Livros de Otávio Júnior retratam a favela para as crianças

Negro e periférico, o autor constrói narrativas sensíveis para apresentar as potencialidades de seu território para além do lado ruim noticiado pela mídia

Laís Barros Martins Publicado em 22.12.2020
Na foto, uma menina lê um livro sentada no chão de uma biblioteca
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Resumo

O premiado autor Otávio Júnior escreve para crianças na tentativa de apresentar a elas narrativas mais diversas sobre as favelas e promover por meio da literatura mudanças sociais.

De cima do morro, Otávio Júnior nos convida a conhecer a favela a partir do olhar de crianças negras e moradoras de comunidades periféricas cariocas que assumem o protagonismo. As vivências cotidianas das quais é “testemunha ocular”, transformadas em narrativas infantojuvenis, acredita o autor, são capazes de ressignificar o espaço em suas potências, sem ignorar a violência que o atravessa.

“Sou um autor negro e periférico”, orgulha-se. Com a tarefa de equilibrar o lado bom e o mais divulgado lado ruim da vida nas favelas, Otávio Júnior compartilha sua vontade mais genuína: “Quero valorizar a nossa gente, trazer a representatividade para o meio literário, contar boas histórias e ampliar vozes a partir do livro, que é um objeto transformador”.

“Que as pessoas de fora da favela possam se conectar com a cultura da favela e que as pessoas de dentro da favela possam se sentir representadas”

Para ele, a força da literatura pode potencializar o debate, encaminhando mudanças sociais, para que o seu território ganhe outros contornos nos noticiários que não apenas o espaço da dor e da luta. “São muitas histórias a serem contadas”, reflete.

Esse projeto está em andamento e ganhou mais visibilidade após vencer o prêmio Jabuti. No livro “Da minha janela”, premiado na categoria melhor livro infantil 2020, uma janela é símbolo da transformação possível, de onde se enxerga questões como violência e vulnerabilidade social, mas também se vê além, destacando aspectos positivos da cultura local e aspectos das brincadeiras tradicionais, como a bola de gude, a pipa, o pião.

“Da minha janela” (Companhia das Letrinhas)

Com ilustrações cheias de vida e movimento da argentina Vanina Starkoff, que visitou junto de Otávio Júnior algumas favelas, o livro nos mostra aquilo que o narrador vê da sua janela em uma favela do Rio de Janeiro: pessoas, animais, cores e gestos – tudo com algo a ensinar. Um convite para olharmos para as vidas que nos cercam mas, muitas vezes, passam despercebidas. Com uma narrativa sensível, Otávio Júnior oferece uma perspectiva cheia de afeto da infância, compartilhando memórias de brincadeiras tradicionais e criando um retrato do dia a dia na periferia carioca de dentro para fora, evidenciando o olhar de quem vive nas comunidades.

Outro exemplo de como a literatura pode muito a favor da realidade, o livro “Morro dos Ventos” recupera a memória de crianças mortas em decorrência do extermínio promovido pelo Estado racista brasileiro, para que não sejam esquecidas.

“Morro dos ventos” (Editora do Brasil)

Com ilustrações de Letícia Moreno, esse livro resgata o desejo genuíno das crianças de estarem amparadas e saberem que os seus também estarão seguros. A voz, espalhada pelo vento do alto de uma favela e que vai se conectar a outras vozes pedindo pela paz, permeia essa narrativa delicada sobre perda, violência e, principalmente, amor e esperança. Com breves cenas do cotidiano, o autor revive a memória de vidas negras e periféricas interrompidas por conta da violência e da criminalidade, como a da menina Ágatha Félix, morta aos oito anos, em 2019, vítima de operações policiais no Complexo do Alemão. A saudade e a falta estão no balanço vazio na árvore e nos muitos assentos vagos na sala de aula após balas “perdidas” atravessarem suas vidas. O livro é dedicado à mãe de Ágatha, Vanessa Francisco Sales.

Livro, um objeto de transformações

O encontro com um livro no lixão transformou a vida do autor quando ainda tinha oito anos. Para que as crianças tenham contato com o livro de formas menos inusitadas, Otávio se dedica a criar histórias e a descobrir “formas encantadoras e mágicas de levar o livro e atividades literárias para os ambientes periféricos”, conta. Esse trabalho de responsabilidade social por meio da literatura, como formador de pequenos leitores e incentivador da leitura nas favelas brasileiras, lhe rendeu a alcunha de “livreiro do Alemão”.

Além de ter sido responsável por abrir bibliotecas e espaços de leitura, ele também criou o projeto “Ler é 10 – Leia Favela”, “um laboratório de experimentação, que me possibilitou ter contato com o público leitor, editores, pesquisadores, educadores sociais, pensadores conectados com a infância brasileira”, reflete.

“Há muitos anos, penso em inovação, em projetos multiculturais e multiplataformas para transformar a realidade das favelas via literatura. Esses profissionais ligados à literatura infantil e juvenil me abraçaram quando eu era muito jovem e me deram a oportunidade de sonhar em trabalhar com literatura, sonhar em levar a literatura para as pessoas que não têm condições financeiras de ter um livro ou de ir até uma biblioteca, uma livraria. A partir dessas experiências, cresci pessoal e profissionalmente, refletindo sobre questões sociais. Pude desenvolver os meus projetos, sobretudo os meus livros pensados na infância na periferia.”

“A transformação que nós queremos em relação à sociedade virá por meio da literatura, da cultura, da educação, do empreendedorismo”

Otávio Júnior também está interessado na conexão entre as múltiplas infâncias brasileiras – “crianças da favela, quilombolas, ribeirinhas, indígenas e crianças urbanas, pertencentes a um território tão diverso e multicultural quanto o Brasil”, pontua. Para tanto, acredita na importância de as crianças se verem espelhadas nessas figuras.

“Nós temos grandes líderes para a questão racial, sobretudo mulheres negras à frente de pautas antirracistas, de projetos muito potentes ligados à construção e ao fortalecimento da identidade negra a partir de livros, séries, filmes, música, exposições e inclusive da publicidade, uma vez que muitas empresas entenderam que a grande maioria da população é negra. E isso é muito bem-vindo no sentido da criação de produtos artísticos, como a literatura, que está muito bem servida de autores e autoras negras, e traz muito forte a questão da identidade.”

“As crianças podem e devem se conectar a tudo isso”

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