O que as crianças têm a dizer sobre o mundo que vivem?

Experiência de escuta mostra caminhos para uma participação mais genuína e respeitosa e as soluções criativas das crianças para a crise do clima

Camila Salmazio Publicado em 03.09.2025
Um grupo de quatro crianças olha para um globo terrestre. Elas usam roupas coloridas.
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Resumo

A escuta genuína das expressões infantis podem revelar percepções criativas sobre o mundo e possíveis soluções sobre a crise climática que adultos muitas vezes não veem.

O futuro que buscamos talvez já esteja sendo inventado pelas crianças sobre uma mesa cheia de pequenos pedaços de mundo. Em silêncio ou então “no corpo, nos gestos, nas construções”, como explica o artista e pesquisador das infâncias Gandhy Piorski sobre as múltiplas linguagens infantis.

Foi justamente para acolher suas percepções sobre o mundo que ele e a pedagoga Ana Cláudia Leite ofereceram objetos de diversos tamanhos, pesos e formas, para que as crianças de cinco capitais brasileiras criassem “o problema ou a solução, sem certo ou errado”.

Os materiais vindos de refugo da indústria e que não fazem parte do cotidiano resultaram em mais de duas mil obras criadas por elas, que integram o acervo dos pesquisadores. São máquinas que detectam poluição, armas de microrganismos, patinhos do bem e até cachorros que brincam com as pessoas.

Segundo Cacau, as escolhas para o processo de escuta vêm de uma profunda investigação de Gandhy sobre a materialidade das peças. Além disso, impõem um desafio adicional: o convite para que a criança componha “algo em movimento, como acontece na vida”.

Objetos que despertam histórias

Inspiradas na pesquisa “Escuta de crianças sobre a natureza e as mudanças climáticas”, conduzida por Ana Cláudia Leite e Gandhy Piorski entre 2018 e 2020, as experiências realizadas em três unidades do Sesc (Guarulhos, Bertioga e Mogi das Cruzes), em julho deste ano, também buscaram valorizar as perspectivas e o imaginário das crianças sobre o meio ambiente. Assim, por meio de experiências sensoriais e expressivas, é possível pensar as transformações do clima.

“Eu fico achando que o planeta Terra está machucado”, diz Maria Clara, 6. Para ela, o problema está no “monte de lixo na natureza”. A reflexão surgiu depois que a pedagoga Cacau lançou a provocação: “Alguma coisa está acontecendo no planeta”.

Em muitos casos, a criação conta uma história. Maria, 10, construiu uma escultura interativa: o planeta na parte de cima e, embaixo, o mar. “Quando jogam lixo, a água não consegue passar. Minha máquina tira o lixo pra água passar limpa pro planeta Terra.”

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Sem a interferência dos adultos, crianças experimentam equilíbrio, superação e criatividade ao combinar as peças.

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Materiais que não são comuns ao cotidiano da criança são escolhidos de modo a não ter relação com o consumo.

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Por fim, o objeto de “pegar” poluição, criado por Amanda, mostra o potencial das crianças em resolver problemas “de adultos”.

Já Clara, 3, criou uma “árvore que sai flores e pula”. Segundo explicou, “tem uma coisa pra parar de chover e tem um raio também”. Uma solução poética para um problema real como, por exemplo, as enchentes no Rio Grande do Sul.

Mas nem sempre a criança se sente livre para experimentar. Iara, 11, confessou: “Já pensei em três formas diferentes, mas nenhuma deu certo”. Minutos depois, sem interferência, encontrou outro caminho. “Agora estou pensando no que esses elementos representam na minha história, e não no que posso construir com eles.”

O peso das expectativas adultas

“Poucas vezes a criança é convidada a se expressar livremente, sem que o processo demande uma resposta certa ou errada”, diz Ana Cláudia Leite. “Os adultos colocam expectativas enormes sobre o desempenho da criança. Querem que ela fale de um determinado jeito, que acerte, que performe. Ela percebe, pela cara de frustração do adulto, quando não atinge o que esperam dela.”

Então, segundo a pedagoga, quando chegam num espaço livre, muitas têm medo de errar. “Só depois percebem que é permitido falhar e criar.” Isso porque, nesses espaços de escuta, o que importa é acolher o que cada criança traz, com seu potencial criativo e seu modo próprio de expressão, explica.

Aprender a escutar mais as crianças

“A fala é apenas uma das linguagens da criança”, afirma Gandhy Piorski. Mas, de acordo com ele, muitas vezes reproduz os discursos dos adultos e das instituições (a escola, a mídia, a igreja e demais espaços que frequenta). Isso porque os formatos geralmente são pensados por adultos, como questionários e entrevistas, e eles nem sempre dão conta da riqueza do imaginário e das linguagens das crianças.

Assim, a interferência que o ambiente formal produz na escuta ativa em escolas ou projetos acadêmicos, por exemplo, pode não alcançar as expressões mais espontâneas e profundas das crianças. Para isso, os pesquisadores consideram fundamental superar a lógica discursiva, de perguntas e respostas. Isto é, adentrar o universo simbólico e o imaginário a partir de proposições que possibilitem a livre criação e manifestá-la por meio de múltiplas linguagens.

“A criança traz consigo uma pedagogia própria das imagens e dos símbolos. Mesmo as mais novas conseguem expressar percepções complexas”, diz Gandhy Piorsky

Ouvi-las, portanto, não é apenas um gesto de inclusão, mas também uma estratégia para compreender o futuro e o presente. E, quem sabe, encontrar soluções, como o detector de poluição da Amanda, 7, que “pega a poluição das fábricas para não poluir o céu nem os rios”. Ou que simplesmente nos abra os olhos para exclamações como as de Maria Clara que, espiando através de um pequeno objeto azul, disse: “Olha, pai, visão de sujeira!”.

Crianças e a crise climática

As crianças são o grupo mais vulnerável aos impactos ambientais, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. Muitas já sentem na pele os impactos do calor excessivo, das enchentes e outros problemas decorrentes da degradação ambiental – que vão desde alergias respiratórias causadas pela poluição do ar até o aumento de doenças transmitidas por mosquitos em áreas mais quentes e úmidas. Então, continuaremos tentando resolver sozinhos a crise do clima ou, finalmente, vamos aprender a escutá-las?

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