Certo dia, enquanto lavava roupa, a dona de casa Elizabeth Souza, 39, ouviu alguém bater na porta. Deixou os afazeres, atravessou os cinco cômodos do imóvel e foi descobrir quem estava do outro lado. Era uma mulher que nunca tinha visto na vida. Souza estava grávida de três meses da quinta filha e era justamente sobre isso que a então desconhecida queria falar. A visita se apresentou, fez algumas perguntas e disse integrar o programa de visitação domiciliar Família que Acolhe, voltado para primeira infância (0 a 6 anos), da prefeitura de Boa Vista, em Roraima. Naquela época, separada do marido, Souza vivia questionando-se se deveria levar aquela gestação adiante, se precisaria parar de trabalhar e como sustentaria os filhos. A visita, que ao primeiro momento pareceu incômoda, foi determinante para o fim dessa história.
A sensação de acolhimento e suporte fez Souza perceber que não estava só. “Em toda visita, ela me dava conselhos, orientações. Disse que estava lá para me apoiar. E foi passando confiança. Quase me entreguei à depressão, mas graças a Deus e a ela, não aconteceu. Depois disso, acalmei meu coração”, conta. Daquele encontro, surgiu uma amizade e uma rede de apoio que reverbera até hoje após o nascimento da sexta filha de Souza, agora com quatro meses.
A técnica Maria Ineide Freitas, visitadora do programa Família que Acolhe, voltaria muitas vezes à casa da família Souza, para acompanhar o pré-natal, o puerpério, para saber como estavam a mãe e as crianças, e para ensinar novas formas de brincar ou apenas para conversar.
Na periferia da cidade de Camaçari, na Bahia, a dona de casa Camila Cruz, 30, e o marido, acabaram de ter gêmeas. As meninas estão com pouco mais de um mês de vida. Com elas, são nove filhos. Na correria para cuidar de todos, ela mal consegue parar para responder algumas perguntas. É interrompida o tempo todo por uma demanda. É criança acordando, querendo mamar, outros pedindo comida e atenção. Duas delas estavam brincando na rua, há cerca de dois meses, quando foram vistas pela visitadora Raissa Velasco.
O contexto familiar chamou a atenção de Velasco, que resolveu convidar a mãe para participar do Criança Feliz, programa federal de visitação domiciliar e que conta com adesão do município. Com a entrada da família na ação, ela tem ido uma vez por semana à casa de Cruz. Toda vez que chega, é festejada pelas crianças. “Ela é conhecida como a tia do desenho. Eles amam a Raissa. Aprendem muita coisa com ela, recebem atenção”, explica Cruz.
A mãe está impressionada, sobretudo, com a evolução das crianças na memorização desde que a visita domiciliar começou. Velasco revela, porém, que a principal demanda da família era receber a cesta básica, o que foi articulado pela visitadora com o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS).
A visitação domiciliar como forma de cuidar da parentalidade
Todo adulto pode desempenhar um papel de referência na vida de uma criança para garantir a sobrevivência e o desenvolvimento integral dela. Esse trabalho de parentalidade positiva se dá a partir de um conjunto de ações como perceber, compreender e responder às demandas dos pequenos, trazer para perto práticas do brincar e afastar comportamentos negativos, como agressões verbais ou físicas. Por isso, a estratégia de visitação domiciliar é importante para fortalecer os vínculos entre cuidadores e crianças, justamente para permitir o aprendizado dessa forma de convívio.
“Sabemos hoje que as questões genéticas têm forte influência no nosso desenvolvimento, mas existe uma grande prevalência também do ambiente, das experiências, das relações vividas, sobretudo nos primeiros anos de vida”, afirma Marina Fragata, diretora de conhecimento aplicado na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Segundo ela, um convívio positivo entre crianças e adultos ultrapassa o olhar básico, de prover a alimentação, lazer, escola e cuidar da saúde. É preciso trazer elementos despercebidos na rotina, como o cuidado com os afetos e estímulos.
