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O que mães negras querem dizer às mães brancas?

Imagem mostra uma mãe negra e uma mãe branca conversando sentadas.

Criar crianças negras no Brasil é viver em estado de alerta. Desde cedo, as famílias precisam prepará-las para enfrentar um mundo onde a cor da pele não é neutra. Além disso, cedo ou tarde, surgirão as marcas do racismo, seja em uma piada, um olhar ou na exclusão na hora da brincadeira.

Ao mesmo tempo, muitas famílias brancas acreditam que os diálogos antirracistas com suas crianças podem ser adiados. “Ainda é cedo”, “meu filho não entende essas coisas”, “ele nem repara nisso”. Mas é justamente nesse silêncio que o racismo encontra terreno fértil para crescer.

Dados do IBGE mostram que a desigualdade racial já está enraizada na sociedade brasileira. Conforme os números, trabalhadores pretos e pardos recebem, em média, 40% menos do que trabalhadores brancos. E isso começa cedo, pois segundo um levantamento do UNICEF, meninas negras são três vezes mais suscetíveis ao abandono escolar do que meninas brancas.

Para reforçar a importância de uma conversa sobre o racismo com todas as crianças, o Lunetas entrevistou mães negras que propõem um diálogo direto às mães brancas:

Não basta ensinar a “não ser racista”, é preciso formar crianças que ativamente combatam o racismo. Essa responsabilidade deve existir desde cedo dentro de casa, na escola e em todo o convívio social.

Heranças da infância, quando o racismo começa

Luana Genot, diretora-executiva do Instituto Identidades do Brasil (IDBR), conhece bem essas dores. Recentemente, crianças se recusaram a brincar com sua filha de sete anos em uma academia, porque, segundo elas, a menina tinha a pele mais escura. O caso, então, ganhou repercussão nacional.

“Eu mesma não voltaria para a minha infância”, desabafa Luana. “Foi uma época doce por razões familiares, mas muito ácida na convivência social. Ofensas verbais, físicas, apelidos, exclusões. E agora eu vejo isso se repetindo com a minha filha.”

No entanto, ela reconhece uma diferença importante entre as experiências, que é o letramento racial. “Minha filha sabe dar nome ao que aconteceu. Ela sabe que é racismo, sabe que é sério e sabe a quem recorrer. Isso já é uma revolução.”

Ao mesmo tempo, Luana defende que é ilusória a ideia que muitos pais brancos têm de acreditar que as crianças não enxergam diferenças raciais. “Basta olhar ao redor: quem é a babá? Quem é o dono da casa? Quem ocupa os cargos de poder?”, aponta. “As crianças captam essas hierarquias rapidamente, mesmo que ninguém verbalize.”

Nesse sentido, ela faz uma analogia poderosa:

“O racismo é como um vírus letal. E a vacina é o letramento racial. Não esperamos alguém pegar uma doença para vacinar — então por que esperar as crianças presenciarem racismo para começar a falar disso em casa?”

Segundo estudo do Instituto Alana, a educação antirracista começa justamente nas pequenas escolhas cotidianas: livros, brinquedos, conversas, referências culturais. Luana reforça que isso exige ações contínuas como, por exemplo, ler livros de autores negros e indígenas, diversificar brinquedos e referências. Além disso, se faz necessário ampliar o repertório cultural. “É como uma alfabetização humana contínua. Portanto, não adianta fazer MBA se você não passou pelo básico: o letramento racial.”

Quando o seu filho erra: o que fazer?

Em abril, estudantes do Colégio Equipe, escola particular tradicional de São Paulo, foram vítimas de racismo em um shopping ao serem abordados pelo segurança. A ação, que muitas vezes passa despercebida pelas famílias brancas porque raramente ou nunca viram suas crianças sendo abordadas por policiais, foi algo doloroso para aqueles adolescentes negros naquele dia.

O caso foi o ponto de partida para que um grupo de mães do colégio organizasse um ato antirracista com a comunidade escolar. Sandra Campos, uma dessas mães, relembra: “desde que planejei meu filho, eu sabia que precisaria prepará-lo. Comecei mostrando o quanto ele é bonito, inteiro, o quanto pertence a todos os espaços”. Ela afirma que o maior desafio é equilibrar alertas necessários com a preservação da infância.

“A gente quer que eles sejam crianças, mas também precisa prepará-los para enfrentamentos inevitáveis.”

