Na Marujada de Bragança, no Pará, meninos e meninas criam vínculos de carinho e respeito com os mais velhos, numa tradição que atravessa gerações
Tradição popular que reúne gerações, a Marujada de São Benedito de Bragança, no Pará, leva crianças a reviverem os passos dos pais e avós. Elas se reconhecem como “marujinhos e marujinhas”, numa relação de respeito e construção de identidade.
Blusa branca de cambraia e saia vermelha. Sobre a cabeça, o chapéu de plumas e fitas coloridas. Um ajuste carinhoso da avó no laço ao queixo dá o toque final: Dauana Lins, 9 anos, a Dadau, está pronta para a Marujada de São Benedito, em Bragança, nordeste do Pará. “Eu era menorzinha e, um dia, minha avó me acordou e disse, ‘vamos ver a alvorada, te arruma. Mas veste a tua roupa de maruja!’ E eu fui”, lembra. A menina segue os passos da avó, Rosa Lins, que aprendeu com a mãe a acompanhar a Festividade do Glorioso São Benedito.
Patrimônio cultural e artístico do Pará, a festa em louvor ao Santo Preto, como é conhecido, é celebrada há 222 anos, sempre em dezembro. O ponto alto acontece no dia 26, quando a Marujada, parte do ciclo de São Benedito, enche a cidade de ritmo e cores. Neste dia, os promesseiros se vestem de marujas e marujos para dançar com os pés descalços e fazer uma grande procissão.
Entre os marujos, dezenas de crianças dão uma nova cara à festa que seus pais, avós e bisavós aprenderam a cultivar, criando conexões entre passado, presente e futuro. Quando avó e neta se enfeitam para a Marujada na casa da família Lins, ao lado do altar dedicado ao santo, a tradição se renova. As roupas e os chapéus foram feitos ali, pelas mãos habilidosas da avó, Rosa. “Desde os cinco anos eu estou envolvida na festa e na Marujada. Eu ia com a minha mãe”, conta, orgulhosa de ver Dadau seguindo seus passos.
As lembranças são de coisas que a festa não tem mais: “Dançávamos no barracão de palha, à luz da lamparina. Minha mãe nem usava o chapéu ainda, era turbante das escravas e saia quadriculada. Sou filha de origem, da primeira Irmandade”, lembra.
Rosa nunca deixou de participar da festividade, agora sempre acompanhada de Dadau. “Todo mundo conhece a minha avó como a ‘Rosa dos anéis’. E todos me conhecem como a mascote marujinha. Peguei essa tradição dela e fui continuando. O que eu mais gosto é da dança, o xote e a marujada, que foi a minha avó que me inspirou e me ensinou”, conta a menina.
Manter as tradições vivas é importante para a criança começar a entender suas origens. Na Marujada, a música, os símbolos e os passos da dança ajudam a conectar filhos e netos com seu território e sua história.
“A festa da Marujada é um momento em que se celebra a cultura afro-brasileira, dos saberes culturais do negro, do sagrado religioso e da festa profana”, explica a professora Ana Paula Souza, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiros da UFPA Bragança. Segundo ela, a festividade desperta o lúdico e o subjetivo das crianças. É justamente isso que as encanta, fazendo, à imagem de seus antecessores, se reconhecerem como marujinhos e marujinhas.
“As discursividades das crianças da Amazônia bragantina revelam a participação na festa do Santo Preto devido à tradição geracional, por serem filhas e filhos de marujas”
Para elas, essas experiências têm o sentido de festa, de emoção, de dança. A festa é um momento mágico, espetacular e envolvente”, diz Ana Paula.
As roupas são elementos marcantes da festa. Marujas usam blusa branca, saia rodada e chapéu artesanal de plumas, aba dourada, flores e fitas coloridas. Marujos usam calça e camisa brancas e chapéu com uma flor na aba. Nos rituais que antecedem a Marujada, a saia e as fitas que vão amarradas ao braço ou transpassadas ao tronco são da cor azul, em homenagem ao nascimento do menino Jesus. No dia 26, a cor oficial é o vermelho.
Além de estimular o imaginário infantil, essa tradição reforça os vínculos familiares. João Pedro Oliveira, 4anos, mora com o tio e a avó. É com eles que aprende, desde bebê, a acompanhar a festa. “O que mais gosto na Marujada é a minha roupa de marujo e de cantar as músicas”, conta. Ele ouve do tio, Anderson Oliveira, os relatos de como a festividade faz parte da história da família. “Quando minha avó perdeu a audição por causa de uma gripe forte, minha bisavó fez uma promessa para ela voltar a ouvir. Depois de dois anos, a audição voltou. A partir daí, nossa família começou a receber São Benedito em casa, pelas comitivas que vêm da praia”, explica Anderson. Desde então, já são quatro gerações de marujos que celebram São Benedito.