“Quando investimos nas relações positivas, nas interações entre cuidadores ou pais e crianças, promovemos a primeira experiência de aproximação da criança com o mundo, pois são eles o primeiro contato delas com esse ambiente”, explica Lislaine Fracolli, professora da Universidade de São Paulo (USP) em saúde coletiva, especialista em atenção materno-infantil e parentalidade. Ao sentir nos pais ou cuidadores segurança, conforto e proteção, a criança tende a olhar o mundo como um lugar onde ela pode aprender, se relacionar, arriscar e desenvolver a autoconfiança.
“Não investimos apenas na questão cognitiva, estamos construindo seres humanos capazes de levar seus projetos adiante, de ter perspectiva e de agir com menos violência”, acrescenta Fracolli.
É por isso que a dinâmica dentro das casas precisa ser cuidada, para amenizar os impactos da vulnerabilidade para além do tempo em que a criança passa na escola. Dar suporte aos cuidadores é trazer ferramentas e informações para que essas pessoas tenham capacidade de desenvolver a maternidade e paternidade. “A gente precisa trazer para o debate público que a responsabilidade de garantir direitos das crianças não é exclusiva da família. O Estado e a sociedade desempenham um papel”, acrescenta Fragata.
De acordo com a especialista, sobretudo em um país desigual como o Brasil, ter uma política pública que cuide da parentalidade pode ser uma alavanca para romper com os ciclos de pobreza e favorecer o pleno desenvolvimento das crianças no começo da vida. “Para uma mãe que está numa depressão pós-parto, que vive na extrema pobreza, com muitas questões para lidar dentro da rotina, a visitação domiciliar pode ajudar muito nesse processo, fortalecendo os saberes. A visita também pode conectá-la com uma rede de serviço e proteção”, afirma.
Nessa rede geralmente estão incluídos serviços como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), as Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou as creches e pré-escolas. Juntas, em atuação integrada, essas ferramentas podem ampliar acesso a direitos tanto dos cuidadores quanto das crianças.
No caso de Souza, ela e a filha foram acompanhadas da gestação até a criança completar quatro anos. Além disso, a visitadora ainda faz parte do núcleo de pessoas próximas à família. “Quando ela bateu na minha porta, achei chato. Depois, comecei a adorar ela. Agora, somos amigas”, lembra a dona de casa. Mesmo durante a pandemia, ela fez um acompanhamento on-line com a visitadora.
“Na minha gravidez recente, fiquei mais confiante e, depois que a neném nasceu, eu vi o desenvolvimento da minha filha. Foi muito bom. A minha outra filha ainda não está indo para a escola, mas já conhece as cores, as letras, sabe a letra que começa o nome dela”, afirma. Até hoje, Souza lembra dos conselhos dados pela visitadora e, mesmo não fazendo mais parte do Família que Acolhe, ela aplica os aprendizados da experiência anterior. “Tenho uma gratidão imensa, pois mesmo fora do programa, consegui o leite para a minha bebê”, ressalta Souza.
Visitação domiciliar: uma estratégia de presente e futuro
A visitação familiar também chegou por meio da vizinhança na casa da autônoma Ana Luiza Vasconcelos, 36. Moradora do bairro do Pina, no Recife, ela soube por uma vizinha, que é psicóloga e funcionária da prefeitura, da iniciativa. Essa ponte para que as visitas começassem a acontecer era a ajuda que Ana Luiza procurava e não sabia onde encontrar.
Desde o nascimento da filha Carolina – hoje com dois anos -, a família recebe todo mês a visita da técnica do Programa Criança Feliz, Kátia Barros. “Ela sempre traz algo que eu possa fazer, aguça a vontade da minha filha de explorar os objetos, que eu sozinha não iria pensar. São propostas diferentes”, conta. A conexão estabelecida é tanta que, ao falar sobre os benefícios que vê na presença da visitadora, Ana Luiza derrama lágrimas. “Quando minha filha vê a Kátia, fica feliz. Eu também fico feliz, pois vejo que ela se preocupa em trazer algo que possa ajudar a educar a minha filha. Isso pra mim é muito especial”, complementa.
Prevista no Marco Legal da Primeira Infância, a visitação domiciliar deve ser ofertada com prioridade para famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade e de risco ou com direitos violados para exercer seu papel protetivo de cuidador e educador da criança na primeira infância, bem como famílias que têm crianças com indicadores de risco ou deficiência.
