Eu, madrasta: como criar vínculos sem o peso dos estigmas?

Cooperação entre mães e madrastas provam que, quando o assunto é cuidar dos pequenos, o amor não tem medidas

Camilla Hoshino Publicado em 03.05.2023
Foto colorida de uma mulher abraçando uma menina
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Resumo

De onde veio a ideia de que madrasta é alguém má? Hoje, novos arranjos de família mostram que é possível fazer o amor crescer, superando as dores e desafiando qualquer tipo de competição entre as mulheres no cuidado das crianças.

Há quem sonhe em ser médico, astronauta ou presidente. Há quem espere ansiosamente para assumir o papel de mãe, um convite para ser madrinha ou a tranquilidade de ser avó. Ser madrasta é algo que foge dos planos. A própria palavra, apesar da origem no latim “mater”, carrega um trocadilho semântico um tanto infeliz por culpa de seu prefixo “ma”. Basta consultar o dicionário para encontrar definições depreciativas como “mulher má” ou “mãe que não cuida bem dos filhos”.

A Disney tem uma grande responsabilidade nisso, criando personagens antagônicos para as pessoas escolherem um lado e ficarem vidradas nas tramas”, observa a educadora parental, mãe e madrasta Mariana Camardelli. É só pensar, por exemplo, em Lady Tremaine, a madrasta de Cinderela, uma das vilãs mais odiadas no mundo das princesas. Assim como ela, personagens como a Rainha Narissa, do filme “Encantada”, e a Rainha Grimhilde, a madrasta de “Branca de Neve”, são frias, cruéis e vaidosas. São aquelas que invejam enteados e enteadas e cometem atrocidades em nome do poder. “Uma ideia que precisa ser urgentemente desfeita”, sublinha Camardelli.

No entanto, antes mesmo das adaptações da Disney, essas histórias de madrastas já eram retratadas nas fábulas infantis dos Irmãos Grimm, no início do século XIX. A escritora e jornalista Karin Hueck, em seu livro “O lado sombrio dos contos de fada”, afirma que, naquela época e em séculos anteriores, a alta taxa de mortalidade materna na hora do parto deixava milhões de crianças órfãs criadas por mulheres que não eram suas mães e que não se preocupavam necessariamente com seu bem-estar.

Hoje, com novas configurações familiares, não é apenas a morte o motivo do fim de casamentos. Portanto, mães, pais, madrastas e padrastos passam a se reorganizar no cuidado dos filhos e enteados. Mais do que isso, o Direito se adapta às transformações e aos jeitos de se sentir família, dando mais atenção aos laços de afetividade que não dependem do fator biológico. Prova disso é a multiparentalidade que permite que uma criança tenha mais de um pai ou uma mãe registrados na certidão de nascimento.

Do ponto de vista psicanalítico, Hueck aponta a ocorrência de tantas madrastas nos contos como uma metáfora para a maneira como os filhos vêem o “outro lado” das mães quando estão tristes, com raiva ou contrariadas. Apesar dessa interpretação, ela concorda que o “era uma vez” tende a exagerar o comportamento de predileção das mães pelos filhos biológicos em relação aos enteados.

Madrasta, o nome proibido

Para se ter uma ideia do medo das más associações, a jornalista Janaína Maurer, há três anos com Lucas, pai de Helena, 5, ainda não tem coragem de dizer à pequena que é sua “madrasta”. “Ela tem as referências das madrastas da Disney como figuras ruins, mas estamos conversando aos poucos para desmistificar isso”, conta.

Maurer reconhece a dificuldade de driblar os estigmas e, às vezes, quer dar sinais à Helena de que jamais tomará o lugar da mãe, um medo que ela mesma já teve na adolescência quando seu pai assumiu um novo relacionamento. Ao mesmo tempo, procura não cair na armadilha de se tornar a “tia 100% disponível”, que deixa a criança fazer tudo, enquanto os pais assumem a tarefa desafiadora de educar. “Existem decisões que só podem ser tomadas pelo pai e pela mãe, mas todo o cuidado envolve estabelecer limites, diz.

Apesar de Maurer não ser madrasta de primeira viagem, dessa vez a convivência com a enteada é constante, tornando a rotina mais amorosa e também cheia de novas decisões a tomar. “Eu quis estudar e fui atrás de relatos, não para me comparar, mas para aprender com outras histórias”, afirma. E foi assim que ela chegou até o canal do Instagram “Somos madrastas”, da Mariana Camardelli, que busca desconstruir o estereótipo dessa figura. “É difícil encontrar dicas sobre ser madrasta e esses conteúdos me ajudaram a virar uma chave”, confessa a jornalista, que passou a encarar as situações com mais leveza, sem a pressão de precisar a todo o momento provar o seu valor. Além disso, Maurer acredita que a aceitação e a boa convivência com os enteados também dependem muito da qualidade da relação entre o pai e a mãe da criança diante da nova configuração de família.