João Pedro é o marujo mais novo da família. A tradição é repassada de forma natural, incorporando-se à rotina da casa. “A minha mãe trabalhava como cozinheira, assim como São Benedito. Quando ela cozinha em casa, sempre canta: ‘Meu São Benedito sua manga cheira a cravos e rosas, flor de laranjeira’, que é uma música que o João Pedro adora. Ele reconhece os símbolos e vivencia isso junto com a gente. Essa prática é muito mais cultural do que religiosa. É muito forte para nós”, conta Anderson.
A relação familiar é fundamental para o entendimento da criança sobre a Marujada como uma festa que vai além do folclore e da religião. Meninos e meninas participam dos preparativos, das danças, das comemorações, e convivem em todos os momentos com os mais velhos. É quando percebem que fazem parte de um grupo que os acolhe. A professora Ana Paula ressalta que
“Para as crianças, a Marujada é uma festa que envolve toda a família. É um momento rico de cultura que favorece o aprendizado entre os pares”
Emanoel Antônio, 7 anos, é marujo desde a barriga. Para ele, dezembro é tempo de celebrar. “A festa da Marujada é um símbolo. A gente se apresenta para o santo nas comemorações e missas”, conta, animado. A mãe, Jeane Silveira, maruja e promesseira, ensaiava grávida os passos das danças no barracão.
Outro caminho que leva Emanoel ao Santo Preto é a música. Ele costuma subir ao palco acompanhando as apresentações do pai, o cantor Toni Soares, um dos principais compositores da Festa de São Benedito e pesquisador das ladainhas religiosas.
“Com três meses peguei ele no colo num show. Desde então está comigo no palco, pulando e brincando. A música entrou de forma natural na vida dele, que teve a iniciativa de pegar um tambor, depois o piano. Hoje ele toca percussão e um violãozinho”, explica Toni, que já gravou discos com canções populares da festividade e composições próprias em homenagem ao santo.
“Eu gosto da procissão, da Marujada, das missas e dos shows. Fico alegre e gosto de ver meu pai tocando porque posso olhar e aprender a tocar violão”, diz Emanoel. A soma de inspirações que teve em casa resultou numa surpresa para a família: “Um dia, ele me deu uma rasteira. Chegou e disse que tinha feito uma música para São Benedito”, lembra Toni. “Convidei Emanoel para cantar comigo no estúdio, para gravação de um CD. Ficamos impressionados com a afinação. Ele gravou a letra toda dele. Eu não mexi em nada. É uma visão que ele tem da festa também”, conta o pai. “Eu estava passeando por aí, quando eu vi São Benedito deu vontade de dançar, aê São Benedito”, são alguns dos versos de Emanoel.
A Marujada envolve famílias inteiras. A movimentação em torno da festa evidencia a importância da cultura popular na vida das crianças, selando uma relação de respeito e carinho com pais, avós e bisavós. Em um movimento contínuo, de aprender e de ensinar, a tradição continua viva, mantendo acesos os vínculos familiares e o sentimento de pertencimento a uma comunidade. A cada dezembro, Dauana, João Pedro e Emanoel, junto de outras crianças e suas histórias, vivem a Marujada olhando e admirando sua gente, aprendendo, nos passos dos mais velhos, a dança da vida.
Mudanças na Marujada 2020
Em 2020, a festividade foi diferente por causa da pandemia de Covid-19. Os momentos que concentravam um grande número de pessoas, como a dança da Marujada e a procissão, foram cancelados. No dia 26, o andor com a imagem de São Benedito foi conduzido em carro aberto pela cidade. Marujos e marujas incorporaram as máscaras na tradicional vestimenta e puderam acompanhar em carreata ou saudando o santo em frente às suas casas.
* Este conteúdo foi produzido pela rede do Lunetas Correspondentes
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Breve história da festa
A Festividade de São Benedito de Bragança surge no fim do século 18, a partir da fundação da Irmandade do Glorioso São Benedito, em 1798. O professor Dário Benedito Rodrigues, historiador e professor da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará (UFPA – Bragança), diz que a festa é uma mistura de culturas. “As celebrações incluem, além dos rituais cristãos europeus, uma releitura feita pelos afro-brasileiros e também pelos indígenas, que fazem parte do rosto do caboclo amazônico”, explica. A Marujada nasce juntamente com a festividade e une todo um aparato cultural. “O que fica da cultura afro-brasileira é a forma de dançar, essa resistência apresentada a partir da manutenção dos rituais da festividade”, ressalta Dário.