O ideal é que a visita comece logo na gestação para aproveitar a janela de oportunidade da primeira infância. Já há evidências científicas no Brasil comprovando os benefícios do acompanhamento precoce. Um estudo realizado na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, mostra que o início do programa de visitação Primeira Infância Melhor (PIM) durante a gravidez tem como consequência uma prevalência 60% menor de atraso do desenvolvimento comparado às crianças de famílias que não receberam as visitas.
A iniciativa pode ajudar a gestante a reconhecer sinais de alerta, o que contribui para reduzir os índices de mortalidade materna e infantil, e também para fortalecer a parentalidade, ao ensinar aos cuidadores a importância da conversa com o bebê ainda no útero.
Para tanto, a família precisa ter aderido ao programa quando apresentada a ele. As visitas costumam demorar, em média, de 50 minutos a uma hora. “A gente não pode ter em mente que o visitador vá aos domicílios com o caráter de fiscalizar, punindo o que está errado e aprovando o que está certo. Ele vai à casa da família, compreende a dinâmica e intervém com exemplos de outras possibilidades para as pessoas refletirem sobre o cuidado com a criança”, afirma Fracolli. Assim, ampliam-se as chances da família perpetuar uma ação, ainda que o cuidador não esteja presente.
Por exemplo, não é só sobre ensinar a mãe a brincar com a criança para empilhar cubos, é promover a reflexão conjunta sobre como aquela mãe se sentiu ao promover a atividade com o filho ou filha, como ela respondeu de maneira afetiva às demandas, como ela reagiu quando a criança derrubou os cubos, entre outras questões. “A partir dessa experiência, o visitador vai significando as ações como comportamento parental”, acrescenta Fracolli.
A avaliação do PIM mostrou impactos positivos em quatro dimensões. “As famílias que receberam o programa tiveram redução na probabilidade de usar punições físicas contra a criança, aumentou-se também o tempo de disponibilidade da família para a interação, além de melhoras no tempo de leitura das crianças e no desenvolvimento das habilidades motoras finas quando comparadas com aquelas que não receberam”, afirma Fragata. No caso de castigos físicos, a redução nas possibilidades de uso pela família foi de 62%. No Brasil, segundo dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, 81% dos casos de violência contra crianças e adolescentes ocorrem dentro de casa.
Já a pesquisa “A home visit-based early childhood stimulation programme in Brazil – a randomized controlled trial“, realizada em São Paulo e no Zimbábue, constatou que crianças de famílias que receberam, no mínimo, dez visitas dos agentes de visitação domiciliar apresentaram uma melhora global no desenvolvimento maior do que aquelas contempladas com menos encontros.
Um documento produzido em 2018, pelo Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância, mostrou que os estímulos realizados por meio do brincar e das leituras nos programas de visitação domiciliar ajudam a melhorar a responsividade dos pais nas brincadeiras e no desenvolvimento cognitivo e socioemocional das crianças. Ao revisitar exemplos de outros países, o documento também mostrou que as visitas melhoram o comportamento materno em relação ao apego e à disponibilidade emocional, sensibilidade, qualidade da interação verbal, entre outros fatores. Ao interagirem com as crianças, as mães também reduziram ou eliminaram a impulsividade e a negatividade. Ao melhorar a linguagem no lar, o vocabulário das crianças também foi impactado.
De porta em porta
No Brasil, o maior programa de visitação domiciliar é o Criança Feliz, criado em 2016 e coordenado pela Secretaria Nacional de Atenção à Primeira Infância, do Ministério da Cidadania.
A iniciativa inclui as famílias inscritas no Cadastro Único do Governo Federal com mais de 3 mil municípios registrados no programa, alcançando 1,5 milhão de famílias nos últimos cinco anos. Ao todo, são 22,5 mil visitadores atuando pelo país. Além do Criança Feliz, há iniciativas locais, os mais conhecidos são: Programa Primeira Infância Melhor – PIM (Rio Grande do Sul); Primeira Infância Ribeirinha – PIR (Amazonas); Programa Família que Acolhe (Boa Vista/RR); Programa de Apoio ao Desenvolvimento Infantil – Padim (Ceará); e Programa Cresça com Seu Filho (Fortaleza/CE).
