que “é preciso repensar a licença parental como um tempo essencial para criar vínculos com a criança, e não apenas para a recuperação da mãe após o parto”.
A licença-paternidade está prevista na Constituição desde 1988, mas nunca teve regulamentação específica. Hoje, a CLT garante cinco dias corridos, prorrogáveis por mais 15 no Programa Empresa Cidadã, usado por apenas 1% das empresas no país. Em tramitação, projetos propõem ampliar gradualmente o benefício até 60 dias, com adiamento em casos específicos.
Parado há 17 anos no Congresso, o PL que estende a licença de cinco para 15 dias ganhou urgência para ser votado. A movimentação acontece em agosto, mês do lançamento da Política Nacional Integrada da Primeira Infância (PNPI), que reconhece, entre outras coisas, o papel fundamental dos pais nos primeiros cuidados com as crianças.