Por festas juninas que celebrem a diversidade e a equidade

Juliana Prates propõe uma reflexão sobre as tradicionais festas juninas, que também são atravessadas por marcadores sociais de classe, raça e gênero

Juliana Prates Publicado em 23.06.2020
Imagem de uma menina negra vestida com roupa de festa de São João, usando um chapéu com tranças negras e assoprando bolinha de sabão
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Resumo

Juliana Prates traz uma reflexão sobre os marcadores de classe, raça e gênero nas tradições como as festas juninas. “As crianças são os agentes de renovação e reinterpretação do mundo e possibilitam que culturas e tradições permaneçam e sejam recriadas”. Leia a coluna.

Começar a escrever para o Lunetas como colunista no mês de junho, não podia ter outro tema que não as festas de São João, com as vivências das crianças nesse período e as lembranças que remontam às nossas próprias infâncias.

“Olha pro céu meu amor, veja como ele está lindo, olha praquele balão multicor que pelo céu vai subindo. Foi numa noite igual a essa que tu me deste o seu coração. O céu estava todinho em festa, pois era noite de São João”
(Luiz Gonzaga)

Seria uma oportunidade única de mostrar um pouco dos bastidores juninos de uma festa tipicamente nordestina, que aquece nossos corações adultos, com o calor da fogueira, o sabor do milho, do amendoim, dos bolos de aipim e tapioca. Seria possível falar do cheiro e dos barulhos dos fogos, do forró sendo tocado por um trio de sanfoneiros e da quadrilha sendo encenada no meio do salão. São João é cor, é música, é sabor, é alegria de viajar ao interior, de vestir vestidos coloridos, colocar chapéu de palha e celebrar a cultura e a tradição.

Mas, como tudo, as festas de São João não é feito só de alegrias: para muitas crianças, principalmente as meninas, hoje já adultas, as festas juninas representaram um momento de vivência cruel e dura do racismo na infância.

Era o momento em que eram eleitas as “rainhas do milho”, na escola. Essas rainhas eram, em sua maioria, meninas brancas e loiras – o amarelo do milho deveria estar representado pelos cabelos claros, mesmo que fossem nas trancinhas de nylon que já vinham presas nos chapéus de São João. 

Eram as meninas consideradas as mais bonitas da escola e por isso eram escolhidas pela sua beleza e graça. Mas beleza e graça eram sinônimo de branquitude, sendo que para as crianças negras era um momento de grande tensão e exclusão. Muitas vezes, eram as últimas a serem escolhidas para formar os pares nas quadrilhas (exclusão partilhada com os meninos), sentiam o esticar dos cabelos para caber nos chapéus juninos com as finas tranças sintéticas penduradas (essas podiam ser ruivas, loiras ou pretas), viviam as tentativas inúteis de pintar suas bochechas de vermelho com pintinhas pretas, pois a lógica da maquiagem era reforçar bochechas rosadas com sardas. 

As festas juninas também são atravessadas pelos marcadores sociais, de classe, raça e gênero.

Falar das infâncias é como falar do São João. São muitas cores, sons, afetos e lembranças. Há tudo para que essa seja a fase mais rica e apaixonante do desenvolvimento humano. Este é o potencial da infância e das crianças. Contudo, para concretizar tal potencial, é preciso pensar nos detalhes, que não são detalhes tão pequenos assim, mas que são tão invisibilizados que às vezes parecem dispensáveis. 

É preciso entender a necessidade de políticas públicas que garantam a inclusão de todos, afinal as infâncias são múltiplas e atravessadas pelas diferentes variáveis sociais. É urgente considerar os marcadores sociais que definem a infância e toda a nossa experiência social. É necessário ouvir as crianças para entender o que é ter infância neste momento histórico, para não silenciar as experiências das crianças com o nosso olhar adultocêntrico, muitas vezes saudosistas que pregam que infância de verdade era no nosso tempo. 

As crianças são os agentes de renovação e reinterpretação do mundo e, no encontro com outras crianças, adultos e idosos, possibilitam que culturas e tradições permaneçam ao mesmo tempo em que são recriadas.

Nesse ano, com a pandemia do coronavírus não teremos um São João típico (ou normal, como nomeiam alguns). As crianças não estão na escola e as quadrilhas não foram ensaiadas. Não vamos acender fogueiras, nem soltar fogos. Muitos de nós falaremos do São João no pretérito: seria, iria, dançaria, cantaria.

Meu convite é que possamos fazer como as crianças quando brincam de faz de conta e que usam o presente e o pretérito ao mesmo tempo. É como na música João e Maria de Chico Buarque:

Não, não fuja não
Finja que AGORA eu ERA o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Sim me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido…

Neste São João – com tantas perdas, dores e injustiças travadas na garganta -, muitos irão preparar comidas típicas e colocarão forró para tocar, contarão histórias dos festejos passados e das aventuras vividas e renovarão festejos juninos. Em nome das crianças de hoje e das crianças que habitam em nós, espero que essa renovação seja pautada em princípios mais justos, equitativos e que permita que toda a diversidade seja celebrada. 

Viva São João! Anarriê! 

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