O Família que Acolhe, que conectou Souza, de Boa Vista, com a sua visitadora, existe desde 2013 com duas estratégias diferentes: a formação de grupos para debater a parentalidade e a visitação domiciliar. Para participar do serviço, a família precisa aderir no momento do pré-natal, até 21 semanas de gestação. A gestante pode procurar o serviço ou ser encaminhada pela rede para participar de encontros quinzenais.
Os encontros, entretanto, não são só para as mães. Outros cuidadores e adultos da rede da criança podem participar. A iniciativa contempla a presença de psicólogos e assistentes sociais, e quando há alto nível de participação, a família tem prioridade nas vagas para as creches. Mais de 25 mil famílias já foram atendidas desde o começo do programa. Das 7 mil famílias ativas, cerca de 1 mil estão na visitação. “Hoje em dia, quando a gente fala de primeira infância, as pessoas já sabem do que se trata. E as gestantes estão procurando o programa cada vez mais cedo. Conseguimos estar mais próximos, dar um suporte maior para as famílias, e percebemos que elas se sentem mais acolhidas”, afirma Andréia Neres, secretária municipal de projetos especiais de Boa Vista e coordenadora do Família que Acolhe.
Recife, Camaçari e Boa Vista são exemplos do que pode ser feito para o programa de visitação domiciliar avançar no Brasil. De acordo com Fracolli e Fragata, é preciso que haja a integração com os demais serviços da rede, como os de assistência social, educação, saúde, a existência de um currículo para balizar as atividades e indicadores para avaliar os impactos do programa, assim como a revisão do que precisa ser melhorado. Um bom programa de visitação deve ter uma governança bem estabelecida, metodologia estruturada, formação de equipes e supervisão. Outros indicadores de qualidade são a existência de um guia para o visitador ou facilitador, e a definição de objetivos. Por fim, os governos estaduais podem supervisionar e oferecer apoio técnico na implementação e execução das estratégias. Dessa forma, ampliam-se as chances de chegar a pessoas como Elizabeth Souza e Ana Luiza Vasconcelos e de transformar-se em uma memória inesquecível para os filhos delas.
Uma vez estabelecido, o vínculo da visitação perpassa a rotina da família. O encontro promove consequências positivas não só para a criança, mas também para a mãe, no presente e no futuro. É a sensação de ter com quem contar. “Eu me sinto acolhida, me sinto ouvida. Isso para mim é uma rede de apoio, pois fortalece em mim a maternidade”, diz Vasconcelos, que já recorreu à visitadora para conversas triviais por aplicativos de mensagem e também para cestas básicas. “É algo que ficará marcado na minha vida e na dela.”
Como a gestão estadual pode desenvolver ações de visitação domiciliar?
- Dar continuidade aos programas já existentes em seus municípios, como, por exemplo, o Criança Feliz e o Família que Acolhe.
- Se for iniciar programa próprio, fazer por meio de piloto e escala a partir de avaliações, preferencialmente com uso de estratégias e metodologias baseadas em evidência científica.
- Fortalecer suas equipes para ações em favor da primeira infância e do apoio aos municípios para aumentarem sua capacidade de implementação, e ampliar o acesso e a qualidade dos programas e serviços localmente.
- Priorizar iniciativas de acompanhamento da criança e da mãe desde o pré-natal, favorecendo uma gestação saudável e a redução das mortalidades materna e infantil.
- Fazer busca ativa da assistência social, em parceria com os municípios, como forma de identificar e orientar as famílias vulneráveis.
- Ofertar aos municípios o apoio necessário para manter o Cadastro Único atualizado e estruturado dentro da perspectiva das famílias.
- Atuar de forma sistêmica e intersetorial na parentalidade (assistência, saúde e outros) e na educação como forma de superação da pobreza.
Fonte: Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal – Recomendações de programas e serviços voltados à primeira infância na gestão estadual
* Este conteúdo foi produzido com o apoio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
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Com exemplos em diferentes regiões brasileiras, os programas de visitação domiciliar orientados para cuidar da maternidade e da paternidade junto a famílias em situação de vulnerabilidade podem ser desenvolvidos por municípios, governos estaduais e federal.