“Amor só de mãe”?

“Amor só de mãe”, “mãe é uma só” e “madrasta, o nome lhe basta”: os provérbios põem em circulação saberes, costumes e construções sociais. Nesse caso, deixam clara a tensão entre mães e madrastas, evidenciando o estímulo pela competição entre mulheres. Mas precisa ser assim?

“Mesmo enquanto vamos superando nossa dor, precisamos entender que não podemos interferir na relação da criança com a madrasta”, afirma Thais Chita, mãe de Clara, 9. “Como ativista dos direitos de crianças e adolescentes, entendo que devemos agir diante do melhor interesse desses grupos. E, nesse caso, privar a Clara de receber amor e ter uma convivência saudável familiar e comunitária não era uma opção.”

No meio das emoções de uma separação, pode ser muito difícil para uma mãe lidar com a aproximação dos filhos com a madrasta. Ela pode se sentir deixada de lado ou perdendo espaço na relação para essa nova referência feminina. Por isso, quando se separaram, Chita e o ex-marido decidiram pedir ajuda a uma psicóloga para orientar os passos seguintes da relação. “Foi perfeito, ela [psicóloga] me dizia ‘não quero que a Clara tenha medo de gostar da Clarice’”, conta Chita, que hoje mantém um grupo no WhatsApp com a madrasta e o ex-marido para decidir sobre os cuidados da filha. “Sempre houve um esforço de nós três para esperar o tempo do outro, pensando no melhor para a Clara”, afirma.

Na opinião de Chita, para que essa boa relação aconteça, é preciso que os adultos envolvidos queiram fazer diferente, ou seja, estejam dispostos a não reproduzir eventuais padrões familiares vividos. Por isso, segundo ela, separações são sempre um bom momento para se aprofundar no autoconhecimento e para não deixar as próprias dores atingirem a criança. Afinal, onde existe amor não há lugar para competições mesquinhas.

“Nós, mulheres atentas ao machismo estrutural, precisamos nos apoiar e não criar rixas” – Thais Chita

Madrastas também maternam

Para quem abraça o combo “namorado + filhos”, sabe que a nova posição poderá ser inicialmente desfavorável, uma espécie de ímã de julgamentos e comentários infelizes. A primeira vez que escutou a frase “você não sabe, porque não é mãe”, Mariana Camardelli saiu chorando de um aniversário de criança. “Luto para que nenhuma madrasta precise passar por nada parecido”, diz. Afinal, as madrastas também maternam e lidam diariamente com os dilemas da educação.

Nessa lida, é muito provável que não sejam apenas os dilemas com as crianças a ficarem evidentes, mas o medo da mãe de “perder o lugar”, inseguranças da própria madrasta em relação à presença da mãe das crianças nas dinâmicas da família e o posicionamento do pai na mediação de eventuais conflitos. “O genitor precisa estar seguro e entender a retomada da vida afetiva como um direito e que a criança pode até rejeitar uma aproximação no começo, mas ela não escolhe se os pais vão namorar ou casar novamente”, defende Camardelli.

Para a educadora parental, ser madrasta é uma função desempenhada com muito amor, alegria e, claro, desafios – por que haveria de ser diferente? Nada de ser aquela pessoa que vive dando presente e agradando a criança a todo custo, melhor deixar essas regalias para as visitas. “Ser essa figura boazinha prejudica a árdua tarefa das mães, que precisam educar muitas vezes sozinhas”, alerta. Ela sabe bem, afinal, assume as duas funções, além de madrasta de Vicente e Augusto, também é mãe de Flora e Martim.

Se engana quem acha que as madrastas são poupadas das perguntas difíceis: “Como nascem os bebês?”, “Por que meus pais se separaram?” ou “Quando eu vou ter um irmãozinho?”. Assim como qualquer cuidador, que erra, acerta e é atingido pela culpa, pode ser que algumas respostas e atitudes saiam tortas, envergonhadas ou mal formuladas. “Nem mimos demais, nem distância demais. Sugiro agir como uma pessoa interessada em criar vínculos, sem exagerar”, diz Camardelli.

Nesse processo de separações e novas aproximações, pode ser que os enteados demandem acompanhamento psicológico, livros com personagens que os ajudem a entender melhor o momento e, sobretudo, tempo para assimilar as mudanças. O importante é não subestimar a criança e nem a si, buscar uma relação de sinceridade, sem achar que o enredo é conversa “de adulto”. Uma dica para as madrastas de primeira viagem? Camardelli responde:

Vai dar tudo certo. E depois tudo errado. E depois tudo certo de novo. E assim pra sempre. Bem vinda à montanha-russa do maternar – algo intenso e transformador na mesma medida!

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