Leni Pires das Merces, mãe de uma das estudantes vítimas de racismo no shopping, conta que incentivou a filha a participar do ato organizado pela escola. “Expliquei que ela tem direito de estar onde quiser. Que precisamos enfrentar o preconceito com coragem e dignidade.”

Em casa, Leni faz questão de ler com os filhos livros como Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro, e discutir a representação limitada de pessoas negras na mídia, na publicidade, nos cargos de liderança. “Minha filha só começou a gostar do cabelo dela quando passou a ver meninas parecidas com ela nas telas. A representatividade tem um impacto profundo na autoestima.”

Já Sandra lembra de um episódio doloroso quando um colega disse ao seu filho que, se determinado candidato ganhasse nas eleições presidenciais de 2022, ele poderia bater em crianças como ele. “Na hora, eu reagi. Mas depois fiquei pensando: aquela criança tem um pai, e o pai não se moveu. Então, aprendi ali que o racismo não é natural, pois quem precisa mudar é todo mundo.”

Ela também critica a postura de escolas e famílias que tratam o tema apenas pontualmente. “Não adianta a escola fazer um evento no Dia da Consciência Negra se, no dia a dia, as famílias brancas não tocam no assunto. As crianças aprendem pelo exemplo em casa.”

Do mesmo modo, Leni completa o assunto. “No meu círculo, muitas famílias brancas não se manifestaram sobre o racismo que minha filha sofreu. Isso foi muito doloroso.”

“Eu espero mais do que empatia. Espero ação.”

Como abordar casos que aparecem na mídia

Ampliar as pautas antirracistas com crianças e adolescentes também passa pela informação do dia a dia. Para as mães, é importante que meninos e meninas saibam o que acontece pelo mundo e os casos de racismo que aparecem na mídia, por exemplo, podem ser debatidos dentro e fora de casa.

Das notícias de futebol, como o posicionamento antirracista do jogador Vini Jr. ou o desabafo de Luighi, do time sub-20 do Palmeiras, que sofreu ataques racistas no Paraguai, as situações reais precisam ser mostradas principalmente às crianças brancas.

Outro caso importante foi a condenação das estudantes de uma escola particular de São Paulo, que praticaram atos racistas contra a filha da atriz Samara Felippo, no ano passado. A Justiça determinou que as adolescentes – todas brancas – prestarão serviços comunitários como medida socioeducativa.

Esses exemplos são pontos importantes para explicar o que é o racismo, como ele se manifesta e por que é urgente combatê-lo, especialmente sendo uma pessoa branca. Sandra afirma:

“Os pais brancos precisam mostrar, com gestos, o que é viver em uma sociedade diversa. Seus filhos só são assim porque eles ensinaram ou porque nunca tocaram no assunto.”

Além disso, todas as mães entrevistadas são unânimes em defender o combate ao racismo com escolhas cotidianas, como:

“Eu aprendi que, para educar meus filhos de forma antirracista, eu preciso continuar aprendendo constantemente”, conta Leni. “Na minha família, muita gente tentava esconder nossa identidade negra, acreditando que isso nos protegeria. Mas, hoje eu entendo que o antirracismo precisa começar pela valorização da nossa identidade.”

Especialistas reforçam que o diálogo é urgente

A socióloga Luciana Bento já afirmou ao Lunetas que as crianças não devem naturalizar violências como o racismo. Por isso essa lógica precisa ser ensinada desde cedo. “Pode parecer difícil, mas apontar as diferenças de tratamento entre brancos e negros, e questionar isso criticamente, é algo que pode e deve ser feito desde pequenas. Não podemos permitir que crianças cresçam naturalizando a hierarquia social.”

A professora e escritora baiana Regina Luz também já apontou que “os adultos precisam estudar a cultura afrodescendente e compreendê-la para depois ensinar às crianças. A família é a primeira escola da existência.”

Do mesmo modo, Isabel Aquino, mãe branca do grupo Diálogos sobre educação antirracista, acrescenta: “A gente precisa estudar a branquitude, entender nossos privilégios e saber como contribuir.”

O racismo não é opcional, pois ele atravessa o cotidiano, molda oportunidades, autoestima e relações sociais. Ele é estrutural — mas pode ser enfrentado.

Todas as mães entrevistadas também deixam claro: não há mais espaço para adiar o debate. O antirracismo precisa ser aprendido, praticado e vivido todos os dias e por todas as famílias.

“Precisamos orientar as crianças brancas para que essa hierarquia desapareça, principalmente no momento de tanta doçura e ternura que é a infância.” – Emicida

*Esta reportagem foi produzida com o apoio da Imaginable Futures.

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